Senhores acadêmicos,
neste momento de tanta alegria, gostaria que minhas primeiras palavras fossem para evocar alguém que, se vivo fosse, estaria radiante de felicidade. Peço-vos licença para convidá-lo postumamente.
Meu querido convidado se sentirá bem em vossa companhia e na de várias sombras eminentes que povoam esta Casa. Estará à vontade com Miguel Couto, terceiro ocupante da Cadeira 40, com Clementino Fraga, segundo ocupante da Cadeira 36, com Antônio Austregésilo, terceiro ocupante da Cadeira 30, com Miguel Osório de Almeida, segundo ocupante da Cadeira 22, com Afrânio Peixoto, terceiro ocupante da Cadeira 7, e com Aloisio de Castro, terceiro ocupante da Cadeira 5. Terá um diálogo amável com o segundo ocupante da Cadeira para a qual me elegestes, Francisco de Castro. E conversará longamente, reverentemente, como um discípulo conversa com um mestre 30 anos mais velho, com outro vulto ilustre, o segundo ocupante da Cadeira 5, um paulista chamado Oswaldo Gonçalves Cruz.
Já percebestes, por essa relação de nomes, que meu inesquecível morto era médico. Talvez tenhais notado, pela ênfase que dei a Oswaldo Cruz, que era médico sanitarista. E, pela emoção com que vos falo, é possível que tenhais adivinhado sua identidade: era meu pai. Paulo Luiz Rouanet dedicou toda a sua vida ao combate da febre amarela. Escreveu muito sobre sua especialidade, propondo melhores técnicas de viscerotomia para o diagnóstico dos doentes, sugerindo medidas para ampliar a vacinação antiamarílica e sobretudo discutindo métodos para alcançar o objetivo a que consagrou o melhor dos seus esforços, a erradicação do aedes aegypti. Mas foi principalmente como homem de ação que ele se notabilizou. Tendo passado a maior parte de sua vida profissional no Nordeste, viajava incessantemente em lombo de burro e de jipe para inspecionar postos e detectar surtos epidêmicos. Quando não havia hotéis, dormia em pousadas; e, quando não havia pousadas, passava a noite em choupanas. Uma noite, aceitou a hospitalidade de um matuto. No dia seguinte, ao levantar-se da rede, descobriu que o dono da casa era leproso. Tanto heroísmo acabou dando seus frutos. Leio num trabalho seu, Serviço Antiestegômico Rural Intensivo, de 1941:
Agora, se me permitem, uma afirmativa arrojada que me valerá na certa o amável epíteto de visionário: estou convencido de que conseguiremos, em futuro próximo, erradicar o aedes aegypti do Nordeste do Brasil. Tivesse eu procuração dos demais colegas, não hesitaria em declarar: de todo o Brasil.
Não, meu pai não estava sendo visionário. Pouco depois, a profecia se realizava, e salvo reincidências esporádicas a febre amarela pôde ser considerada extinta no Brasil. Se falo em meu pai neste momento, é porque foi sua extraordinária sensibilidade literária que me infundiu o amor pela Cultura, ao qual devo hoje o privilégio de vosso convívio. Graças a ele aprendi a saborear autores como Anatole France, que minha geração já não lia. Passávamos horas a fio discutindo sobre nossos escritores favoritos, meu pai defendendo a supremacia de Eça; e eu, a de Machado. Mas, como os contendores eram tolerantes, as duas igrejas rivais acabavam se reconciliando, ecumenicamente, num superior sincretismo machado-queirosiano. Invertíamos as posições, e, enquanto meu pai elogiava o delírio de Brás Cubas, eu dizia coisas como “a forma de Vossa Excelência é um mármore divino com estremecimentos humanos” ou citava trechos inteiros de Os Maias.
Você se lembra, não é, minha mãe? Você assistia a nossos debates acalorados, sorrindo. É que você sabia que a Literatura Universal é algo mais que um baile a dois em que Capitu dança uma valsa com Jacinto. Você me iniciou no Teatro Clássico Francês, em Lamartine, em Hugo e em Claudel, esse mesmo Claudel que um dia visitou seu colégio, em Petrópolis, e que você saudou quando tinha dez anos de idade. Graças a você, li muito cedo a obra de vários membros desta Casa, como Alberto de Oliveira e Olegário Mariano, que você conheceu pessoalmente nos anos de 1920, em casa de Laurinda Santos Lobo, e cujas poesias você sabia declamar como ninguém.
Pensei muito em você, quando li em Francisco de Assis Barbosa que um dos professores de Lima Barreto tentava, em vão, incutir em seus alunos o amor por Racine, martelando, desesperado, versos como estes:
Je jouissais en paix du fruit de ma sagesse;
Mais un trouble importun vient, depuis quelques jours
De mes prospérités interrompre le cours.
Un songe (me devrais-je inquiéter d’un songe?)
Lembrei-me imediatamente da passagem – o sonho de Athalie – que você declamava para mim quando menino. Dócil, minha memória supriu os versos que faltavam:
C’était pendant l’horreur d’une profonde nuit,
Ma mère Jézabel devant moi s’est montrée
Comme au jour de sa mort pompeusement parée.
Ses malheurs n’avaient point abattu sa fierté;
Même elle avait encor cet éclat emprunté
Dont elle eut soin de peindre et d’orner son visage
Pour réparer des ans l’irréparable outrage.
Bem vedes, senhores acadêmicos, que eu tinha razão de convidar para esta solenidade meu pai morto, como tive razão de dirigir-me à minha mãe, que ali me escuta, toda ereta, com a posição decorosa que aprendeu no Colégio Sion, há oitenta anos, toda orgulhosa, sem saber que é só a ela, a ela e meu pai, que devo a honra de estar hoje entre vós.
Senhores acadêmicos,
entre os hábitos acadêmicos está o ritual de descobrir semelhanças, nos discursos de posse, entre os vários ocupantes de uma Cadeira. Confesso que falhei miseravelmente nessa busca de analogias. O patrono da Cadeira 13 e três dos seus ocupantes foram bacharéis em Direito, mas esta não é uma Cadeira de bacharéis, pois Taunay tinha formação científica, e Francisco de Castro era médico. Francisco Otaviano e Taunay eram cariocas, mas não se trata de uma Cadeira cativa de cariocas, pois Francisco de Castro era baiano, Martins Júnior e Sousa Bandeira eram pernambucanos, Hélio Lobo era mineiro, Augusto Meyer era gaúcho, e Francisco de Assis Barbosa era paulista. Otaviano, Sousa Bandeira e Hélio Lobo desempenharam funções diplomáticas, mas os estraga-prazeres Taunay, Francisco de Castro e Meyer atrapalham minha tentativa de dizer que o Itamaraty é nossa matriz comum. E se dissesse que o amor pelas Letras e pelas Artes nos une a todos? Lapalissada pífia, meu caro Rouanet, tão absurda quanto dizer que todos os ocupantes de uma Cadeira na Academia de Medicina têm em comum o fato de serem médicos. E se lembrasse o destino horripilante dos que se sentaram nesta Cadeira, vítimas de uma espécie de maldição de Tutankamen? Também não; se dois morreram antes da posse, Hélio Lobo aguentou firme na Cadeira fatídica durante 40 anos.
De repente, descubro o que essa Cadeira tem de característico: a Cadeira 13, por não ter uma vocação própria, ilustra a vocação da Academia, que é o pluralismo. A Academia é um agregado de diferenças, diferenças regionais, diferenças profissionais, diferenças políticas, diferenças de idade, diferenças de sexo. Há mulheres e homens, jovens e velhos, conservadores e progressistas, piauienses e mineiros, engenheiros e advogados. Somos a unidade dos contrários, somos uma concordia discors, somos a harmonia dentro da diversidade. Pois bem, que outra coisa é a Cadeira 13, senão uma réplica em miniatura dessa variedade? É por isso que, por mais que eu desse tratos à imaginação, não conseguia descobrir afinidades entre os ocupantes da Cadeira. Pois sua alma está na obstinada ausência de uma alma comum. O que Graça Aranha disse da Academia pode se aplicar a essa fração da Academia que é a Cadeira 13; ela é “a divergência das nossas ideias, o absoluto de cada um formando o relativo de todos”. Ele acrescentou: “A verdade são quarenta bocas que se contradizem.” Eu não diria o mesmo dos sete ocupantes desta Cadeira, porque eles não se contradizem sempre, mas diria que são sete vozes inconfundíveis, cada uma com seu timbre próprio, com sua modulação característica. Sim, foram vozes diferentes. O Patrono, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, foi orador e jornalista, artífice do Tratado da Tríplice Aliança, político que renegou a Política, essa “Messalina impura”, e de quem, ativo como foi, certamente não se pode dizer que tenha passado “pela vida em branca nuvem” e adormecido “em plácido repouso”.
O primeiro ocupante, Taunay, defendeu teses liberais, como o casamento civil, a grande naturalização, a separação da Igreja e do Estado, a liberdade de cultos. Com uma bibliografia extensíssima, Taunay ficou famoso por dois livros, uma narrativa militar e uma novela, A Retirada da Laguna e Inocência. É de rigor definir esses livros, respectivamente, como a Anábasis brasileira e como o Paul et Virginie brasileiro, o que transforma esse carioca do século passado num misto de Xenofonte e Bernardin de Saint-Pierre.
Os ocupantes seguintes foram os dois que não tomaram posse: Francisco de Castro e Martins Júnior. O primeiro foi médico, filólogo, erudito e, conforme Rui Barbosa, tinha uma intuição quase divinatória em seus diagnósticos, o que me fez pensar, não sei por quê, nesse outro gênio do diagnóstico, o Dr. Cottard, contemporâneo de Francisco de Castro e mais verdadeiramente imortal que este, porque, existindo apenas como personagem de Proust, viverá para sempre nas páginas da Recherche. Martins Júnior foi um dos representantes da Escola de Recife e celebrou em versos hugoanos a Ciência, o progresso e o século XIX, que, segundo ele, impor-se-ia “ao culto dos pósteros” como se impõe à escuridão “um relâmpago, um raio, um brilho, uma explosão”. Diante da condenação pelo fascismo dos grandes ideais do século passado e da denúncia pós-moderna da Ciência e da Razão, confesso que perco a vontade de sorrir com esses versos absurdos: é melhor consagrar um soneto ao binômio de Newton que celebrar a estética da guerra.
Seu sucessor, Sousa Bandeira, é mais famoso hoje por ter sido o tio de Manuel Bandeira que por ter escrito Memória Histórica e Razões Finais. Mas, para Alceu Amoroso Lima, Sousa Bandeira era uma requintada figura de humanista e de humorista, homem da medida e do bom gosto, que citava Goethe e Shakespeare no original.
Hélio Lobo foi antes de tudo diplomata e autor de livros sobre História Diplomática. Ao recebê-lo, seu superior hierárquico Lauro Müller louvou em Hélio o fato de que escrevia sobre assuntos de seu ofício, em vez de imitar alguns dos seus colegas, que compunham comédias entre dois pareceres e transformavam um despacho num canudo, soprando através dele músicas de opereta. O pan-americanismo advogado por Hélio Lobo esteve em eclipse durante muitos anos, pois pressupunha uma solidariedade com os Estados Unidos que parecia anacrônica na era do conflito Norte-Sul, mas o declínio do terceiromundismo e do movimento não-alinhado pôde dar uma atualidade inesperada a várias opiniões do autor.
O ocupante seguinte, Augusto Meyer, foi de longe o mais fino e o mais completo dos nossos ensaístas: filólogo, folclorista, lexicógrafo e crítico literário, Meyer se dava ao luxo, também, de ser um excelente poeta. Alceu Amoroso Lima vê nele uma segunda vaga de germanismo em nossas Letras, na linha da espiritualidade mística que vem de Ruysbroek e, passando por Goethe e Hoelderlin, deságua em Stefan Georg e Scheler, um germanismo mais genuinamente humanista que o primeiro, introduzido por Tobias Barreto, e que estava contaminado pelos ideais guerreiros do Kulturkampf.
Enfim, em 1971 empossou-se Francisco de Assis Barbosa. A data é duplamente simbólica: 13 de maio, aniversário da Lei Áurea e aniversário de Afonso Henriques de Lima Barreto.
Senhores acadêmicos,
vi Francisco de Assis Barbosa apenas uma vez, aqui mesmo na Academia, quando ele já estava combalido pela doença e minado pelo pessimismo. Não o conheci, portanto. Só tinha, por isso, vias indiretas para chegar até ele.
A mais óbvia era a leitura. Li virtualmente tudo o que ele escreveu, o que me fez conhecer melhor o pensador, mas não necessariamente o homem. Para isso, foram mais úteis os resumos biográficos. Mas, em sua secura notarial, esses dados eram obviamente insuficientes para a reconstrução de uma vida.
Recorri, por isso, a um segundo método: as entrevistas com pessoas que privaram da intimidade de Francisco de Assis Barbosa e cuja gentileza aproveito para agradecer. Depois de todos esses depoimentos, tive a impressão de que finalmente se rompera o gelo. Francisco de Assis Barbosa e eu tínhamos ficado amigos: não amigos por toda a vida, mas amigos para além da vida. Passei a chamá-lo, familiarmente, de Chico, como faziam seus outros amigos. Sei que ele não se incomodaria com isso e espero que Yolanda também não se importe com essa intimidade.
Sim, hoje me gabo de conhecer Chico bastante bem. Sei que ele tinha um temperamento explosivo, mas sei também que era o melhor amigo dos seus amigos. Como Homero Senna, seu conterrâneo de Guaratinguetá, condiscípulo na Faculdade de Direito e companheiro de trabalho na Casa de Rui Barbosa. Como Pedro Nava, que conversou longamente com Chico na véspera de sua morte trágica. Como Afonso Arinos, cuja mulher, Anah, telefonou uma vez para Yolanda dizendo que Afonso estava com saudades dos seus quitutes. Os dois casais almoçaram, e depois Yolanda e Anah puseram seus maridos para dormirem a sesta, um ao lado do outro, deixando as mulheres livres para conversarem em paz. A morte de Nava e Arinos chocou profundamente Chico. Outro amigo fraterno foi Antônio Houaiss, com quem almoçava quase todas as semanas e que, segundo D. Yolanda, impunha enorme respeito a Chico. Outro grande amigo foi Américo Jacobina Lacombe, por quem ele se bateu junto a Juscelino, quando o presidente estava a ponto de cometer contra Lacombe uma grave injustiça. Chico tinha tanto carinho por Lacombe que, quando este se operou, ia visitá-lo diariamente no hospital. E no entanto essa amizade começou com uma briga, quando Chico criticou no jornal a nomeação de Lacombe para a Casa de Rui Barbosa, dizendo que queriam pôr a camisa verde na águia de Haya. Aliás, diga-se de passagem que o entusiasmo do Dr. Lacombe pelo Integralismo não durou muito. Certa vez, ele e seu amigo Galotti foram redigir um documento contra Plínio Salgado. Lacombe, tinha escrito: “Os abaixo-assinados acordam em que...”, quando Galotti cortou: “acordam, e ponto final.”
Com toda essa afetividade, Chico podia ter antipatias violentas. Adorava uma boa polêmica. Publicava artigos contra figurões poderosos. Era tão pouco convencional que, estando no poder, se comportava como um anarquista. Certa vez foi convencido a “tapar um buraco” na Casa de Rui, ocupando o cargo de secretário-executivo: o único meio de vencer sua relutância foi garantir-lhe que o martírio duraria apenas trinta dias. Chico ficou sessenta, sem reclamar. Diante da estranheza dos seus funcionários, ele respondeu: “Estou gostando. Ficar no poder é bom porque a gente pode tomar água mineral com gás.”
Não há nenhuma dúvida quanto às preferências esportivas de Chico: ele torcia, inexplicavelmente, pelo América Futebol Clube. Mais difíceis de precisar eram suas opiniões políticas. É evidente que eram progressistas, mas não seria fácil enquadrá-las num rótulo. Apesar de sua amizade por Astrojildo Pereira, tanto quanto sei nunca foi marxista. Foi amigo de Samuel Wainer, mas também teve uma fase lacerdista. Digamos que era um nacionalista sincero, sem nenhum tipo de xenofobia, e inimigo de qualquer forma de preconceito ou discriminação.
Chico era religioso? Alguns garantem que não. Mas D. Marcos conta que, em seus últimos anos, Chico assistia às missas cantadas de domingo no Mosteiro de São Bento e recebia a comunhão. O Dr. Lacombe também afirma que o Catolicismo de Chico era sincero e aponta o Padre Ávila como um dos principais responsáveis por sua conversão.
“Para se compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente viveu. É saber como ele morreu; como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte, e como Ela o abraçou”. Ocorre-me esta frase de Lima Barreto, que Chico cita na sua biografia do escritor, a propósito da morte do próprio Chico. Ele morreu em São Paulo, rodeado do carinho dessa companheira extraordinária que foi Yolanda. Tinha viajado a São Paulo para participar da banca para um concurso de livre-docência. O candidato era Nicolau Sevcenko, de quem tinha prefaciado um livro. A viagem foi uma insensatez, pois Chico estava muito doente. Não devia ter ido, mas foi. Seu compromisso último foi com o mundo das ideias, ao qual tinha dedicado sua vida, e com os deveres da amizade, dos quais nunca se esquivou.
A personalidade intelectual de Francisco de Assis Barbosa foi bastante múltipla. Ele se interessou pela Literatura. Foi jornalista. Foi historiador. E foi biógrafo.
Senhores acadêmicos,
que eu saiba, Francisco de Assis Barbosa só tentou fazer Literatura de Ficção uma única vez, quando perpetrou, em 1934, a novela intitulada Brasileiro Tipo 7. É a história de uma mediocridade municipal que acaba virando membro da Assembleia Nacional Constituinte e tem uma síncope cardíaca quando vai fazer seu primeiro discurso. Chico morria de vergonha desse pecado de juventude, e não se pode dizer que não tivesse razão. Às vezes, podemos sentir em primeiros esboços literários os germes de uma grandeza futura, mas positivamente não foi o caso de Brasileiro Tipo 7.
Foi como crítico e historiador literário que Chico realizou sua vocação pelas Letras. A brevidade do tempo me impede de comentar individualmente seus inúmeros ensaios e prefácios na área da Literatura. Citarei apenas, entre vários outros, O Romance, a Novela e o Conto no Brasil, publicado em 1951; uma importante introdução, em 1957, à obra de Antônio Alcântara Machado; ensaios sobre Domingos Caldas Barbosa, José de Alencar e Manuel Bandeira, publicados em Achados do Vento, de 1958; um prefácio de 1964 a uma seleta de contos de Machado de Assis; uma apresentação, em 1965, de A Sucessora, de Carolina Nabuco; uma defesa, em 1975, do regionalismo literário em prefácio ao teatro de Francisco Pereira da Silva; uma apresentação, em 1983, de livro sobre nossa belle époque cultural; e em 1988 uma análise magistral da obra de Manuel Bandeira: 100 Anos de Poesia, o último estudo de fôlego que Chico lançaria na área da Literatura.
No entanto, era nessa mesma área que Chico estava trabalhando quando a morte o surpreendeu – a publicação da correspondência entre Manuel Bandeira e Ribeiro Couto.
Senhores acadêmicos,
jornalista, Francisco de Assis Barbosa o foi toda a vida. Ainda estudante, foi redator-chefe da revista da Faculdade, A Época, e desde 1934 trabalhou em jornais como A Nação, O Imparcial, A Noite, A Noite Ilustrada, Vamos Ler, Carioca, Para Todos, Correio da Manhã, Diretrizes, O Estado de S. Paulo, Diário Carioca, Folha da Manhã e Última Hora. Mas poderíamos dizer que, além de ter sido sempre jornalista, Chico foi antes de tudo um jornalista, mesmo quando se dedicava a outros gêneros literários?
Creio que ele responderia afirmativamente. Sua coletânea Achados do Vento contém prefácios, aulas, conferências, ensaios e um único trabalho que poderia ser considerado jornalístico, uma entrevista com Graciliano Ramos, e no entanto o autor não hesita em considerar jornalísticos todos os textos enfeixados: “Entendi chamar a tudo reportagens literárias, pois, na verdade, jamais consegui me libertar do figurino jornalístico. Em tudo o que faço há sempre o traço do repórter.”
Excesso de modéstia ou excesso de orgulho? Depende, pois não estou seguro se Chico via no Jornalismo um gênero menor ou a forma de expressão mais ajustada aos ritmos do nosso tempo. Em todo caso, não era “apenas” um repórter, se a palavra é tomada como sinônimo de autor apressado e superficial, que capta as impressões efêmeras do dia, sabendo que elas terão envelhecido no próximo número do jornal.
Era, sim, um repórter, no sentido de usar sempre uma linguagem simples, recusando com a ironia de quem passara pela experiência do modernismo todos os pedantismos acadêmicos. Era um repórter, também, em sua capacidade de transmitir ao leitor informações complexas de um modo inteligível, em seu talento para apresentar fatos e interpretá-los, em sua competência para estabelecer ligações rápidas entre episódios e encadeamentos instantâneos entre causa e efeito. Nisso, ele não era apenas um repórter, era um grande repórter. Repórter político, como quando cobriu a Constituinte de 1946. Repórter das vidas humildes, como quando entrevistou Fidélis, o porteiro da Academia, que gostava de usar palavras como “assaz”, “porquanto”, “quiçá” e “alhures”. E repórter das Letras e das Artes, entrevistando com igual mestria representantes de todos os segmentos culturais, Villa-Lobos e Magdalena Tagliaferro na Música, Cardoso Júnior na Pintura, Augusto Frederico Schmidt na Poesia, Mário de Andrade na Crítica e no Ensaio.
Uma das primeiras entrevistas de Chico, e sem dúvida uma das mais rumorosas, foi a feita em novembro de 1941 com o Coronel Dilermando de Assis, que baleara Euclides da Cunha.
Em julho de 1942, é a célebre entrevista com Lindolfo Collor, realizada poucos meses antes da morte do ex-ministro do Trabalho. Talvez tenha sido o testamento intelectual do gaúcho, no qual ele reafirma com todas as forças sua fé na liberdade.
Em outubro, Chico entrevista Graciliano Ramos por ocasião dos seus 50 anos. O escritor conta sua vida em Quadrângulo e Palmeira dos Índios. Nesta, Graça colaborava no semanário da cidade, O Índio, dirigido por um padre. Certa vez, em plena Semana Santa, publicou um elogio de Judas. Chico pergunta, desconfiado: isso saiu no jornal do padre? Saiu, disse Graça secamente.
Em janeiro de 1944, Francisco de Assis Barbosa faz uma entrevista-testamento com Mário de Andrade. Mário aprofunda sua autocrítica e a denúncia de sua geração, que fizera na conferência do Itamaraty dois anos antes. Combate a despolitização dos intelectuais, faz uma apologia exaltada da Arte participante e despreza a preocupação do artista com seu próprio umbigo, num momento em que a própria civilização está ameaçada. Em instantes assim, diz Mário: “O artista não só deve, mas tem que desistir de si mesmo. Diante duma situação universal de humanidade como a que atravessamos, os problemas profissionais dos indivíduos se tornam tão reles que causam nojo.”
A entrevista é curiosa, também, porque contém o que constitui possivelmente a palavra final de Mário na questão da “língua brasileira”. Afastar-se da sintaxe lusitana não significa uma opção pela anarquia. Para evitar a barbárie, Mário defende a necessidade de uma norma culta e de uma padronização ortográfica, qualquer que ela seja.
Em 1946, Chico faz com Otávio Tarquínio de Souza o que suponho ser uma de suas últimas entrevistas. O grande historiador do Império advoga para o Brasil “um regime de verdadeira liberdade, liberdade para todos e não somente para classes privilegiadas”. Não podia haver melhor fecho para essa fase da vida de Chico.
Senhores acadêmicos,
Como historiador, Francisco de Assis Barbosa escreveu sobre todas as fases da História do Brasil, de D. João VI a Juscelino Kubitschek. Mas seu grande interesse foi a República Velha.
Não me atreveria a dizer que esse interesse tenha vindo do fato de que Rodrigues Alves houvesse nascido na mesma cidade de Guaratinguetá em que Chico veria a luz, 66 anos depois, mas não é impossível que a estátua do conterrâneo ilustre, no antigo Largo do Rosário, tenha capturado a imaginação do menino e influenciado o rumo de suas pesquisas futuras.
Uma das ideias-força de Francisco de Assis Barbosa quando ele estuda esse período é a necessidade de manter a unidade nacional contra os regionalismos e estadualismos defendidos pelos patriarcas da Velha República. As antigas províncias eram agora Estados quase soberanos. Chico não tem a menor simpatia por esse pseudofederalismo, na verdade um álibi para a legitimação dos poderes locais, das oligarquias de província, dos feudalismos caboclos, sustentados por jagunços e coronéis. A face nacional desse federalismo de coronéis era igualmente detestável – a política dos governadores, que mais tarde acabou sendo a de apenas dois governadores, a chamada política do café com leite, que levou à alternância na Presidência e na VicePresidência de mineiros e paulistas. Em suma, durante a Velha República, para horror de Chico, não prevaleceu o federalismo centrípeto de Rui – “os que partem dos Estados para a União, em vez de partir da União para os Estados, estão transpondo os termos do problema” – e sim o centrífugo, de Campos Salles – “o que pensam os Estados pensa a União”.
Outra característica de nossa vida republicana que desperta especial aversão em Chico é a fraude eleitoral. As eleições a bico de pena e as atas falsas são fustigadas com uma veemência pouco usual entre os historiadores e infrequente mesmo em Chico. É que este seguia nisso o exemplo de Rui Barbosa, autor de um libelo tremendo contra a fraude nas eleições de 1910. Para Chico, o alistamento, o ato de votar, a apuração, o reconhecimento, tudo não passava de “asquerosa ficção” praticada sem pejo pelos donos do poder.
Mas valia a pena, realmente, lutar pelo Liberalismo de fachada da primeira República? A fraude eleitoral era uma transgressão das regras aceitas pela própria República, mas essas regras eram em si viciadas, pois a exclusão dos analfabetos reduzia a muito pouco a participação popular. Ainda que pudesse exercer em sua plenitude os direitos políticos, poderia o povo melhorar suas condições materiais de vida? Chico rastreia o desenvolvimento da questão social na República. Ela reprime o anarquismo e a greve, deportando os operários estrangeiros. Ao mesmo tempo, ensaia as primeiras tentativas de legislação trabalhista, com a aprovação no quatriênio Hermes de medidas como o dia de oito horas e a proibição de trabalho noturno para mulheres e crianças. Em geral, essas medidas permaneceram letra morta. Epitácio e Bernardes não se preocuparam a sério com o problema. Quanto a Washington Luis, é certo que ele não formulou exatamente nos termos que ficaram famosos a ideia de que a questão social era uma questão de polícia, mas não ficou longe disso.
A verdade é que ainda não havia soado, no Brasil, a hora do Socialismo e nem sequer do trabalhismo. Muito realisticamente, Chico percebe que a prioridade, nessa fase, era a criação de um Capitalismo nacional, pela consolidação de uma burguesia interna capaz de opor-se tanto às oligarquias rurais como aos interesses econômicos externos. Modernização conservadora, portanto, encarnada pelos jovens do chamado “Jardim da Infância”, agrupados em torno de Afonso Pena: Miguel Calmon, Carlos Peixoto, João Pinheiro. O programa desses jovens políticos era francamente desenvolvimentista, para usar um anacronismo que não intimidava Chico: uso do álcool como combustível para substituir o petróleo, imigração europeia, criação de núcleos agrícolas, exploração das riquezas minerais e industrialização através da siderurgia. Com a morte quase simultânea de Afonso Pena e de João Pinheiro, os velhos oligarcas voltaram à cena, com mais força que nunca. Só muito mais tarde, com a Revolução de 1930, os fundamentos da Velha República viriam a ser contestados a sério.
Entre esses fundamentos, havia também os ideológicos. Um dos que Chico verbera com mais desprezo é o bovarismo republicano, a mania de parecermos o que não éramos. Data daí nosso horror de sermos vistos aos olhos europeus como uma nação de negros. Foi o mesmo bovarismo que impulsionou os chamados “melhoramentos urbanos” – precisávamos ter avenidas tão amplas quanto as de Paris, donde a “haussmanização” do Rio por Pereira Passos no Governo Rodrigues Alves e as grandes obras realizadas por Epitácio em 1920 para a recepção do Rei Alberto e em 1922 para a comemoração do primeiro centenário da Independência.
Bovarismo que Chico identifica, também, na Literatura, inteiramente dominada pelos cânones franceses, inclusive no Modernismo, no fundo uma estética importada. Para Chico, a revolta modernista tinha sido superficial e nisso tinha analogias com o Tenentismo: este se satisfazia com o voto secreto; e o Modernismo, com a liberdade gramatical.
O balanço da Velha República parece ser, assim, maciçamente negativo. Foi a época do Liberalismo Formal, que excluía o povo; da fraude, que pervertia o próprio Liberalismo Formal; da autonomia estadual à outrance, que colocava o poder local acima dos interesses nacionais; da hegemonia dos grandes estados, que transformava numa mentira o igualitarismo federativo; da política econômica agroexportadora, que impedia a industrialização. Mas será engano meu? Sinto às vezes em Chico, nessa imersão tão longa na Velha República, uma identificação inesperada, uma certa nostalgia por um tempo perdido para sempre, uma saudade inexplicável por todos esses “mortos de sobrecasaca”. Notamos isso, por exemplo, no prefácio que escreveu para o livro Um Sertanejo e o Sertão, autobiografia de um “coronel” da Velha República, um dos produtos típicos daquela estrutura agrária semifeudal que Chico detestava. Ora, esse “coronel” é para Chico um ancião respeitável, “baraúna que dá sombra e alento, árvore e homem, uma coisa só, o mesmo tronco rugoso e forte... entre os seus filhos, netos e bisnetos, sereno, lúcido, numa dignidade de uma vida simples, ascética, modelar”. Não é mais o crítico do latifúndio que escreve, é o apologista do patriarcado rural. Gilberto Freyre não teria evocado com mais emoção esse mundo senhorial defunto. Por quê? Deixo a outros a explicação do enigma.
Senhores acadêmicos,
chegamos, enfim, ao último estrato da personalidade intelectual de Francisco de Assis Barbosa, a biografia. É justo que esse estrato venha no final, porque, como biógrafo, Chico resume, integra e ultrapassa o homem de letras, o repórter e o historiador.
Não duvido que a posteridade venha a admirar em Francisco de Assis Barbosa sobretudo as suas biografias e, de modo muito particular, a sua obra-prima, A Vida de Lima Barreto. Em todo caso, este é o veredicto dos contemporâneos.
É que a Biografia, como gênero, nos fascina cada vez mais, o que não deixa de ser paradoxal, porque ela tem como foco o indivíduo, este mesmo indivíduo que está sendo banido pelo espírito do tempo.
O paradoxo é antigo. Já o século XIX desvalorizava o indivíduo em nome de abstrações coletivas como os povos, as raças e as classes, e no entanto nunca a biografia floresceu tanto.
Hoje em dia cresce mais ainda o interesse pela Biografia, e isso apesar da Nova História, do nouveau roman, do fim do referente, da substituição lacaniana do moi pelo ça, da dissolução saussuriana do falante individual no anonimato do código linguístico e de todos os modismos galo-estruturalistas que, de uma ou outra forma, decretam o fim do sujeito. Ao filósofo neo-hegeliano que diz que só o todo é verdadeiro e ao intelectual pós-moderno que proclama a morte do homem, o biógrafo e seu leitor respondem, não repetindo, como Adorno e Benjamin, que o todo é sempre falso, ou como os humanistas retardários, que o sujeito sempre sobreviverá aos que querem assassiná-lo, mas escrevendo e compondo biografias, ou seja, reinventando um sujeito singular e mergulhando numa vida irrepetível. Simplificando bastante, podemos dizer que Chico escreveu, por um lado, biografias pouco exigentes – as destinadas ao grande público, como Retratos de Família, e as destinadas ao público infanto-juvenil, como Santos Dumont Inventor e Machado de Assis em Miniatura. E, por outro lado, biografias extremamente refinadas – destinadas a um público adulto de alto nível de maturidade intelectual, como A Vida de Lima Barreto e Juscelino Kubitschek – Uma Revisão na Política Brasileira.
Seria um erro subestimar as biografias do primeiro grupo. Retratos de Família é uma deliciosa coletânea de depoimentos sobre pessoas ilustres, feitos por seus filhos e filhas, naturalmente um tanto transfigurados pela piedade filial, mas cheios de informações fascinantes. Santos Dumont Inventor se destina a leitores infantis; e Machado de Assis em Miniatura, a adolescentes: num gênero talvez menor, duas pequenas obras-primas.
Mas esses trabalhos despretensiosos, significativos como são, não podem comparar-se às duas grandes biografias de Francisco de Assis Barbosa, A Vida de Lima Barreto e Juscelino Kubitschek – Uma Revisão na Política Brasileira.
É certo que A Vida de Lima Barreto é a melhor das obras biográficas de Francisco de Assis Barbosa e muito provavelmente o mais importante dos seus livros. É uma via insubstituível para conhecer Lima Barreto e fornece um prisma privilegiado para conhecer através dele as três primeiras décadas de nossa vida republicana.
Esse resultado é alcançado pelo perfeito equilíbrio entre os dois planos. Francisco de Assis Barbosa mostra como a História externa modelou a personalidade de Lima: ele foi um produto do regime escravocrata no qual nasceu e da estrutura social injusta da República, que perpetuou as monstruosas iniquidades sociais herdadas do século passado e manteve intacto o preconceito racial. Por outro lado, Chico deixa claro que Lima foi, como jornalista militante e como romancista crítico, testemunha, observador e protagonista de sua época, e nesse sentido sua história de vida agiu sobre a História coletiva na qual estava inscrito.
Chico não teria obtido esse equilíbrio se tivesse ou ignorado ou superestimado o papel da História na biografia de Lima Barreto. A advertência de André Maurois continua válida: “O biógrafo não deve representar demasiadamente o papel de historiador. A biografia é a história da evolução de uma alma humana; a história aqui deve ser o que é para o retratista o fundo contra o qual ele coloca seu modelo.”
Sem o fundo, o retrato seria fantasmagórico, porque estaria descontextualizado, privado de coordenadas espácio-temporais; mas se o fundo pesasse demais sobre o modelo, projetando-se para o primeiro plano, não haveria retrato, e sim um painel épico, com milhares de figurantes anônimos e nenhuma figura identificável.
O livro é exatamente isso: unidade harmoniosa de retrato e fundo e diálogo permanente entre os dois planos.
Chico entrelaça constantemente dois fios, um correspondente à vida individual de Lima Barreto e outro à História externa. Às vezes, esta age causalmente sobre a primeira, como o advento do florianismo, que faz o pai de Lima perder seu emprego no jornal e motiva a mudança da família para a Ilha do Governador, e a Revolta da Armada, que engendra sentimentos antimilitaristas no futuro escritor. Outras vezes, é este que age sobre a História externa, sob a forma de comentários críticos que podem ter modificado tendências sociais e políticas, ainda que de modo pouco perceptível. Em outras vezes, há interações que são ou parecem fortuitas, pontos de interseção entre as duas séries, sem que se possam determinar causalidades claras num ou no outro sentido, como a relação de Lima com o “Jardim da Infância”, através do seu colega da Escola Politécnica, Miguel Calmon, ou o cruzamento entre o fato coletivo da “primavera de sangue” – repressão militar de uma manifestação de estudantes no governo Nilo Peçanha – e o fato individual da escolha de Lima para o júri que julgaria os culpados. A extraordinária habilidade de Francisco de Assis Barbosa está em respeitar a inteligência do leitor, deixando-o tirar suas próprias conclusões. Ele se limita a intercalar fragmentos de História externa entre dois fatos biográficos, sempre atento à realidade do escritor como homem de carne e osso, com suas muitas misérias e pouquíssimos momentos de felicidade, mas atento, também, à necessidade de contextualizar sua vida, pintando o modelo sobre um fundo de História e estabelecendo uma ponte entre esta e a biografia.
Com Juscelino Kubitschek – Uma Revisão na Política Brasileira, Francisco de Assis Barbosa tentou uma novidade estupenda. Em vez de narrar a história de um homem e de sua época, ele pretendeu narrar a história de quatro gerações – a de Kubitschek, a dos seus pais, a dos seus avós e a dos seus bisavós – e através dela a História do Brasil, no período que se estende da Independência à posse de JK.
Se bem-sucedido, o livro seria algo como os Rougon-Macquard da biografia nacional: não mais, como na A Vida de Lima Barreto, um jogo de espelhos entre um escritor e seu tempo, mas a história de uma família interagindo com a História do Brasil independente.
O projeto não se realizou completamente e talvez mesmo não fosse realizável.
Sem dúvida, há razões contingentes, externas, como a doença e a morte de um autor, que explicam por que certas obras célebres ficaram inacabadas. Foi certamente o caso da Eneida. Mas foram apenas essas razões que impediram Sartre de escrever a moral que ele anunciara, ao fim de L’ Être et le Néant, de redigir o segundo volume da Critique de la Raison Dialectique e de terminar sua grande biografia de Flaubert, L’Idiot de la Famille? Pelo menos um autor admitiu razões intrínsecas para o inacabamento de sua obra. Refiro-me a Heidegger, que na sétima edição de Sein und Zeit reconheceu que o livro, publicado em 1927 com a indicação “Primeira parte”, não teria uma continuação. E isso porque a reflexão do filósofo evoluíra de tal maneira que a redação de uma segunda parte o obrigaria a reelaborar radicalmente a primeira.
Temo que algo de semelhante haja ocorrido com Francisco de Assis Barbosa – depois de publicar o primeiro volume, é possível que tenha se dado conta da dificuldade de completar seu projeto original.
Não que não haja informações biográficas interessantíssimas, obtidas por uma pesquisa certamente exaustiva, que vão desde a origem tcheca do sobrenome Kubitschek até as raízes francesas do prenome Juscelino, tão difundido em Minas Gerais; desde o inventário do espólio de João Alemão, bisavô de JK, até a investigação das notas do menino no Seminário Diocesano de Diamantina e do estudante de Medicina em Belo Horizonte; desde a passagem do rapaz pelo Rio até sua estadia em Paris, como interno do Hospital Cochin. Nem se pode negar que o livro contenha análises magistrais sobre a História do Brasil ao longo de quase 150 anos. Mas o problema está na interação entre esses dois planos.
Em sua introdução, Chico elucida o papel que ele quer atribuir à História usando a metáfora de Maurois: na vida de JK, a História seria o “pano de fundo” da biografia. Ora, o que ele faz é exatamente o contrário. Em JK, é a biografia que aparece como pano de fundo da História. Chico se afasta, assim, do sábio equilíbrio que ele havia alcançado em sua biografia de Lima Barreto entre a vida individual do romancista e a História externa.
Examinemos, por exemplo, a segunda parte do livro, dedicada ao próprio Juscelino, deixando de lado a primeira parte, em que Chico fala sobre as três gerações anteriores. O biógrafo vai da infância do seu herói até a Revolução de 1932. Lemos em seis capítulos as impressões do menino com a morte do pai e do avô, seus estudos no seminário diocesano de Diamantina, seu concurso para telegrafista, sua formatura na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, sua estadia em Paris, sua viagem ao Egito, sua volta ao Brasil depois da Revolução de 1930 e sua participação, como oficial médico da Força Pública de Minas Gerais, na luta contra os revoltosos de São Paulo.
Esse material biográfico é relativamente pobre. Mas, em compensação, que pletora de informações históricas! Em dezenas de páginas implacáveis, o livro nos diz tudo sobre o governo anômalo de Epitácio Pessoa – anômalo, porque ele não era nem paulista nem mineiro – sobre a volta ao esquema café com leite com a eleição do mineiro Artur Bernardes, sobre as cartas falsas que o obrigaram a governar em estado de sítio, sobre a eleição, igualmente conforme ao figurino, do seu sucessor, o paulista Washington Luis, sobre o lançamento heterodoxo, para o quatriênio seguinte, da candidatura de um gaúcho, Vargas, sobre a derrota de Getúlio e a eleição fraudulenta do paulista Júlio Prestes, sobre a revolução que se seguiria a esse resultado eleitoral, e sobre o último espasmo da oligarquia latifundiária de São Paulo, na Revolução de 1932.
Dei-me ao trabalho de fazer um levantamento rápido do espaço dedicado à biografia em confronto com o dedicado à História. De um total de 181 páginas, somente 62, ou 34%, são consagrados à vida de JK; o restante, ou 66%, é consagrado à História do Brasil. E note-se que escolhi esta parte do livro por ser a mais rica em informações biográficas; quanto mais recuamos no passado, mais a biografia vai se diluindo na História.
O que se passou? Entre a biografia de Lima Barreto e a de JK, Chico trocou o retrato pelo mural, dando mais destaque à dimensão coletiva que à do indivíduo. Abandonou, com isso, a relação clássica entre retrato e fundo, pondo a História em primeiro plano e convertendo a vida em coulisse. Parece-me uma concepção antidialética, pois se esmagamos o indivíduo sob o peso da História, impedimos que ele se transforme em via real para o conhecimento da História. O indivíduo diz tudo sobre o todo, com a condição de não desaparecer enquanto indivíduo.
Chico não era vulgar em nada, nem quando errava. Por isso, Juscelino Kubitschek – Uma Revisão na Política Brasileira foi um magnífico fracasso, mas foi um fracasso. Quem sabe? Talvez seja preferível errar com grandeza a acertar mediocremente.
Gostaria de abordar uma última questão: não mais a relação entre a biografia e o leitor, mas entre a biografia e o biógrafo.
Sabemos que o artista se exprime através de sua obra. Não há dúvida de que Stendhal se exprimiu através de Fabrice del Dongo, Julien Sorel e Lucien Leuwen; de que Balzac se exprimiu através de Félix de Vandenesse; e de que Flaubert se exprimiu através de Madame Bovary: Madame Bovary, c’est moi. Chateaubriand sintetizou numa frase essa tendência de todo artista: On ne peint bien que son propre coeur, en l’attribuant à un autre.
O que é menos banal, mas igualmente verdadeiro, é que pode haver também uma relação expressiva entre o biógrafo e seu herói. Assim como Proust se exprime através da Recherche, o biógrafo se exprime através de Proust. Ele escolhe seu herói para responder a uma necessidade secreta de sua natureza. André Maurois conta que escreveu a biografia de Shelley, porque o poeta inglês encarnava uma situação que o próprio autor estava vivendo na época – o conflito entre os ideais e a realidade; e a de Disraeli, porque através dele podia exprimir seu próprio pensamento político, o conservantismo popular, que concilia o respeito da tradição com as reformas dentro da ordem. O herói presta ao biógrafo o serviço de exprimir suas pulsões e fantasias, ou mesmo de ajudá-lo espiritualmente. Pois muitas vezes o biógrafo pertence ao número daquelas “almas ternas” de que fala Sainte-Beuve, “almas segundas, que se associam a uma alma ilustre e se enfeudam à sua glória”. Ao escrever uma biografia, o autor como que convida o herói morto a renascer, incorporando-o a si. Ouçamos o que diz Ernst Jünger: “Deixamos os mortos chegarem até nós; eles amadurecem e se suavizam; eles crescem em nós com raízes póstumas; somos o verdadeiro campo, a verdadeira terra dos mortos; eles querem ser sepultados em nossos corações.”
Nessa metáfora, os heróis dependem do biógrafo ao mesmo tempo jardim em que eles crescem e jardineiro que cultiva a terra.
É no mesmo sentido que Walter Benjamin diz que temos o dever de salvar os mortos, para evitar que a derrota dos oprimidos se torne definitiva.
Não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado no passado? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Se é assim, existe em encontro marcado entre as gerações precedentes e a nossa... Pois a nós, como a cada geração, foi concedida uma frágil força messiânica, para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser ignorado impunemente... Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.
Sabemos que Lima Barreto se exprimia através dos seus personagens. Lima se autorrepresenta ora em Isaías Caminha, ora em Gonzaga de Sá, ora no amanuense Augusto Machado. A questão agora é: considerando a importância absolutamente primordial que tem Lima Barreto na carreira intelectual de Francisco de Assis Barbosa, podemos dizer que ele se identifica com o romancista e se exprime na A Vida de Lima Barreto?
Chico e Lima diferiam na cor e na condição social, mas isso não impede a identificação: esta não supõe uma convergência total entre duas personalidades, e sim um encontro parcial, a partir de um ou mais traços comuns.
Há muitos desses traços. Os dois foram jornalistas, ganhando o pão com esse trabalho. Há coincidências curiosas, como o fato de que Lima se candidatou à mesma Cadeira na Academia que a ocupada por Chico. Há até manias comuns, como a do compadrio. O tema aparece na obra de Lima Barreto (Olga, a suave afilhada de Quaresma, o pequeno Aleixo Manuel, afilhado de Gonzaga de Sá) e em sua vida, pois o escritor era afilhado de Ouro Preto e tinha ele próprio vários afilhados. Ora, Chico adorava ter compadres, todos amigos eminentes, como Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira e creio que Di Cavalcanti.
Mas é óbvio que há afinidades mais fortes. Chico e Lima sempre detestaram o culto da Arte pela Arte. Foram ambos escritores militantes. Os dois se bateram contra a impostura, e por isso foram antibovaristas, contra a repressão política, e por isso sempre defenderam a Democracia, contra o Imperialismo, o que dava matizes nacionalistas a suas posições, contra o preconceito de raça, e por isso eram liberais, e contra a exploração social, e nessa medida eram socialistas.
Eis por que Chico não somente se identificou com Lima como o redimiu, no sentido de Benjamin. Ele o acolheu em sua alma. Colocou-o em seu livro. E o salvou para milhares de leitores.
Senhores acadêmicos,
só me resta agradecer-vos pela generosidade de terdes me chamado a ser um dos vossos.
Agradecer, também, ao Presidente Austregésilo de Athayde por ter designado para receber-me Antônio Houaiss, gentleman and scholar, amigo incomparável, linguista e lexicógrafo, epicurista delicado, grande pescador diante do Eterno, igualmente capaz de dizer não, como Mefistófeles, e sim, como Molly Bloom – não à ditadura militar e sim à vida – yes, yes, yes, como no delírio final do grande livro que ele traduziu.
E agradecer o destino por ter me reservado, na Academia, de todas as Cadeiras a mais habitada pelo espírito da diversidade e portanto a que mais convém a um modesto pensador iluminista, sempre sensível a essa síntese de todas as diversidades que é o gênero humano.
É nesse universalismo concreto que me sinto ligado a Francisco de Assis Barbosa. E ao pobre grande homem que ele retratou, o aspirante à Cadeira em que me sento, Lima Barreto, leitor de Voltaire, Diderot e Condorcet, iluminista ele próprio em sua fé no progresso e na solidariedade entre os homens. Pois ao fim e ao cabo é dele a mais bela expressão em nossas Letras do sonho da unidade humana: segundo Lima Barreto, “a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo com que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam, sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade”.
11/9/1992