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Félix Pacheco

ASAS PERDIDAS

 

Sobre as asas de um Anjo, asas de neve, espalmas,

Em peregrinação pelas altas esferas,

Subiste, a fruir no Azul eternas primaveras,

Infinitas manhãs luminosas e calmas.

 

Escutaste a canção misteriosa das Almas,

Que, chumbadas ao Pó, viveram noutras eras,

Percorreste o país de ouro e luz das Quimeras,

De brando Serafim sobre as asas espalmas.

 

Dessas asas ideais, voando por Outros Mundos,

Caíste, sombra de um Sonho apagado e disperso,

Nos abismos do Vácuo infinitos e fundos,

 

Rolando ficarás para sempre no Espaço,

Rolando e crendo ouvir, em ruidoso fracasso,

Contigo e sobre ti rolar todo o Universo!

 

                                           (Via Crucis, 1900)

 

 

                          PANÓPLIA AZUL

 

Usei a arma da Fé, fulgurante de gemas,

Arma de oiro, sem gume, arma que não vitima,

A cada golpe seu jorrava a Estrofe, a Rima;

Em vez de ondas de sangue espadanavam Poemas.

 

Fui cético: vibrei Dúvidas e Dilemas.

A Nevrose empunhei que tortura e dizima.

O Sonho, lança azul, brandi, que fere e anima.

Sobre alfanjes gravei Rancores como Lemas.

 

Umas trazem-me à Ideia impolutas Vitórias,

Triunfos ideais, sem sangue, alvas, incruentas Glórias...

Outras fazem lembrar subitâneos alarmas,

 

Sangue quente de heróis, formando imenso lago...

Presas ao Coração, como símbolos, trago,

Numa Panóplia Azul, essas antigas armas.

 

                            (Via Crucis, 1900)

 

 

                            MORS-AMOR

 

Veste a clâmide austera e grave do soneto

E vem cantar comigo, ó musa, o horror da morte.

Deixa que em cada poema a ideia vibra forte,

Mas como um luar de amor sob um velarium preto.

 

Deu-me Satã jovial um mágico amuleto.

Asrael marcará de hoje em diante o meu norte.

Hei de mudar em ti, num mal que me conforte,

O perfume de carne em riso de esqueleto

 

Tudo, tudo, por fim, mergulharei no abismo,

Todas as tentações funestas de tua alma

E a beleza fatal de teu corpo maldito.

 

De heptacórdio na mão, rindo do cataclismo,

Novo arcanjo revel, descreverei com calma

A Morte vitoriosa estrangulando o Mito.

                             (Mors-Amor, 1905)

 

 

                   SÍMBOLO D’ARTE

 

Se o meu verso não fora o agonizar de um lírio,

E o suave funeral de um crisântemo roxo,

Diluindo-se, murchando, à vaga luz de um círio,

Entre o planger de um sino e o gargalhar de um mocho;

 

Se essas flores do mal, em pleno desabrocho,

Eu não sentira em mim, num êxtase e em delírio,

Meu orgulho de rei julgara vesgo e frouxo,

Pois a glória de um sol não vale esse martírio.

 

Se, na terra que piso, algum prêmio ambiciono,

É o deserto, a cabala, o claustro, a esfinge, o outono,

O almo encanto da noite e a augusta paz da morte...

 

E o meu símbolo d’arte, o ideal que me fascina,

É a tristeza a florir a graça feminina,

Como um farol pressago a iluminar o norte!

                            (Mors-Amor, 1905)

 

 

                   MUSA DECADENTE

 

Eis morto o redolente e constelado outono,

Que conservava ainda a glória do teu seio.

Triste, desolador, implacável e feio,

O inverno, ei-lo aí está, núncio do eterno sono.

 

Não mais no corpo ideal o majestoso entono.

Sem fulgores, o olhar, que do Olimpo te veio,

Não será, como outrora, indiferente e alheio

A quem contigo sofre o horror desse abandono.

 

Há de seguir-te sempre um sol de primavera.

Celebrarei no verso amoroso e vibrante

O baquear dos torreões do encantado castelo.

 

Teu inverno há de ter, como o outono tivera,

Ó helianto que murcha, ó astro agonizante,

O tumultuoso amor dramático do Otelo!

 

                           (Mors-Amor, 1905)

 

 

                          O POETA E O TEMPO

 

São sempre iguais na idade os deuses e as quimeras.

O poeta é um deus também. Pertence-lhe o infinito.

Perdido na amplidão sempiterna do mito,

Fica de todo alheio ao desfilar das eras.

 

Sucumbam gerações no círculo restrito

E passem, no vaivém sem fim, as primaveras.

O poeta há de viver, para além das esferas,

Esquecido e imortal, todo entregue ao seu rito.

 

Eclípticas de sóis, movimentos dos astros,

Outonos e verões correndo atrás de invernos,

Tudo isso diz que o mundo anda também de rastros.

 

A própria formosura é vã nesses infernos:

O sepulcro dispersa em pó os alabastros.

Unicamente Deus e o Poeta são eternos.

                         (Mors-Amor, 1905)

 

 

               EM LOUVOR DO SONETO

 

Outros se percam no marulho intenso,

E a lira afinem pelo canto vasto.

Eu, no meu lindo cárcere, me basto,

E não no julgo estreito, mas imenso.

 

Nestes curtos grilhões nunca me gasto.

Digo tudo que quero e quanto penso,

Satisfeito das perfídias que venço,

E orgulhoso dos óbices que afasto.

 

Ha quem prefira os poemas dilatados,

Amplas visões em versos numerosos,

Onde a rima extravase em grandes brados.

 

Eu, porém, a outros moldes me remeto,

E nunca tive um gozo entre os meus gozos

Que não coubesse dentro de um soneto!

 

                 (No limiar do outono, 1919)

 

 

                       SE SOUBESSES...

Ah se soubesses quanto choro ao vê-las,

Estas lembranças do passado extinto!...

São visões de necrópole que sinto.

Fugiu-me o sol, fugiram-me as estrelas.

 

Estes cartões terníssimos; aquelas

Cartas cheias de amor, nas quais não minto

E onde infantil e ingenuamente pinto

Inventadas, fantásticas querelas;

 

Se tu soubesses com que dor enorme

Estes papéis amarelados leio,

A mágoa que me oprime ao ver que dorme

 

Toda a antiga paixão de que te esqueces;

Se imaginasses o meu duro anseio

E visses o que sofro, ah! se soubesses...

                         (No limiar do outono, 1919)

 

 

                    CREPÚSCULOS DE OURO

Tardes cheias de paz e de melancolias!

Horas tristes do ocaso, em que o sol adormece

E a natureza, em coro, ergue aos céus uma prece!

Tardes sentimentais de êxtase e nostalgias!

 

Poentes, surdas canções monótonas e frias,

Horas de bucolismo em que tudo se esquece,

Núncias da noite, irmã do mal, que do alto desce,

Lenta e lânguida, abrindo um pálio às agonias!

 

Só quem vos pode ouvir é o coração dos poetas,

Tardes de misticismo e sensações secretas,

Que refletis nos céus o fim das nobres vidas!

 

Em vós, ocaso de ouro, a alma dos velhos puros,

Como outro sol que desce aos báratros escuros,

Chora o choro de luz das ilusões perdidas!

                          (No limiar do outono, 1919)

 

 

                      ÂNSIA DA LUZ

 

Há milênios talvez, ó grande sol fecundo,

Aqui me abandonaste, esquecido das eras.

Por que tardas assim? Por quê? Por quem esperas?

Que força te detém do outro lado do mundo?

 

Enquanto, sobre o teu plaustro de ouro, errabundo,

A antípoda feliz, cheia de azuis quimeras,

Percorres com amor, e espalhas primaveras,

Na longa noite atroz cada vez mais me afundo.

 

Em vão mergulho o olhar nas sombras do levante.

Não regressas jamais do hemisfério distante,

E eu sucumbo de frio e angústia aqui no inverno.

 

Sinto que cambaleio, e ando como que às cegas

O dia, a vida, a luz, ó sol, por que me negas?

Por que foges de mim, ó grande sol eterno?

 

                           (No limiar do outono, 1919)

 

                  DO CIMO DA MONTANHA

 

Musa, para um momento aqui, musa severa!

Olha deste alto cimo a Pátria, o Sonho, a Vida...

Mede toda a extensão imensa percorrida,

E o presente, e o porvir esmiúça, e considera!

 

Interpreta, na estrofe, a saudade sincera,

E realça, firme, o traço à página esquecida!

Canta a luz que te doura, e estende-a, refletida,

Sobre os rincões natais, que tua alma venera!

 

Mas grava tudo lenta, unindo, com orgulho,

O esto dos palmerais, e a harmonia dos trenos,

Como na relação do efeito para as causas...

 

Junta o carme à epopeia, enlaça o grito e o arrulho,

E os quarenta anos teus se fixarão, serenos,

Num longo beijo quente, ampliado em sóis e em pausas...

 

                                           (Estos e pausas, 1920)