Na trilha de Herodes
Acho que todos os brasileiros estamos sentindo uma espécie de complexo de Herodes; co-responsáveis nesse morticínio espantoso de recém-nascidos do qual diariamente jornais, radio e TV dão notícia.
Acho que todos os brasileiros estamos sentindo uma espécie de complexo de Herodes; co-responsáveis nesse morticínio espantoso de recém-nascidos do qual diariamente jornais, radio e TV dão notícia.
Sou leitora contumaz da seção de cartas de leitores dirigidas aos jornais. E tenho visto com freqüenta cartas de pessoas que voltam a defender a pena de morte. Isso me assusta, embora compreenda a revolta de muitos contra o atual estado de coisas: violência e morte em grau jamais alcançado entre nós.
Um estranho que observasse, do lado de fora, o planeta Terra, diria talvez que a sua história, monotonamente, sempre se caracterizou pela luta dos oprimidos contra o opressor e a tentativa de revanche dos dominadores contra os rebelados. Desde a rebelião dos Anjos contra o Senhor, passando pela desobediência de Adão e Eva, chegando até os séculos 19, 20 e 21 (que já está se revelando ser um dos mais ferrenhos).
Antigamente até que se achava bonita a palavra megalópole e todas as suas implicações. Hoje é o grande vilão do mundo moderno. O que foi a Londres imperial, a gigantesca Nova York, poderosa expressão de uma grandeza emergente, tornou-se agora sinônimo de conflito e retrocesso. As megalópoles - tais como as cidades do México, São Paulo, Pequim, Calcutá, são sintomas, não de força e riqueza de um país, mas de miséria e injustiça social. Pois que todas essas grandes metrópoles, passando algumas dos doze milhões de habitantes ou chegando perigosamente aos vinte milhões, representam uma maioria que é vítima da miséria torçal, do desemprego, do subemprego e mais gradações da extrema pobreza.
Sempre me sinto entra e vida e a morte, mais para a morte do que para a vida, neste calor medonho do verão do Rio. Um calor de boca do inferno, um ar pesado que pode ser tirado às colheradas. Em plena praia do Leblon, mesmo com o pé na água, se você riscar um fósforo, ele queima sem tremer até lhe sapecar o dedo. E, nesse ambiente de forno, a gente, talvez por associação, sonha com um iglu, daqueles dos esquimós, todo armado em tijolinhos de gelo, no feitio dos fornos de barro, do sertão. Dentro do iglu, em vez desse suor viscoso que nos gruda a roupa à pele, uma gotinha de água gelada de vez em quando nos pinga no rosto, ou pousa, feito uma pérola, nos pelos de nosso agasalho de couro. O iglu é, assim, uma visão de paraíso, miragem de viajante derrubado pela insolação na areia ardente do deserto.
Pelo interior do Brasil é comum a presença de um cara que é chamado de "propagandista". Aqui pelo estado do Rio, antes da camelotagem desenfreada, ele era chamado também de "camelô".
Parece título de filme B - mas anda mesmo morrendo muita gente. São os recentes conflitos no Bálcãs, são os judeus e palestinos se matando uns aos outros, são as bombas dos terroristas bascos, ou irlandeses, ou muçulmanos, e agora essa tragédia com a plataforma de petróleo, na bacia de Campos.
Vocês já repararam que o Rio e as outras grandes cidades do Brasil não têm mudado muito em matéria de crimes? Na maioria eles sucedem dentro do binômio homem x mulher e se baseiam todos no amor. É fácil concluir, portanto, que o amor é a mais matadeira de todas as paixões.
Morreu com Josué Montello o último escritor de uma geração que, na expressão de Oswald de Andrade, era os "búfalos do norte", que invadiram a Semana de Arte Moderna, deixando-a de lado para sustentar todo um período brilhante, talvez o mais fecundo, da ficção brasileira que se chamou o romance nordestino. Embora a sua temática fosse diferente daquela trabalhada por Franklin Távora, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, mais voltada para os problemas sociais e para a denúncia da seca e da miséria, Josué Montello seguiu a continuidade do romance citadino machadiano, e aqueles de seu tempo como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto e tantos outros. Josué iria agregar uma temática nova, da reconstrução do tempo, vinculada à vida cotidiana do Maranhão, com livros extraordinários, o maior deles "Os Tambores de São Luís", que, com um século de atraso, é o magistral romance sobre a escravidão.
Não me lembro como se chamam as tais bonecas folclóricas russas: são as que são ocas e abre-se a boneca maior e dentro dela há uma menor, e dentro dessa outra menor ainda, e depois outra e mais outra, até chegar à última, que é uma simples miniatura de boneca. No mesmo gênero, também é aquele conto de fadas: “Lá no mar tem uma ilha, dentro da ilha tem um castelo, dentro do castelo tem uma torre, dentro da torre tem um quarto, dentro do quarto tem uma arca, dentro da arca tem uma caixa, dentro da caixa tem um cofre, dentro do cofre tem um frasco, dentro do frasco tem uma pomba, dentro da pomba tem um ovo, dentro do ovo tem uma chave e é essa chave que abre a porta da prisão onde está a princesa encantada”.
Vocês sabem o que é “ fileiros”? (Esse neologismo, “fileiros”- os que fazem fila - não fui eu quem o inventei, já vem fazendo carreira entre os próprios, quer dizer, os fileiros). Aliás, neologismos, principalmente os de gíria, têm quase sempre nascimento humilde. As pessoas mais cultas, ou escutam as palavras difíceis na sua própria casa ou as consultam no dicionário. O ignorante comum tem o próprio dicionário na cabeça, restrito, é verdade, muito faltoso na conjunção dos verbos, mas dono de um toque pessoal inclusive.
"Chegou janeiro, quero meu dinheiro". É o refrão de uma velha história infantil, que nós, meninos, gostávamos de fazer repetir para devidamente nos assustarmos. Era a história de um devedor que se alegrava por ver morto, em dezembro, um credor a quem ele prometera pagar em janeiro a sua dívida. Mas alegrou-se à toa: quando chegou o primeiro de janeiro, deitou-se na rede gozando a impunidade, mal foi fechando os olhos sentiu duas mãos que lhe puxavam as orelhas e escutou uma cantiguinha na voz do falecido: Chegou janeiro, quero o meu dinheiro!" Quando era de noite e nós conseguíamos alguém que pela centésima vez nos repetisse o refrão com sua musiquinha era o triunfo: o resto da noite (provavelmente até meia-noite) nós ficávamos acordados curtindo a assombração com sua cantoria: "Chegou janeiro, quero o meu dinheiro." Essa história da assombração eu creio que é um item inevitável entre quaisquer grupos humanos. O fato é que o ser humano sente, obscuramente mas fundamentalmente, a necessidade de ter medo. E é talvez por causa do medo que sobrevivemos, ou, mais que isso, crescemos em milhões e até em bilhão, povoando quase completamente a Terra. Podia-se criar um axioma dizendo: "Os valentões são os primeiros que morrem". E, como são os valentes os que planejam e organizam os ataques e as resistências, acontece que, perdidos eles, as turbas que os seguiam acabam se confundindo, mergulhadas na desordem e na injustiça. Ou numa direção, acompanhando cegamente um novo líder que emergiu, e a sua perigosa mensagem. Quando falo em liderança, note-se que estou me referindo a condutores normais de povos e não a profetas alucinados como Hitler. Que Napoleão, também guerreiro genial, que trazia dentro de si um estadista. E, assim mesmo, acabou-se desterrado e solitário. É um fato social curioso: os grandes guerreiros suscitam grandes entusiasmos, mas não suscitam correspondente fidelidade. Quando eles querem arrastar seus povos para além de uma linha normal de segurança, vão perdendo a unanimidade dos seus entusiastas. Aqui e ali vão pipocando resistentes, que recuam, à medida que o mestre avança. Como dizia o nosso amado e saudoso Austregésilo de Athaíde:"O grande líder tem sempre que ser doido. Mas, como doido que é, tem que sempre acabar mal."
Há uma série de comemorações dos centenários de figuras ilustres da vida brasileira. Depois de Rachel de Queiroz e Aurélio Buarque de Holanda, agora é a vez de ser relembrado o que Carlos Chagas Filho representou para a nossa ciência. Foi o que fizemos, na Academia Nacional de Medicina, a convite do seu presidente, Pietro Novellino.
Rachel de Queiroz proclamava-se "uma velha senhora sionista". Tinha notórias simpatias pelo "Povo do Livro". Esteve em visita ao Estado de Israel, ocasião em que foi duplamente homenageada: com o plantio de uma árvore em seu nome e com a inauguração de uma bonita creche, na cidade de Telavive. Ela gostava de freqüentar festas judaicas e, gulosa, apesar dos problemas de saúde, fartava-se com os tradicionais guefilte-fish, patê de fígado e apfelstrudel. O seu interesse era tão grande que aprendeu alguns desses pratos com a amiga Paulina Dain Buchmann. Era capaz de ficar horas discutindo temperos. Gostava de cozinhar, embora alimentasse as nossas conversas, no apartamento do Leblon, com um delicioso e incomparável sorvete de manga. Foi assim que conheci o outro lado da grande figura literária brasileira.
O cenário era o auditório da Casa do Marinheiro, no subúrbio da Penha, no Rio de Janeiro. A 4ª. Coordenadoria Regional de Educação (CRE), da Secretaria Municipal, reuniu 180 alunos e professores para ouvir uma exposição sobre o centenário da escritora Rachel de Queiroz, na Maratona Escolar que conta com o apoio institucional da Academia Brasileira de Letras. O apelo da Secretária Cláudia Costin, interessadíssima em valorizar o gosto pela leitura, fora plenamente atendido.