Faz vinte e um anos que sou desta Casa, a que, estatutariamente, estou vinculado ad vitam. Por pouco, outro seria o vosso recipiente ou receptor, numa relação morfológica que vos faz recipiendário, vale dizer, dois nomões quase feios para dizerem, neologicamente, o que vos acolhe e o que é acolhido. Realmente, sinto-me muito mais como acolhedor e vos vejo muito mais como acolhido, numa relação afetuosa de acolhida, em que há ecos de escolha e recolhimento. O fato é que, sobrevivente de vinte e um anos desta minha maneira de ser e não ser solitário, hoje quebra-se essa rotina temporal, que já fazia suspeitar-me homem sem relações com o mundo dos homens, um quase zumbi...
Mas, na tarde mesma em que acabáveis de ser eleito, o vosso e nosso e meu Presidente, Austregésilo de Athayde, seguramente sem vos consultar a tal respeito, me disse que me caberia receber-vos, ou recepcionar-vos, noutro verbão que não me agrada. Assim, entre nomões e verbões desagradáveis – desagradáveis, talvez, só para mim – aqui estou, e vô-lo digo sinceramente, muito feliz de aqui estar nesta função. Levara o Presidente em conta, certamente, primeiro, o fato de sermos ambos cariocas, depois, o fato de por um bom par de anos ou mais havermos servido na delegação permanente do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York, de 1962 a 1964, ano em que o meu amigo e ministro de Estado João Augusto de Araújo Castro me removeu abruptamente para Montreal, como cônsul geral, com o que supunha poupar-me de punições revolucionário-gloriosas – pois que de que outro modo poderia eu aqui referir o estigma que queriam impingir-me e que me foi desde então brasão de honra?
Desse modo, o nosso convívio quase fraterno – que, se não o era, é porque já me sentia vetusto em face de vossa juventude – esse convívio fraterno não teve prosseguimento, senão em episódicos reencontros ao sabor das nossas andanças neste mundo cada vez menor. Mas é bom recordar, daqueles tempos, a colegas seus e meus, quase todos de vossa faixa etária, como Marcos Castrioto de Azambuja, Luís Cláudio Pereira, João Augusto Médici – e seria um rosário de bons nomes, na minha saudade, se quisesse citá-los todos, entre os mais velhos e os já mortos. Poupemo-nos.
Investido quase sempre de tarefas conexas com o pequeno mundo – que não raro petulantemente se crê o mundo – repito, o pequeno mundo da economia, em que luzíeis garra e devoção, ninguém suspeitaria que havia em vosso imo espírito a busca de certa universalidade de cultura que já discretamente vos marcava e que veio depois marcar-vos ostensiva e maduramente, por vossa aplicação a uma obra de alta seriedade crítica – filosófica, sociológica, politológica, histórica, cultural.
É que vindes sendo na carreira partícipe conspícuo de uma das quatro frações em que – pilhérico-seriamente – a divido, faz já bom tempo, isto é, desde quando a exercia. Na prática, cada diplomata é, ao ser nomeado esplendoroso terceiro secretariozinho, beneficiário de uma bolsa, de estudos ou de degenerescências, privilegiada. É que o diplomata – e não apenas o brasileiro, digo-o enfaticamente – o diplomata, por mais árdua que possa ser a sua profissão em certas conjunturas, tem sempre tempo disponível para aperfeiçoar a sua vocação, esse chamamento interior que é uma nuga de livre arbítrio com que cada um, não raro inconscientemente, propende para algo e não para al (que Língua, a nossa, que bela!), para isso e não para aquilo, para o aqui e agora e não para o depois e eterno. Desse modo, se hedonista de base, pode brilhar em requintes mundanos, ou etílicos, ou gastronômicos, ou enofílicos, ou eróticos, ou mesmo transeróticos; se obrador compulsivo, pode produzir relatórios infindos e multiplicados de omnia re scibile, sabendo, embora!, que correrão o risco de serem pouco ou não serem sequer lidos; se artista, pode fazer-se poeta, romancista, viajor de andar e ver, pintor, escultor; se inquiridor, das coisas ou de si mesmo ou dos outros, pode estudar e aprofundar suas buscas e indagações, tendo, não raro – eu diria mesmo quase sempre – os lazeres para transformar a estes em deveres com prazeres estudantescos nas áreas mais díspares, na Economia, na Sociologia, na História, nas Ciências Exatas, na Filosofia – como foi, é e será sempre o vosso caso, pois não sois da grei que busca o PhD pelo PhD... Ao contrário, o vosso caso foi outro, o de vos resignardes aos títulos, pois que, sem ironia, éreis jovem, tínheis saúde e garra, vontade e sonho, e ambição de vos dardes, porque púnheis alegria e esperança nessa coisa frágil e bela que tão mal chamamos condição humana.
Estou certo de que, Deo volente e com a bênção de nosso D. Marcos Barbosa, tudo isso vos conserve até virdes a ser um dos nossos venerandos nonagenários – como o são esse brasileiro sem par, sem jaça, sem medo e sem reproche, que é Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, esse brasileiro que fez de falsos vana verba alicerces da Declaração dos Direitos Humanos, que é Austregésilo de Athayde, e esse brasileiro que faz do amor aos semelhantes, pela Educação e pelo culto da nossa Língua e pela criação poética, um modo de ser exemplar, que é Abgar Renault. Oxalá tais exemplos vos comuniquem a alegria da centenariedade em que vos inscrevereis.
Volto ao terra-a-terra: não vou listar aqui os postos diplomáticos em que servistes, nem as funções que vindes exercendo. Seria burocrático e aparentemente impertinente, ainda que nos coubesse – a nós todos – conhecer dos meandros das sociedades humanas nas suas aparências microcósmicas – ah! o Itamaraty! tão espelho dessas mazelas e grandezas, grandezas enquanto apenas grandezas humanas! Baste-nos recapitular que em Washington, em Genebra (onde vivi, muito antes, dois anos de encantamento com a minha Ruth), em Zurique e em Copenhague, já aqui alçado a embaixador, omitida Nova York, pudestes conviver com mestres e universidades, onde pudestes fazer vossas pós-pós-graduações, em Ciência Política, de 1960 a 1964, em Filosofia, durante igual período e, já na Universidade de São Paulo, vosso doutorado de Politologia, quando, em 1980, havíeis atingido a maturidade de vossos quarenta e seis anos de idade: que, para mim, quase octogenário, são o vestíbulo moderno do il mezzo del camin – já que estamos no caminho de uma expectativa de vida de 73 anos para os homens e, felizmente, de 83 anos de vida para as mulheres – fonte de vida, fonte de amor, fonte de sobrevivência, fonte só – creio – de humanidade: homens de todo o mundo, desuni-vos ante as mulheres!
O imprevisto, da ordem do improvável, cumpre muito de cada vida. Tínheis em 1991 um respeitável cabedal de Cultura de relativa repercussão nacional, quando itinerastes – vede o verbo, e era vossa presunção – por Brasília, na intenção, aliás, de rotina profissional, de logrardes ou obterdes ou conseguirdes ou postulardes um novo posto, fluidos que já eram três anos de Copenhague. A Secretaria de Cultura da Presidência da República estava, por circunstâncias que não cabe aqui recapitular, vaga. Não era, literalmente, sopa no mel – expressão paremiológica que nos avisa de que era bom pôr um pouco de mel na sopa, em outras épocas, o que já cumpri certa vez e tive como contraprova a prova de que os gostos tendem, eles também, a mudar no espaço e no tempo. Sopa no mel, aqui ficastes como Secretário da Cultura e aqui vos pareceu bem concorrer à vaga aberta nesta Casa por meu saudosíssimo e nosso prestante confrade Francisco de Assis Barbosa, para cuja memória abro este parêntese:
No vosso antecessor, podeis ter a certeza de um operário intelectual que pôs em todo trabalho de seu espírito o maior empenho em aperfeiçoar-se e aperfeiçoar a visão dos temas e problemas que enfrentou. A partir de um romance alígero – eufemismo de ligeiro? – e de um Jornalismo inicialmente ligeiro – eufemismo de alígero? –, o nosso Francisco de Assis Barbosa, nosso querido Chico Barbosa, cresceu dia a dia, realizando uma obra que é laurel da Cadeira que já agora ocupais ad vitam. Mais de uma vez vos caberá falar sobre ele e ela, e isso vos será sempre grato, tão ricas são elas, incluindo-se nessa gratidão a gratidão com que vos reouvirei a tal respeito. Fecho, como vedes, o parentesezinho, cheio, entretanto, da minha funda saudade.
Vossa produção intelectual é, no essencial, a relação homem:cultura, sabendo que aí homem quer dizer sociedade:indivíduo, quer dizer, cultura:espaço/tempo, quer dizer planetização:hominização. Estimamos que entre um milhão e oitocentos mil a um milhão e quinhentos mil anos atrás, o Homo erectus já vivia na Terra com uma população de um milhão de seres. Estimamos ainda que, transitando ou emergindo como Homo sapiens, entre 220-140 mil anos atrás, há 10 mil anos apenas, atingíamos 10 milhões de seres, já presentes em quase todos os pontos do ecúmeno, numa dispersão tal que não é inverossímil que houvesse então cerca de 20 mil grupos humanos separados, numa diáspora que, vindo das origens, se manteve desde as origens. Tal diáspora perdurante teria criado 20 mil culturas diferentes. Aí então – embora provavelmente oriundas de um só foco inicial – haveria 20 mil línguas diferentes, pois a Língua é que é o vetor de qualquer cultura, havendo desde sempre uma relação necessária e inseparável entre homem:sociedade:língua:cultura – vale dizer, sem algum desses quatro elementos é de crer que não haja nem os quatro elementos, nem qualquer um, nem quaisquer dois a dois, nem quaisquer três a três.
Todas as sabedorias e Ciências do passado, Históricas ou Naturais, se fundam em documentos e racionalizações e racionalidades. O passado das coisas mentais só se tornou documental com a invenção da escrita. E esta só se fez de uso literoverbal – antes, era apenas contábil – há pouco mais de três milênios. Há três milênios já aparecera o que se viria a conhecer generalizadamente como ásti:pólis:urbs:civitas, quando começa a modernidade do homem, ou seja, a História, em oposição a tudo que fora humanamente anterior, a Pré-História. Essas nomeações, recentes, se justificaram em função da documentação verbal pela escrita e em função de um fenômeno extremamente raro: se todas as culturas se fundaram sobre uma língua, todas as línguas tiveram e têm sua oratura – essa reserva oral de sapiências, parêmias, relatos, mitos e afins –, mas apenas umas muito poucas têm literatura, embora esta tenha sido tentada, mas malograda, num número muito maior.
Vós sois um pesquisador da Cultura naquilo em que ela se corporifica como Literatura, lato sensu. Não sem razão vindes de Platão, e a tradição oral recolhida por escrito ao seu tempo ou pouco antes, a Freud e seus herdeiros, abrangendo um arco de círculo que, na literatação, é presuntivamente completo.
O traço mais emocionante e comovente de vossas análises e sínteses e exegeses é que, realçando com isenção quase ideal o contraditório ou mesmo caótico das documentações entre si, lograis sínteses de uma incomparável – e, por isso, perigosa – coerência e harmonia. É como se requintássemos em ressaltar que, se nos entredevoramos (meu Chico Barbosa enfatizaria entredevorámos), nos entre-exploramos, nos entredesrespeitamos, uma outra marca do homem, a luta pela racionalidade tem sido – ou pelo menos tem tentado ser – a construtora de nós mesmos. E se muita escória se tem gerado no nosso percurso, a só esperança – para vós como para parte cada vez maior da humanidade – está na racionalidade racional, holística, de tudo e qualquer nuga para com tudo. Todos os homens sabemos que não podemos construir um muro que subsista contra a racionalidade obtida por todos com erguer muros, vale dizer, com respeito, no mínimo, dessa coisa a que damos o nome de gravidade. Mas o fato é que frequentemente os muros se erguem onde passam a ser cizânia, agressão, opressão, luta, esbulho, isto é, a racionalidade particular ou setorial com que são erguidos é contrária à nacionalidade holística. Claro que há as interferências ou ambiências ideológicas, que não devemos esquecer – mas cujo não-esquecimento não invalida a tese.
A busca da racionalidade vos levou a ser um homem da Ilustração, e, vendo-lhe as marcas vocativas do seu humanismo ou de sua humanizabilidade, vos fizestes homem do Iluminismo. E o pregais nas vossas obras com a dignidade dos santos, profetas, sábios e filósofos.
Vede, por exemplo, a garra – vem-me esta palavra mais de uma vez como um traço da vossa personalidade – vede a garra, airosa e benévola, é bem verdade, com que buscais levantar os véus da confusão verbal que medra em torno dos níveis e áreas conceituais da palavra cultura e as realidades em que se manifesta. Sabemos que podemos pensar uma Cultura Americana, dentro da qual apreendemos uma Cultura Latino-Americana, dentro da qual se pode ver a Cultura Hispano-Americana, em cujo bojo há uma Cultura Sul-Americana e, assim, dentre várias, a Cultura Brasileira, com, por exemplo, a Cultura Cearense, com a caririense e, no passado, a da Serra dos Padres com que a minha imortal Rachel de Queiroz agora nos oferece seu estupendo Memorial de Maria Moura, saga das origens da fronteira cultural entre a cultura do cangaço e suas origens e a cultura da opressão organizadora, em cujo interior se faria a do xiquexique – e iríamos ao infinito das particularizações ou das generalizações.
Sabemos que, Brasil afora, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, nos vales e montanhas, onde quer que haja brasileiros ou onde quer que se forjem brasileiros, há uma tradição-transmissão rica, diversificada, com uma criação musical saborosa, coreografias, e culinárias, e artes visuais superficiais ou tridimensionais, e a utilitária, e a funerária, ao lado de uma estupenda oratura, cantada ou declarada ou relatada, em trânsito para certa literatura cordelesca que ressuscitam as folhas volantes de certa fase final da medievalidade europeia ou oriental. Sabemos que temos nisso razão para crer que, nesse imenso mosaico, há ainda uma segura intercomunicação entre os elementos limítrofes das suas variedades e variações.
Aqui há uma área de grave ambiguidade judicatória em que vindes buscando assumir posição inequívoca, anterior, fique claro, à vossa atual investidura oficial. Esta nossa classe dominante, que de regra dá a grande fração da dirigente e afeiçoa tanto quanto pode os aparelhos ideológicos do Estado, essa dominância e dirigência vêm montando sobre a ufania dos grandes contingentes humanos nossos um suspeitíssimo louvor, que vem contaminando as doxias domesticadas como se foram ortodoxias, isto é, expressão correta do julgar geral: com todas essas qualidades práticas, estéticas e éticas, somos um povo quase perfeito, que temos quase tudo que importa e que, se não temos, devemos pacientar, pois é quase certo que chegaremos lá. Nossas dominâncias e dirigências, assim, coonestam seu bom êxito de usufrutuários e o malogro de sermos, por cinco séculos, povo sem educação de base, sem alimentação decorosa, sem sanidade, sem sanitariedade, sem morada, sem locomobilidade. Somos o paraíso futuro, não à feição daquele paraíso escolhido como refúgio suicidário por um grande europeu, sim do profetismo louvaminheiro mas tão belo do letrado da frota de Cabral.
Sei que não vos enganais quanto a esta minha iracunda digressão. Sei que percebeis que, procedente ou não procedente, estou opondo essa visão do nosso povo – e, de cambulhada, dos chamados subdesenvolvidos – à esperança palpitante em toda a vossa obra de pensador político e de filósofo. Dela, emerge a mais racional racionalidade, aquela que permite crer que, volentes e benevolentes, os homens saberão espancar, na prática, as mazelas sobre as quais nos vimos destruindo para construir um campo societário algum dia comum, em que possamos conviver na solidariedade. Vossa obra filosófica está profundamente eixada nesse, não direi pressuposto, mas pós-suposto, que extraís da teoria analítica com que discutis, em geral montado sobre textos originais, gregos, latinos, alemães, franceses, italianos, espanhóis, quem sabe que outros mais – vós que, em contrapartida, nos tendes dado (não raro em colaboração com vossa maravilhosa mulher, esposa e companheira Bárbara) traduções de originais complexos e difíceis.
Maravilhados com um futuro tido e inculcado como certamente radioso, vimos – como povo – suportando a objetividade escandalosa da nossa miséria, subproduto de uma concentração de recursos, sobretudo fundiários e também das riquezas e da renda, que raia gritantemente com a mais torpe irracionalidade, concentração que se afirma mais ainda no oligopólio dos meios de comunicação de massa e monopólio da ortodoxia, esta falsamente apresentada como ninho de heterodoxias e particularismos, o que serve, exatamente, para fragmentar a possível futura contestação, que permita transformar o presente cada vez mais gangrenoso num futuro em que se inicie uma relativa lenta longínqua trabalhosa construção de um tímido igualitarismo prudencialíssimo. Nessa ilusão, somos embalados. E vós mesmo vindes fraturando essa concórdia celerada com mostrar, incansável e militantemente, que é uma ilusão também presumir que se possa erigir um futuro nacional sobre nossas expressões ágrafas, típicas de uma humanidade do século XVIII para trás, quando a luta pela concórdia e pela solidariedade tem que ser encetada pelo homem emerso do Iluminismo. Que homem é esse?
Vossos estudos e trabalhos todos permitem que um intérprete, mesmo de medíocre culturalização como eu, veja neles e compreenda mercê deles que – se não houve o mítico e hipócrita fim da História (não estará ela acaso iniciando-se?), se não o houve – há a possibilidade, grifo, a possibilidade de o Homo rationalis criar o mundo do convívio societário intercultural solidário. Vossa obra, a tal respeito, é de poderosa coerência.
A empiria, porém, vos propõe dilemas e problemas de cuja formulação mínima não fujo, aqui e agora, não sei bem se com isso querendo, inconsciente ou subconsciente ou hiperconscientemente exibir-me (do que me penitencio mil vezes) ou se querendo assim vos reptar para vos dardes mais e mais aos vossos estudos e deveres e fazeres (com íntimos prazeres, espero!), graças aos quais a dignidade de vossa obra possa crescer nos horizontes desta nossa aventura espiritual brasílico-brasiliense-brasileira.
Há, na minha angústia de precariamente informado, dados empíricos – volto ao termo – que propõem, a mim, a vós, a nós, a todos, a questão que os encontros internacionais de Genebra, pelos idos de 1949-1950, propunham: o progresso moral tem correspondido ao progresso técnico? A questão me vem desde então obcecando, na busca de uma resposta racional. Vosso esforço, em toda a vossa obra, frutifica não apenas na esperança, senão que mesmo na evidência de que há, lenta embora, a emergência da racionalidade que dará ao homem a concórdia e sobrevivência para todos minimamente desejável, por via do florescimento progressivo da democracia, ainda que por ora sempre ainda monopolizada por dominâncias e dirigências inautênticas, lococêntricas, concentrocêntricas.
Acima ou ao lado ou por baixo das teorias e abstrações e generalizações, há dados concretos, factuais, empíricos que eu – timorato, mas amoroso da vida, ainda que já me preparando para dela despedir-me – não vejo como conciliar com certas convicções escatológicas, ou epifânicas, ou soterológicas. Referi-me em algum ponto desta fala ao fato de que em dois milhões de anos como genus Homo, ou pelo menos em 200-140 mil anos como Homo sapiens, chegamos apenas, há dez mil anos, isto é, ontem, a dez milhões de criaturas. Há dois mil anos, em tempos de Cristo, seríamos entre 350-450 milhões de seres. E só atingimos um mil milhões – que chamamos (nestas nossas latitudes) um bilhão – de homens em 1800. Hoje, duzentos anos depois, isto é, num fracionésimo de tempo, somos quase seis bilhões, numa prolificação proliferante poluidora que acena com prenúncios catastróficos que não se congeminam com os horizontes de esperança e concórdia:
1) a Terra deveria contentar-se com dois bilhões e quinhentos milhões de homens, os sós predadores de sua fecundidade, caso em que, reciclando-se permanentemente, poderia dar-nos seus bens indefinidamente;
2) somos agora já quase seis bilhões, com a particularidade de sermos um bilhão de ricos e quase cinco bilhões de pobres, sendo que cada rico “equivale” a 150 pobres, como se a Terra estivesse sustentando 155 bilhões de fantasmas humanos;
3) a poluição demográfica humana antecipa-nos que, no ano 2025, isto é, em 34 anos, seremos um bilhão e 400 milhões de ricos e – pasmemos – sete bilhões e 600 milhões de pobres.
A partir de 1800, aplicaram-se dois recursos humanos sobre a Terra: a Grande Medicina, que varreu as epidemias e endemias, em todas as latitudes e longitudes, para que nas partes saneadas não houvesse recidiva suscitada pelas partes não saneadas; e a Grande Educação, aplicada tão somente em certas áreas do mundo. Até 1800, as mulheres e casais fecundos tinham tantos filhos quantos Deus fosse servido dar-lhes; mas o Diabo lhes tirava quase todos. A partir, progressivamente, do concurso da Grande Medicina e Grande Educação, as proles se reduziram, voluntariamente, de tal modo, que o incremento das populações locais se estabilizou. Onde a Grande Educação não chegou, a prolificação anterior continuou, mas sem as hecatombes de antes: as prolíficas de vinte filhos, em lugar de os ver reduzidos a três, quatro, tiveram a ventura ambígua de vê-los sobreviver como quinze, dezesseis e mais.
Já existe, assim, a explicação dessa poluição ou pululação ou purulentação. Como conciliar o tempo lentíssimo de maturação de nossa racionalidade com o tempo rapidíssimo de nossa explosão biológica, fisiológica, demográfica, carencial, miserabilizante, hiper somalizante?
Perdoai-me, meu querido Sergio Paulo, se vos proponho – não contestatoriamente – questões a que não sei responder e cujos horizontes previsivelmente catastróficos me angustiam. Será que os grandes decisores irão piedosamente fazer-se corregedores, multiplicando santificadas Hiroximas, Nagasákis, Tempestades no Deserto et caterva?
Quero-vos tão bem e vos admiro tanto, que só explico o diabolismo que me guiou nesta saudação de um modo: suspeito que me dareis uma resposta. Escusa dizer que não só com isso vos delego a certeza do meu tributo de minha nutrida amizade. Aqui nesta Casa vereis, deste instante em diante, que fostes, como todos os outros, eleito pela unanimidade desta confraternidade que, guardando sua independência e autonomia mental e judicatória, se renderá, já se rende, fraternalmente a um novo irmão.
No que me resta de tempo vivituro, terei a alegria de conviver convosco nesta Casa, que passa a ser vossa mais que minha e nossa, por serdes mais jovem e mais vividouro. Sede, pois, bem-vindo!
11/9/1992