Nunca poderemos nos esquecer da imagem das mães russas traumatizadas com o assassinato dos seus filhos, em Beslan. Poucos dias depois, a mídia comemorava o terceiro aniversário do atentado contra as torres gêmeas e mostrava a imagem de espectadores e sobreviventes, traumatizados com o horror que se desenrolava diante dos seus olhos. Desde a invasão do Iraque, somos testemunhas do trauma sofrido pelos parentes de crianças mortas. De tão rotineiros, quase não queremos saber dos traumas vividos pelos israelenses com os ataques suicidas dos palestinos e pelos palestinos com os atos de terrorismo de Estado praticados pelo governo Sharon. O denominador comum de todas essas cenas é o trauma. Sua onipresença no mundo contemporâneo não pode deixar a psicanálise indiferente. Afinal, ela tem lidado com o trauma desde que o método catártico foi aplicado por Freud e Breuer para induzir a ab-reação de uma experiência traumática. Mas o aspecto da teoria freudiana do trauma que parece mais relevante hoje é a que destaca o efeito traumático de atos externos de violência. A partir da propensão dos soldados afetados por traumatismos de guerra a voltarem sempre em seus sonhos e pensamentos à situação traumática original, Freud foi levado a postular, em "Além do Princípio do Prazer", a existência de uma compulsão de repetição, aparentemente alheia aos automatismos da realização de desejo. Introduziu na mesma ocasião a idéia da pulsão da morte, que ilustrava exemplarmente a compulsão repetitiva, na medida em que todo ser vivo aspira a regredir ao estado anorgânico original. A neurose de guerra dos veteranos de 1914-1818 seria um caso especial da neurose traumática, na qual o aparecimento dos sintomas resulta de uma situação em que o sujeito se sentiu em risco de vida. Como são exatamente dessa natureza os traumatismos que enfrentamos hoje e como eles estão ficando cada vez mais freqüentes, alguns psicanalistas poderiam arriscar a hipótese de que a neurose traumática venha a ser a neurose do século 21, como a histeria o foi do século 19. Se isso se confirmasse, o papel clínico da psicanálise poderia tornar-se especialmente importante, porque ela substituiria com vantagem as técnicas farmacológicas e behavioristas com que a psiquiatria americana está tratando as vítimas do "post-traumatic stress disturbance", entidade clínica inventada pelo "Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais" (DSMM) para tirar do caminho "velharias" como neurose de guerra e neurose traumática. Mas pergunto-me se a psicanálise não pode prestar-nos outro serviço, além da mera clínica. Não poderia o pensamento de Freud ajudar-nos a compreender os mecanismos subjacentes às ações que estão transformando nosso mundo numa civilização do trauma? A resposta está no último grande livro em que Freud debateu o tema do trauma, "Moisés e o Monoteísmo". Nesse livro, Freud faz uma audaciosa passagem da patologia individual para a social, referindo-se à existência de um trauma coletivo da humanidade. Antes de fazer o que ele chama sua "analogia", recapitula alguns elementos da teoria do trauma. Assim, recorda o fenômeno da latência, intervalo mais ou menos longo entre o momento em que se produziu o trauma e o momento em que aparecem os sintomas. Lembra também que podem existir duas fixações ("Bindungen") ao trauma, uma positiva, durante a qual o sujeito volta continuamente à situação traumática original, e outra negativa, durante a qual ele não quer saber das impressões antigas, dos traumas esquecidos, e tenta evitar tudo o que possa revivê-los.