Em minha geração, o papel do intelectual foi sobrevalorizado. Ele era visto como um funcionário do absoluto, como detentor do saber da História, como representante do espírito do tempo. Hoje, ao contrário, ele perdeu suas ambições megalomaníacas e se vê como simples participante da divisão social do trabalho: ele escreve livros, como outros os imprimem, outros os encadernam e outros os vendem. Ele é um profissional como todos os outros. Nada mais que isso.
Ora, crises como as que estamos vivendo mostram que se seu papel não pode ser grandioso como no passado, não pode ser tão humilde quanto aquele a que foi reduzido no presente. Para entendermos isso, precisamos distinguir entre o escritor e o intelectual.
Entendido num sentido amplo, como autor (jornalista, romancista, filósofo, ou cientista), o escritor está inserido na divisão social do trabalho, e como tal é de fato um profissional como os outros. Isso significa, primeiro, que ele tem todo direito de não ser politicamente ativo. Já ultrapassamos a fase em que se exigia de todo escritor que fosse “engajado”. De Guimarães Rosa não se pode exigir senão que produza “Grande sertão”, e não é pouco: tudo o mais é stalinismo. E significa, segundo, que mesmo quando age politicamente, sua ação é comparável à de qualquer outro cidadão, ou seja, seu espaço de atuação é particularista: numa sociedade democrática, ele pertence a um partido político, vota por esse partido, luta para que o programa desse partido se imponha e seja implementado.
Já o intelectual é o escritor que luta politicamente no espaço público e se desprende do seu lugar na divisão social do trabalho, aproximando-se da definição de intelectual dada por Sartre: o intelectual é quem se mete naquilo que não é de sua conta, naquilo que não lhe diz respeito enquanto membro da divisão social de trabalho, porque diz respeito a todos. Ele não pode nem ser politicamente inativo, porque a militância é sua razão de ser, nem ater-se a critérios particularistas. O intelectual tem portanto um duplo estatuto. Na divisão social de trabalho ele é um escritor. E enquanto intelectual, exerce uma militância política, segundo categorias universalistas.
A crise em que estamos mergulhados mostra claramente esse duplo estatuto dos intelectuais.
Enquanto escritores eles são comparáveis a quaisquer outros atores sociais, o que significa que ou não se interessam pela situação atual em Brasília ou a acompanham segundo critérios particularistas, em função do partido com que se identificam. Sua opinião sobre a crise, sobre a culpabilidade ou não do presidente, sobre o número de pessoas implicadas, sobre a própria gravidade dos delitos (caixa dois, envolvendo recursos não-contabilizados, ou corrupção em grande escala, envolvendo o uso de recursos públicos?) vai depender de sua posição política, variando conforme sejam tucanos ou petistas, e se petistas, conforme simpatizem com a facção Campo Majoritário ou com outras facções dentro do Partido.
Mas se quiserem comportar-se como intelectuais, serão forçados, quer o queiram ou não, a desempenhar um papel político ativo e a deixar-se guiar por diretrizes universais. Têm que partir de princípios universais, como os que estão na base do Estado democrático de direito, e colocar a preservação da democracia como valor último, acima de todos os interesses particularistas de partidos e agremiações políticas.
As escolhas políticas concretas que vão resultar da aplicação desses princípios universais podem variar. Em nome da prioridade absoluta que deve caber à defesa da democracia, o intelectual pode advogar a apuração integral de todas as responsabilidades, porque não há crime mais grave que perverter, pela compra de votos, as regras do jogo da democracia. E pode, em nome dessa mesma prioridade, evitar um fundamentalismo moral (Weber falaria em ética da convicção) que contribua para a derrocada das instituições democráticas, abrindo caminho para o aventureirismo ou para a ditadura. O importante é que em sua ação política o intelectual não abra mão do que constitui sua razão de ser: o universalismo, que o induz a pensar e agir em nome de todos. É claro que, como todos os mortais, ele pode equivocar-se, confundindo os interesses particulares de seu grupo ou de sua classe com interesses universais. Ele não está imune nem às auto-mistificações provenientes do inconsciente (Freud) nem às que vêm da ideologia (Marx). Mas já é muito que pelo menos no plano consciente ele parta do universal e vise o universal.
O Globo (Rio de Janeiro) 06/08/2005