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Rachel é o Brasil

 

Rachel de Queiroz proclamava-se "uma velha senhora sionista". Tinha notórias simpatias pelo "Povo do Livro". Esteve em visita ao Estado de Israel, ocasião em que foi duplamente homenageada: com o plantio de uma árvore em seu nome e com a inauguração de uma bonita creche, na cidade de Telavive. Ela gostava de freqüentar festas judaicas e, gulosa, apesar dos problemas de saúde, fartava-se com os tradicionais guefilte-fish, patê de fígado e apfelstrudel. O seu interesse era tão grande que aprendeu alguns desses pratos com a amiga Paulina Dain Buchmann. Era capaz de ficar horas discutindo temperos. Gostava de cozinhar, embora alimentasse as nossas conversas, no apartamento do Leblon, com um delicioso e incomparável sorvete de manga. Foi assim que conheci o outro lado da grande figura literária brasileira.


A obra de Rachel de Queiroz está mais viva do que nunca, como comprovam as várias edições dos seus livros e a grande comemoração que hoje se faz do centenário da sua fecunda existência.


No teatro cheio de alunos, estagiários e professores, em São Paulo, o Centro de Integração Empresa-Escola promoveu um ciclo sobre a grande autora de O quinze. Sucesso absoluto! A escritora Ruth Guimarães, membro da Academia Paulista de Letras, elogiou a primeira mulher a entrar (1976) para a Academia Brasileira de Letras: "Rachel de Queiroz, na sua obra, fala brasileiro. Ela sempre pensou brasileiro. Rachel é o Brasil!"


Foi além, diante dos aplausos da platéia: "Língua é música, é ritmo. Quando Rachel escreve, com a sua indiscutível musicalidade, é como se estivéssemos conversando com as nossas vizinhas. Utiliza, com imensa propriedade, a língua dos casarões de antigamente".


Na nossa vez de falar, preferimos abordar mais o aspecto pessoal das nossas relações, avivadas pelos muitos anos de convívio na Casa de Machado de Assis. Rachel de tantos grandes romances e milhares de crônicas (revista O Cruzeiro e jornal O Estado de S. Paulo) considerava-se preguiçosa. Puro charme, pois trabalhava como moura. Aliás, outro dos seus grandes romances foi o aclamado Memorial de Maria Moura. Depois do privilégio de ler os originais, perguntamos a Rachel, no seu apartamento do Leblon: "A heroína da história, com o seu caráter firmíssimo e muito corajosa, típica da valente mulher nordestina é você, não é?" A resposta foi uma sonora gargalhada, sinal de que era mesmo.


O livro foi escrito numa linguagem de época, o que exigiu da autora e da sua querida irmã, Maria Luíza, uma pesquisa rigorosa, que também marca o estilo da obra, transformada numa bem-sucedida minissérie da TV Globo, estrelada por Glória Pires. Um conjunto em que tudo deu certo.


Um fato histórico que convém relembrar é a posição política da escritora de Dora, Doralina. Combatida como conservadora, sobretudo porque era prima do ex-presidente marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (Rachel era Alencar por parte de mãe), jamais se furtou, como testemunhamos, a defender pessoas vitimadas pelas injustiças da época. Em companhia de Adonias Filho, de quem foi muito amiga, ajudou escritores a sair da prisão, naqueles tempos em que era crime pensar diferente dos detentores do poder. Sobre esse parentesco, ainda se pode afirmar que ela foi convidada pelo presidente a ser ministra da Cultura, mas declinou enfaticamente: "Não nasci para isso".


Repetia, assim, o mesmo gesto que tivera quando Jânio Quadros a convidara para ser ministra da Educação. Prova completa do seu desinteresse pela carreira política, o que poderia ter trazido prejuízos à sua brilhante vida literária. Rachel, na verdade, foi uma grande acadêmica, fazendo tabelinha com o seu amigo (quase irmão) Austregésilo de Athayde, que a visitava freqüentemente para conversar sobre a Casa de Machado de Assis e o seu futuro.


Correio Braziliense, 18/10/2010