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Correspondência de Machado de Assis: 1870-1889

 

Depois do tomo I, saído em 2008, apresentamos aos leitores o tomo II da Correspondência de Machado de Assis. Com exceção de algumas cartas dos anos 60, descobertas recentemente, o novo volume é consagrado aos decênios de 1870 -1879 e 1880 - 1889. Esses dois decênios estão entre os mais significativos da obra de Machado de Assis. Cada um deles é assinalado por um corte e uma abertura.


No primeiro, Machado rompe com sua trajetória até então, aventurando-se num gênero novo, o romance. Todos os romances de sua primeira fase se situam nesse período: Ressurreição (1872), A mão e a luva, (1874), Helena (1876), e Iaiá Garcia (1878). Na poesia, é o decênio em que publica Falenas (1870) e Americanas (1875). É nele, também, que produz algumas de suas mais famosas páginas de crítica e de análise literária, como Instinto de Nacionalidade (1873), e a resenha de O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1878).


No outro decênio, dá-se um segundo corte, ainda mais decisivo: o que divide as duas maneiras de Machado de Assis, separando o autor de romances psicológicos, ainda sob a égide da estética tradicional, do criador genial de Brás Cubas. É a fase que denominei "shandiana", inaugurada com Memórias Póstumas (1881), às quais se seguiria Quincas Borba,cuja primeira versão foi publicada em A Estação, a partir de 1886. Aparecem também alguns dos seus melhores livros de contos: Papéis Avulsos (1882) e Histórias sem Data (1884). Quase todas essas obras deixaram rastros na correspondência de Machado de Assis.


No primeiro decênio, assinalem-se as cartas trocadas com Gentil Homem Braga, José Carlos Rodrigues e Julio César Machado, a propósito do seu romance de estréia, Ressurreição. Mencione-se também a carta enviada a Salvador de Mendonça acerca de Helena. Leia-se, igualmente, a carta com que Eça de Queirós reage à crítica machadiana ao Primo Basílio, que para o escritor brasileiro descrevia apenas "ardores, exigências e perversões físicas", e onde Machado acusa Eça de ter plagiado Zola. A carta de Eça começa com um misterioso ato falho - em vez de datá-Ia de 1878, datou-a de 1870 - que pode dar origem a algumas especulações psicanalíticas, mas em seu conteúdo ostensivo é um modelo de elegância e urbanidade.


A década seguinte testemunhou a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, primeiro na Revista Brasileira, em 1880, e depois em livro, em 1881. Embora surpresa, a critica reagiu positivamente, mas o público resistiu ao livro. Essa dupla reação ecoa nas cartas de seu cunhado Miguel de Novais. Miguel gosta tanto do livro, que numa carta de 2 de novembro de 1881 pede a Machado que envie um exemplar a Gomes de Amorim, biógrafo de Almeida Garrett. Em 21 de julho de 1882, Novais consola-o pelas incompreensões dos leitores. "Há livros que são para todos e outros que são só para alguns. O seu último livro está no segundo caso e sei que foi muito apreciado por quem o compreendeu."


A hesitação vinha da dificuldade de classificar a obra. Como encaixá-Io ao lado do romance realista de Balzac e de Flaubert, o único familiar ao público brasileiro? As cartas refletem essa perplexidade.


Assim, em carta de 21 de julho de 1880, Macedo Soares só dá destaque a um dos poucos capítulos que poderiam caber num romance psicológico convencional, o da partilha dos bens do velho Cubas.


Do mesmo modo, Capistrano de Abreu confessa não entender o livro, embora tenha o mérito de não tentar reduzi-lo às categorias estéticas do romance sentimental ou psicológico. Em 10 de janeiro de 1881, escreve:


"Hoje às 7 horas da manhã, poucos minutos antes de tomar o trem de Rio Claro para Campinas, me foi entregue com a sua carta de 7 o exemplar de Brás Cubas que teve a bondade de me enviar ... A impressão foi deliciosa, e triste também, posso acrescentar. Sei que há uma intenção latente, e não sei se conseguirei descobri-la ... Ainda há poucos dias [Valentim Magalhães] me escreveu: o que é Brás Cubas em última análise? Romance? dissertação moral? desfastio humorístico?Ainda o sei menos que ele."


E no entanto esses dois correspondentes de Machado de Assis abrem trilhas inovadoras.


Quanto a Macedo Soares, Machado informa no prólogo da terceira edição de Memórias Póstumas: "Em carta que me escreveu por esse tempo, Macedo Soares me recordava amigamente Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett." Infelizmente, não conseguimos localizar esta carta. É pena, porque nessa carta perdida Macedo Soares fez algo de'muito valioso: chamou atenção para mais um membro da "família shandiana" - Almeida Garrett - que se soma desse modo aos modelos reconhecidos pelo próprio defunto-autor - Steme e Xavier de Maistre.


No que diz respeito a Capistrano de Abreu, a carta citada tem uma continuação estimulante: "A princípio me pareceu que tudo se resumia em um verso de Hamlet de que me não lembro agora [bem] , mas em que figura the pale cast of thought ["a sombra pálida do pensamento"]. Lendo adiante, encontrei objeções ... " Mas a intuição original de Capistrano fora certeira. O solilóquio de Hamlet alude ao grande tema do barroco, a meditação melancólica, e a melancolia, aliada ao riso ("a pena da galhofa e a tinta da melancolia") é uma das características estruturais da forma shandiana.


As cartas são importantes também do ponto de vista biográfico.


Mesmo que não trouxessem novos dados sobre a vida de Machado de Assis, elas constituiriam documentos VIVOS, tomando mais reais os acontecimentos relatados nas biografias. Ainda assim, julgamos ter contribuído com novas informações. Por exemplo, numa de suas cartas Novais dá a entender que Machado formulara um projeto razoavelmente concreto de visita à Europa, indo além das evasivas com que costumava receber convites dessa natureza. Além disso, mencionam-se endereços de Machado e Carolina que não figuram na lista "oficial" das residências do escritor.


Como o volume anterior, o atual deve tudo à erudição, à competência e à capacidade de trabalho de lrene Moutinho e Silvia Eleutério. Elas continuaram fiéis à sua vocação, já evidenciada no tomo I, de grandes localizadoras de cartas extraviadas e de excepcionais identificadoras de pessoas mal conhecidas.


lrene descobriu uma carta de Machado a Salvador de Mendonça, de 9 de agosto de 1868, e identificou o "amigo ", até então anônimo, a quem Machado dirigira carta a propósito do Liceu literário português.


Uma de suas proezas foi identificar um dos personagens mais obscuros da epistolografia machadiana, L. de Almeida, autor de uma carta de 27 de julho de 1877, convidando Machado e Carolina para jantarem em sua casa, e indicando outros convivas, como "Queirós", "Artur" e "Luís de Resende" . lrene não somente conjeturou que esse L. de Almeida seria Laurindo de Avelar e Almeida, grande cafeicultor de Vassouras, como identificou todos os outros convidados.


Um dos melhores trabalhos de lrene foi o que ela realizou em torno de um cartão em papel verde, com duas hastes montadas, uma das quais conserva, intato, um par de folhinhas, e apenas treze palavras - "Ao distinto Senhor Machado de Assis - oferece o seu admirador / Doutor C. Ferraz." Ela nos revela que o signatário era o Dr. Femando Francisco da Costa Ferraz, membro da Academia de Medicina, muito conhecido por seu método de embalsamamento, que garantia a total incorruptibilidade do cadáver. Ele teve entre seus clientes alguns defuntos ilustres, como João Caetano, Caxias, José do Patrocínio, e Floriano Peixoto. Irene se diverte especulando se ao mandar sua oferenda vegetal a Machado, apenas dois anos depois da publicação de Memórias Póstumas, Ferraz não estaria pensando no cliente que lhe escapou, Brás Cubas, cujas "carnes frias", em vez de serem embalsamadas segundo as regras da arte, foram abandonadas aos vermes.


Foi Sílvia Eleutério que realizou as pesquisas sobre os endereços machadianos não arrolados pelos biógrafos. Sua argumentação cerrada e clara, desenvolvida nas notas, é um modelo de lógica e de seriedade científica.

 

Outro achado importante de Silvia foi a identificação da destinatária de uma carta de 9 de setembro de 1881, em que Machado de Assis comunicava a uma senhora até então desconhecida que em Vista das altas qualidades do seu falecido marido - meu chorado amigo, diz ele - o Centro de Lavoura e Comércio havia aberto uma subscrição em favor da família do finado. Cruzando dados textuais, Silvia argumentou com um alto grau de plausibilidade que a "senhora sem nome" era D. Lidia Cândida de Oliveira Buarque, viúva do Ministro Buarque de Macedo, com quem Machado de Assis trabalhara diretamente. 


Desde o início de nossos trabalhos, Silvia interessou-se particularmente pelo cunhado de Machado, Miguel de Novais. Suas pesquisas trouxeram à luz do dia um personagem muito singular, pintor nas horas vagas, dotado de um robusto senso de humor, e que entre outras realizações traduziu um dos livros favoritos de nossos avós, o Cuore, de Edmondo De Amicis. O exame das cartas revelou que durante três décadas Miguel fora um interlocutor privilegiado de Machado, que com ele conversava - pasmem! - até sobre política brasileira, assunto escabroso que Machado evitava conscienciosamente em sua correspondência habitual. Não temos as cartas de Machado para Miguel; mas, nas cartas deste para Machado, Sílvia montou um jogo especular-discursivo, no qual o leitor pode inferir a parte que falta desse diálogo mutilado, a partir do seu eco nos comentários de Miguel de Novais.  


Por fim, recomendo a leitura dos comentários de Silvia à carta em que Ladislau Neto disserta sobre o quadro de Pedro Américo a propósito da Batalha de Campo Grande. Feita essa leitura, o leitor não terá remédio senão fazer uma visita ao Museu Imperial de Petrópolis, para ver o quadro de Pedro Américo.

 

Aproveito a oportunidade para agradecer afetuosamente o Presidente da Academia Brasileira de Letras, Cicero Sandroni, pelo apoio intelectual e material que nunca nos faltou. O Brasil fica lhe devendo mais essa contribuição aos estudos machadianos.