A antítese civilização e barbárie não é de manejo simples. Tradicionalmente, foi usada de forma autoritária e xenófoba. Foi assim desde sua origem, na Antigüidade, em que os gregos se viam como os únicos civilizados e os não-helênicos eram considerados bárbaros pelo mero fato de não falarem grego. Esse uso perverso da antítese atingiu seu auge na fase áurea do imperialismo europeu. As potências julgavam-se superiores aos povos colonizados, tanto do ponto de vista técnico e científico, como do ponto de vista ético, e nesse sentido eram civilizadas, enquanto os demais povos estavam mergulhados na barbárie. Daí a missão civilizadora que os países europeus se atribuíam, ou que lhes tinha sido atribuída pela Providência - o white man's burden, obrigação que lhes fora imposta de retirar da barbárie os infelizes nativos, ''meio demônios e meio crianças'', nas palavras de Kipling.
A doutrina evolucionista foi a expressão teórica dessa convicção. Para Tyler, por exemplo, a escala evolutiva ia do estado selvagem (o índio brasileiro) até o estado civilizado (o do europeu contemporâneo), cabendo a este último, e principalmente à sua vanguarda, o homo britannicus, a pesada tarefa de guiar esses povos, imersos no atraso material e na superstição, na longa jornada em direção ao estágio civilizado.
Mas ultimamente a antítese tem sido pouco invocada, embora não necessariamente porque os europeus e os americanos tenham deixado de considerar bárbaros os povos do Terceiro Mundo. Foi o conceito de civilização que mudou. Agora ela não tem mais um sentido de refinamento, de exemplaridade normativa, de paradigma a ser tomado como modelo. A civilização é uma positividade empírica, não uma esfera de valores ideais. Além disso, a civilização deixa de ser um universal, designado por um substantivo singular, e adquire um sentido plural: não existe mais civilização, só existem civilizações. É nesse sentido que Spengler falou na Civilização Ocidental, cujo declínio ele considera inexorável, e que Toynbee constrói sua análise monumental das várias civilizações que se sucederam na História.
O efeito cumulativo dessas tendências é privar o conceito de civilização do seu conteúdo normativo, e portanto esvaziar de sua força polêmica a antítese civilização e barbárie. Não podemos evidentemente aceitar o uso autoritário da antítese, mas não podemos aceitar, tampouco, que ela seja neutralizada pela emasculação positivista do conceito de civilização. Nossa tarefa é reviver a antítese, depurando-a de seu ranço etnocêntrico.
Mas os próprios fatos já não se encarregaram de realizar essa tarefa? A mera leitura dos jornais mostra, além de qualquer dúvida, que não estamos assistindo a um choque de civilizações, no plural, mas verdadeiramente a um choque entre a civilização, no singular, e a barbárie. Os conceitos se tornam visíveis a olho nu.
A civilização é representada pelo sistema de normas que a humanidade criou para evitar o flagelo supremo, a guerra. A civilização é a ONU, que o governo Bush procurou desmantelar por ocasião da invasão do Iraque. Nessa mesma época, a civilização foi a França, que não se esqueceu de que é o país dos direitos do homem. A civilização foi a Alemanha, consciente hoje, nas palavras de Brecht, de que a cadela que pariu Hitler está constantemente no cio, e de que o parto pode ocorrer em vários lugares do mundo. A civilização foi o papa, que possuído por uma ira profética superou sua fragilidade física para denunciar a arrogância dos novos senhores da guerra.
E os bárbaros, quem são? Sem dúvida, os terroristas, como os que perpetraram o odioso atentado de 11 de setembro de 2001. Mas é preciso acrescentar: todos os terroristas, inclusive os que praticam o terrorismo de Estado, como Bush. E bárbaros são os fundamentalistas. Mas todos os fundamentalistas, não somente os tresloucados islâmicos que despedaçam crianças israelenses em ônibus escolares, como os fanáticos judeus que por motivos religiosos se recusam a abandonar os assentamentos ilegais, como também os adeptos dessa sinistra direita evangélica que se instalou no Pentágono e na Casa Branca e cujos aiatolás consideram que a América recebeu do Deus dos Exércitos a missão de salvar a humanidade.
No entanto, creio que devemos resistir à tentação de achar que a própria práxis já reformulou num sentido crítico a antítese civilização e barbárie. A intuição não substitui o conhecimento. Por mais rica que seja a práxis, ela não pode substituir o conceito, e este só pode ser alcançado pelo trabalho teórico, por um trabalho sobre a práxis, pelo que Hegel chamava ''o trabalho do conceito''. Este trabalho deve ter como foco a reflexão sobre um novo projeto civilizatório. Sem um acordo sobre a civilização que queremos, a antítese não teria um conteúdo concreto.
Muito já se escreveu sobre o conteúdo da nova civilização e sobre novas formas de atualizar a antítese. Os principais impulsos vieram da tradição socialista, que transformou a oposição numa disjuntiva: socialismo ou barbárie. Essa fórmula vem de Engels, para quem ''a sociedade burguesa está posta diante de um dilema - ou passagem para o socialismo ou recaída na barbárie''.
A expressão ''socialismo ou barbárie'' foi apropriada por Cornelius Castoriadis, que dirigiu uma revista com esse nome, transformando-a no veículo de campanha contra o stalinismo, mas também contra o trotskismo e depois contra o próprio marxismo. Em nossa época pós-marxista, a idéia de dar um conteúdo socialista ao conceito de civilização pode parecer anacrônica e sectária. Mas o socialismo foi apenas uma das variantes do humanismo iluminista, e a partir desse humanismo podemos esboçar os contornos de uma nova civilização, baseada nos valores da autonomia, da racionalidade e da dignidade, embutidos, como virtualidades irrealizadas, no avesso do projeto da modernidade. Nesse momento, a disjuntiva ''civilização ou barbárie'' deixará de ser uma palavra de ordem a serviço de interesses particularistas e passará a funcionar como a bandeira de um iluminismo moderno.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 14/07/2004