DISCURSO DO SR. FÉLIX PACHECO
AINDA a mim mesmo pergunto a razão de meu ingresso neste cenáculo respeitável em que se agremia o fino escol de nossas letras. Desejaria atribuí-lo à minha própria vaidade convencida, fruto perdoável de obras realmente feitas ou de merecimentos que, na verdade, pudessem justificar esta alta honraria final, que representa uma doce e grata esperança de sobrevivência na dispersão implacável do tempo. Mas só posso responsabilizar a vossa extrema benevolência, que naturalmente o que quis foi, mais uma vez, fazer sentir a todos que esta instituição não se propôs a erigir quarenta marcos pesados sobre as idades em evolução, nem fechou suas portas à mocidade cobiçosa e febril, renovadora de tudo, presumida às vezes, mas sincera e desculpável sempre.
Vão avultando no vosso meio as almas em flor, que o vosso generoso estímulo atraiu e engrandece. Será talvez um mal esse critério. Adormecem lá fora, na meia sombra do esquecimento voluntário, muitas sumidades conspícuas, que deviam figurar entre os pilares do vosso zimbório. Mas não é culpa vossa, se elas fogem obstinadamente ao trato ameno desta Casa. A juventude, mais afoita, percebe bem esse afastamento dos luminares irredutíveis; e aí está o motivo principal por que se acerca de vossos umbrais, na esperança, que nunca repelistes, de colaborar também convosco na árdua, mas consoladora tarefa de salvar o sonho, o gosto da arte e a pureza da língua, num meio hostil e indiferente, que só liga uma atenção passageira a essas coisas maravilhosas do espírito.
Sobram, entre nós, desculpas para a impaciência dos moços. Não é o insofrimento europeu utilitário e feroz, ansioso por chegar e vencer na glória e na perfeição. Parece antes uma necessidade espontânea, em harmonia com a exuberância transbordante da vida no trópico, onde as inteligências, como as selvas, desabrocham cedo e cedo se expandem nos grandes anelos e nas altas febres transformadoras, que simbolizam a nossa natureza e marcam de um traço característico inconfundível a nossa feição mental inconstante, impetuosa, desconexa, mas inquestionavelmente bela, forte, soberana esplêndida.
O melhor sinal de vossa vitalidade está justamente nessa fascinação que exerceis sobre os inquietos que vão chegando, para formar os novos elos da cadeia luminosa, através da qual se perpetua com segurança a formosura e o brilho dos destinos literários do Brasil. Todos eles nascem gritadores e rebelados, possuídos de si e ufanos da missão que lhes toca, mas deslembrados de que as horas que batem não representam senão o desenvolvimento lógico de um vasto círculo, cujo imenso diâmetro ninguém mediu nem medirá jamais.
Eu não fugi à regra geral, à puridade vos confesso, nem me pejo de o dizer, que os anos parcos e meus ardores juvenis intemperantes largamente me escusariam.
Aliás, a vossa própria origem e seguimento dispensariam a penitência. Nunca, pelo menos, a exigistes da “meninice enfática”, a que com tanta propriedade aludiu Afrânio Peixoto no seu formoso discurso de recepção, confessando desembaraçadamente que já desde esse tempo longínquo aspirava ser acadêmico. Tampouco a cobrastes ao espírito frondista de João do Rio, que agora vemos com alegria no alto posto de redator-chefe e diretor de verdade da Gazeta.
Il faut que jeunesse se passe; e eu não preciso, entrando aqui, desfazer-me das minhas admirações pelo gênio maravilhoso de Cruz e Sousa, cujo verbalismo estuante não era senão a roupagem de um esteta delicadíssimo, nem necessito igualmente renegar as predileções que tive e que conservo por Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Moréas, Regnier, Maeterlinck e tantos outros, quando hoje o simbolismo nalgumas coisas venceu e quando já por aí vem Marinetti com o futurismo, deixando a perder de vista Les Villes tentaculaires et les Campagnes hallucinées, de Verhaeren.
Estou tanto mais no direito de ser crido quando é certo que os não imitei ou segui, deixando-me ficar na transição e procurando as mais das vezes enquadrar as minhas brumas e os meus delíquios nos preceitos que a escola anterior estabelecera como decretos irrevogáveis da beleza do Parnaso. O ter permanecido assim, admirando por igual a perfeição da forma de Heredia e as rebeldias do metro vário, que aqui mesmo na Academia já foram louvadas pela palavra autorizada de Medeiros e Albuquerque, parece-me desculpa bastante e razoável e não me acanho de apresentá-la.
A Academia, como acertadamente o disse o seu primeiro e para sempre lembrado Presidente, na memorável sessão de abertura, e 20 de julho de 1897, foi “iniciada por um moço, aceita e completada por moços”; nasceu portanto – são dele ainda as palavras – “com a alma nova, naturalmente ambiciosa”.
Nessa mesma sessão, Joaquim Nabuco, com a sua linha incomparável de Apolo encanecido, mas sempre jovem, e com aquela dionisíaca profundeza interior que lhe completava a figura excelsa, aludiu à necessidade da colaboração dos novos, acentuando com júbilo que a Academia não se erigira em
“gabinete de antigualhas”.
Linhas adiante frisou:
“É um anacronismo recear hoje para as Academias o papel que elas tiveram em outros tempos, mas se aquele papel fosse ainda possível, nós teríamos sido organizado para não o podermos exercer.”
Era a própria evolução que ele louvava, o círculo sem diâmetro mensurável a que acabo de referir-me e de que também falou, por outras palavras, aquele mesmo e grande brasileiro, que foi como um filho espiritual de Atenas, educado na elegância mental de Lutetia e repolido na austeridade puritana de Oxford e Boston:
“Não haverá nada de comum entre nós? Há uma coisa: é a nossa própria evolução; partimos de pontos opostos, mas, como os astros que nascem, uns a leste e outros a oeste, temos que percorrer o mesmo círculo, somente em sentido inverso. Há assim de comum para nós o ciclo, o meio social que curva os mais rebeldes e funde os mais refratários; há os interstícios do papel, da característica, do grupo e filiação literária de cada um...
A utilidade desta companhia será, a meu ver, tanto maior quanto for um resultado da aproximação, ou melhor, do encontro, em direção oposta, desses ideais contrários.”
Depois destas citações, posso agora dizer-vos também, em aumento de minha defesa, que eu não chegara à poesia por um refinamento de cultura, como às vezes acontece, nem ao jornalismo por calculada preferência. Ainda hoje penso que o que me conduziu da puerícia deformada pela irregularidade dos estudos à mocidade livre e solta, embora dura e trabalhosa, foi um como abandono propositado a certos pendores inatos, cujo curso espontâneo nunca procurei obstar.
Não há por aí quem não deseje dizer o seu segredo à vida. É na extensão e na forma dessa confidência que reside a alma do verdadeiro artista.
Tenho para m que fali nessa dourada aspiração, espécie de suplício delicioso em que muitas vezes o pensamento naufraga, quando não oscila entre as suspensões de sentido, que a visão interior sugere e as incertezas da força anímica justificam, ou quando não se esbate, como sombra difusa e vã, nos longes sentimentais que o poeta idealiza, mas que se vexa de concretizar em estrofes que digam tudo.
Três coleções de poesias, que só agora logrei refundir e aumentar para a publicação de um livro ainda assim nada definitivo, não eram cabedal que me autorizasse a pleitear aqui uma cadeira. Não o era também um modesto trabalho de ocasião, feito às pressas e no verdor dos anos, para apanhar o centenário do formador da imprensa livre, honesta e democrática em meu país. Tampouco valiam para esse efeito outros rápidos escorços históricos e biográficos, conferências várias e discursos breves, artigos perfunctórios de crítica literária e social, traçados no atropelo da profissão, que cada vez me prende mais às contingências do dia e da hora e me separa e me afasta dos suaves recantos por onde andei com a alma em soluços e o coração fremindo por amores que se partiram, como expressões de um desejo apenas esboçado e para logo extinto na crepitação da própria chama. Menos legítimos igualmente os títulos de público serviço, em digressão de leigo por um ramo de ciências aplicadas, nos seis ou sete anos gastos com entusiasmo para difundir entre nós um método que consultasse melhor aos interesses da segurança social em matéria de identificação das pessoas.
Ao fim do meu balanço e sem querer aludir a um breve trânsito forçado pela política, de que talvez me sinta sempre e cada vez mais distanciado, com uma escassa produção legislativa que não me honra como parlamentar, embora não me entristeça como servidor do regímen, vejo, desolado, que talvez só o exercício continuado do jornalismo profissional haja concorrido para que eu merecesse a simpatia de vossos sufrágios.
Nunca fui, não sou, não quero ser de fato outra coisa. Sinto-me bem comigo mesmo e abençôo o meu destino, orgulhoso, sem dúvida, de haver obtido, mais pelo meu trabalho do que por virtudes intelectuais que não possuo, o modesto posto que a confiança do mais velho e mais eminente de nossos jornalistas me conferiu na grande e venerável instituição de imprensa que dirige.
Foi ali que me disciplinei na experiência e aprendi a amar a tradição, que liga as almas no tempo e dignifica as idéias no espaço, fundindo os homens e as coisas, como expressões de um mesmo ambiente, que se altera e se modifica, mas que nunca desaparece ou se dissolve, antes cada vez mais se renova, se embeleza e se prolonga.
Quase três lustros passados nessa tenda repousada, em contato freqüente com o que de melhor possui o Brasil em todos os ramos de sua cultura, talvez me houvessem deformado o antigo aspecto.
Pelo menos, ando meio esquecido dos ímpetos irreverentes da primeira idade, quando, nas nossas revistas de papel de linho, cheias de caixas altas e novidades que só agora andam na berra, vociferávamos contra os velhos, que continuam aliás a passar excelentemente de saúde e hoje só me parecem réus de um pecado, que vem a ser o da maior indulgência para com os despautérios da precocidade feroz que sonha com a derrocada de tudo, sem conseguir às vezes edificar a si própria.
Não retive o nome do displicente malévolo que apregoou que “le journalisme mène à tout, à la condition d’en sortir”. Antônio Leitão, o saudoso mestre, com o ceticismo natural dos que já viveram demais para guardar ainda ilusões, costumava repetir sorrindo essa frase aos mais novos do Jornal, à guisa não sei bem se de conselho ou se de advertência. Deve ser exato o conceito, porque é sempre avultado o número dos que desertam da classe, mal obtêm os proventos da incursão transitória pela floresta benéfica, maravilhoso degrau para todas as ascensões e instrumento admirável de não importa que conquistas se queiram fazer. Mas é injusta a sátira, se visa os oficiais sinceros do oficio. Para estes, o jornalismo, longe de ser o jardim das delícias, que outros procuram e sabem achar, é uma dolorosa selva selvagem que devemos perlustrar com as cautelas máximas e sem escusados pavores, para que possamos fruir, na tranqüilidade do dever cumprido lealmente, os contrastes de beleza e de horror que ela oferece no desdobramento magnífico de suas árvores fecundas, por baixo das quais passam e repassam, mergulhadas nos pauis, as figuras de perdição, opróbrios da sociedade, na eterna comédia da vida, que todos nós precisamos conhecer, para nos elevarmos acima das misérias, que, envergonhando a espécie, inutilizam o homem.
Foi por esse caminho que cheguei até vós, perdido na abundância forçosa da produção anônima, quero dizer quase sem títulos pessoais provados, o que agrava ainda mais o erro de vossa benevolência e aumenta sem dúvida a carga de vossa responsabilidade.
Na opinião de muitos, o jornalismo vai-se distanciando tanto das letras que não deverá mais existir aqui nenhum lugar para os servidores desse velho e belo oficio, modernamente transformado e modificado pela vertigem estonteante da informação. É certo que vejo neste recinto algumas cadeiras ostentando veneráveis nomes da profissão. Mas são modelos extintos, que só sobrevivem no presente, porque nos resta ainda, por fortuna nossa, o gênio assombroso de nosso Presidente atual, o arquétipo incomparável da majestosa espécie infelizmente morta.
Noutros tempos a carreira se resumia no publicista e na idéia. Era o homem, pensando e agindo na ordem mental, como um semeador. Hoje é o repórter e o fato, num cruzamento incessante de espelhos que se refletem multiplicados ao infinito.
Que pensamento de arte ou de gosto, de forma e esmeros de estilo poderão caber nesse choque brutal e contínuo, puro trabalho mecânico e inconsciente, em que a curiosidade se devora a si mesma, numa autofagia que não pára, com a fome sempre renovada dos alimentos grosseiros preferidos pela massa exigente e inculta?
É mais difícil do que parece a resposta a essa pergunta. Poderei tentá-la para justificar de longe a minha presença no vosso grêmio.
O jornalismo não deve ter perdido os foros que possuía, só pela simples modificação de sua natureza e de seus processos. Ainda se pode entrar nele pela porta larga do sonho, que a intensidade da vida contemporânea não fechou.
E nada impede que a chama do ideal, a cada instante reacesa pela necessidade irreprimível de clarear o mundo, consiga manter-se no turbilhão fantástico das horas atuais, menos vagarosas e mais alucinantes do que as antigas.
Eu, por mim, não adotei a carreira sem aquela paixão recôndita, que é em tudo o segredo do êxito. Envenenado pela tinta de impressão desde a infância, na província, onde um dos meus gostava do mister e o praticava, deixei que essa tendência tomasse o tempo aqui no Rio aos meus estudos no Colégio e de tal sorte e com tamanho fervor, que ainda hoje a convicção que me resta é de que vim marchando sem solução de continuidade pelo caminho que foi mais de meu agrado, a despeito dos ralhos muito estas de meu pai, jurista austero e educador sisudo, que nunca confiou nem devia confiar nas virtudes problemáticas desse processo autodidático.
Revendo provas e compondo versos, antes de chegar à mesa de redator, fiz os estádios clássicos, e não é culpa minha se os erros que não corrigi, meus e dos outros, e os sonhos, que alimentei e vi dispersarem, não me curaram da grave moléstia e me deixaram continuar errando e sonhando impenitentemente...
Os espetáculos multiformes da vida e do progresso, com o seu tumulto e os seus rumores perceptíveis ou subterrâneos, nunca foram obstáculo à florescência das coisas belas, que perfumam o espírito e consolam a alma. Errará crassamente quem supuser o jornalista profissional desligado dessas formosuras balsâmicas, sem as quais a terra seria um antro abjeto e o homem o mais miserável dos seres.
Todos nós devemos restituir à vida aquilo que ela nos dá, na livre expansão revolta de suas forcas, isto é, a experiência, que ninguém fora dela nos pode ensinar. Nós outros tivemos sempre atrita à carreira a presunção de uma tarefa educativa. Não descobriu ainda a nossa vaidade que essa missão tutelar, que nós mesmos nos atribuímos, não provém de nós, senão e apenas do que vemos e aprendemos, para transmitir por ação meramente reflexa.
Não importa esse destino na supressão da vontade e da iniciativa, nem no apagamento definitivo do ideal. O ideal é a razão da vida. Sem ele, como sem a luz, tudo se afogaria na amálgama imprecisa e indefinida, onde as coisas e as idéias perdem os seus contornos e formas, sumindo-se na confusão caótica e rudimentar, que nada exprime e nada significa. É pelo ideal que o homem se levanta da terra e anda e trabalha e pensa, amando, rindo, sofrendo, na fé como na desesperança, com a plenitude consciente da sua fortuna vária.
Se alguma vez lhe acontece perder essa força misteriosa e onímoda, que resume o segredo de todas as vitórias, o que lhe cumpre é tocar de novo, como Anteu, o solo sagrado, e receber outra vez o generoso alento, reerguendo-se da queda com redobrado vigor.
O jornalista deve conservar sempre, na banalidade prosaica dos fatos, como nos arremessos tempestuosos a que assiste, aquela parcela de ilusão, que tudo redoura, e sem a qual nos perderíamos nos desertos vazios e secos, que a morte espalhou pelo mundo como as antecâmaras de seu sólio.
Ai de quem vive preenchendo apenas a vida, na inutilidade de vê-la decorrer, sem o orgulho de participar ativamente dela!
A terra inteira vibração e poesia. O homem precisa ser o sentimento e o sonho, carregando estas asas leves e irisadas através de todas as futilidades afanosas que o preocupem.
O jornal, como o entendem hoje em dia, é o mergulho absoluto na intensidade da vida. E, neste mar imenso e sem fundo, em que todos nós bracejamos como náufragos, de ouvido atento aos menores rumores e levados por correntes irresistíveis, sobram felizmente ainda, como nas idades abençoadas da Hélade e do Latium, as sereias divinas encarnando a beleza que não morre.
São as formosuras ondeantes, que reaparecem em nossa frente na travessia penosa, símbolos exatos da febre interior que vai conosco num porfiado esforço pela elevação do senso moral e apuro do gosto no trato das coisas nobres.
Ninguém pensou ainda nos milagres estupendos da curiosidade, que é a alma da imprensa contemporânea e o significado principal das eras que hoje desfilam.
Nunca a lição da vida foi tão completa como depois do advento dessa deusa insaciável e fecundíssima, que tudo absorve e relata e perquire e desvenda, deixando-nos apenas o grato e fácil trabalho das deduções, poupando-nos a todos os sacrifícios de adivinhar, e reduzindo o poder da intuição que era outrora um predicado raro, à simples obrigação comum de ver, raciocinar e sentir.
E se assim é, como parece, ninguém deve estranhar que, uma vez por outra, procureis trazer para o vosso grêmio alguma dessas almas enamoradas, perdidas no vórtice trágico.
Decerto nenhuma delas vos oferecerá o tipo modelar que sobeja na vossa companhia excelsa. Esta devera ser, em rigor, a galeria dos repousados, que viessem para a glória no isolamento radioso de suas predileções: poetas, romancistas, oradores, historiógrafos, pedagogos e sábios, reunidos e associados num mesmo sentimento de zelo e de amor pelo culto desta língua remoçada, cuja admirável plasticidade e cujo maravilhoso surto de beleza e de força, pelos séculos em fora, hão de fazer de vosso Dicionário uma tarefa sem fim.
Mas assim me quisestes e aqui me tendes. Não vos trago senão uma leve aptidão modestíssima, que, forçada a aparecer polimorfa, já perdeu de todo as esperanças de brilho e perfeição, e só se contenta de procurar mostrar-se laboriosa e sincera.
Da burocracia oficial e da política parlamentar, tranqüilizai-vos, nada conduzo que possa afetar o vosso luminoso sossego, Passei pela primeira e ando à margem da segunda, sem propriamente tocar nenhuma delas. É possível que destarte haja perdido ensejo de melhorar a mim mesmo e remir-me de muitos pecados e defeitos. Alegro-me, porém, com algumas virtudes que acaso me tenham ficado de minha própria esquivança a esses contatos em geral propícios, mas também não raro incômodos e deformadores.
Tenho certeza de que me não desconheço e nem me iludo sobre o nenhum valor de minhas pobres obras ou ações. No próprio jornalismo, serei, quando muito, um discípulo de outros, que generosamente me vieram podando as demasias, para nivelar em mim o sentimento da independência na medida do justo critério, que é mais difícil de achar-se do que alguns imaginam.
Chego, portanto, sem bagagem apreciável, e não serei bastante severo se me julgar apenas um espírito versátil, a quem os deveres da profissão impediram que se fixasse em qualquer ramo, dispersando-o por todos e habilitando-o, por uma espécie de ginástica especial, que outra coisa não é o tirocínio diário e ininterrupto, a aparentar uma idade maior do que a que realmente possui.
É, na verdade, escasso esse cabedal; mas eu espero vê-lo acrescido ao calor de vosso convívio e pelos outonos e invernos que hão de vir, sem a melancolia das folhas caindo e sem os desesperos reumáticos que o frio costuma acarretar...
***
Coube-me aqui a cadeira, que se poderia talvez chamar da irreverência, personificada no vulto extraordinário, mas ainda pouco conhecido, de Gregório de Matos. A sua obra travessa, diabólica e irregular, que passaria como de positiva demolição construtora, se não fora também pontilhada de graves lacunas morais e de várias subalternidades, o meu saudoso antecessor deixou-a realçada num brilhante ensaio, que o conhecimento dos restantes inéditos do poeta talvez houvesse lhe aconselhado a refundir.
O meu protesto inicial deve ser o de fazer quanto em mim caiba para fugir aos manes do incomparável satírico baiano, aproximando-me, por outro lado, o mais possível, das lições do grande espírito, que procurou fixar na memória do país a lembrança do discutido e endemoninhado patrono.
Temo que a disparidade destas duas referências vos inculque a idéia de que estou a dizer-vos sim e ao mesmo tempo não.
A questão é realmente de afirmar e negar, e eu nunca vi juntos na história filósofo e poeta de aspectos tão diferentes. Admira até que o desregramento e a petulância dissolvente e lasciva do bacharel mordaz da Colônia, nos seus desconcertantes remoques em verso, hostilizando o reinol e criando virtualmente o nativismo pelo culto obcecado das crioulas ardentes e sensuais, tivessem de tal forma atraído o espírito severo e ponderado de Araripe, cujos pequenos olhos vivos e luminosos só por exceção se voltavam para as misérias cá de baixo, preferindo sempre encarar as coisas altas e profundas da vida, às quais amou como ninguém e mais do que ninguém, no nosso meio, admirou e serviu.
As fórmulas acadêmicas, que nenhum desejo tenho de transgredir, antes procuraria de bom grado fielmente observar, exigem que eu retrace, neste discurso de recepção, a figura literária do meu antecessor.
Grata incumbência seria essa para qualquer dos novos de nosso país. Todos eles enxergavam no mestre extinto o juiz bondosamente equânime, que, a desfechar uma censura, preferia sempre opor um conselho, guiar, esclarecer. Ninguém, nestes dois ou três últimos decênios, animou mais a juventude literária do Brasil do que Araripe Júnior. Ele foi uma espécie de pai espiritual de todos nós. Considerávamo-lo geralmente como um amigo mais velho, e nos aproximávamos dele sem o temor das reprimendas severas que, em vez de corrigir, descoroçoam. Essa benevolência natural e a modernidade permanente de sua cultura fizeram dele o dileto mentor afetuoso de quantos no Brasil começavam a perlustrar a áspera via do romance, do verso, das belas letras em suma.
Foi sempre assim, desde a época feliz d’A Semana, de que ainda recentemente nos falou, num belo artigo, Escragnolle Dória, até os tempos do “Pão Espiritual” da Gazeta. Daí para cá, Araripe não mais sistematicamente se ocupou de livros novos. O seu espírito apurara-se demasiado no trato das grandes questões filosóficas e literárias, escasseando-lhe então o tempo para cuidar de estreantes. Ainda assim, por vezes apareceu a ungir e encorajar os recém-vindos, como por exemplo Agripino Grieco e essa romancista viril e quente, cujo pseudônimo de Albertina Berta logo se descobriu na roda dos poetas delirantes, como uma flor nova que se abrisse no tumulto das grandes paixões ardentes e dominadoras.
Araripe realizou no Brasil o verdadeiro tipo do intelectual moderno, que nada de humano reputa alheio a si e que, multiplicando, como um deleite, a sua própria curiosidade dispersiva, toca nos mais variados assuntos e os aprofunda como se quisesse devassar todos os recantos, para adquirir com isto aquela admirável visão de conjunto, que acaba substituindo o crítico pelo filósofo e trocando o comentador de livros pelo observador social, tão atento às aparências dos fenômenos como à natureza interior das grandes almas, reveladoras dos segredos terríveis, que formam o substratum da vida, como o Dante, o Shakespeare, o Poe, o Carlyle, o Emerson e o Ibsen, com os quais ele se familiarizou estreitamente.
Um de seus colegas de repartição, talvez o mais autorizado entendedor de música no nosso meio, o que quer dizer uma figura altamente espiritual, seu amigo de todos os dias e seu companheiro de todas as horas, costumava defini-lo como um perseguidor do insaisissable.
Perseguidor ou perseguido... E quem o não é das coisas misteriosas que enchem o mundo? O homem, apesar de todos os seus orgulhos olímpicos, há de ser sempre um emparedado, e o artista muito mais ainda, como o disse o extraordinário esteta das Evocações. Pode subir e aproximar-se o mais possível das estrelas radiosas e cobiçadas, sem nunca as alcançar na liberdade do vôo para o alto. A sua força de ascensão jamais encontrará limites nem óbices; mas em derredor, fechando o âmbito vasto e tapando a imensidade infinita, que se prolonga na escuridão tenebrosa para o lado de lá, as quatro paredes fatais subirão paralelamente ao seu esforço, para lhe impedir o conhecimento exato do inapreensível.
Araripe, na sua expressão mais distinta, foi uma vítima dessa febre eterna, em que os sábios como os taumaturgos, os artistas como os selvagens, acabam sempre no desalento final do mistério, impotentes e em desconsolo, nivelados na mesma curta estreiteza de entendimento.
Ele era, entretanto, equilibrado e medido, perscrutador e seguro na análise e no comentário. Nunca se apavorou com a certeza das grandes anomalias, que desconcertam a ordem das coisas e modificam o aspecto interior das almas. A sua vasta cultura filosófica e literária, feita com verdadeiro espírito de ecletismo, reunia, além dos clássicos, Taine, Spencer Comte, os idealistas alemães da última metade do século XIX e os inovadores mais modernos como Ruskin e Bérgson, com trânsito forçado pelos grandes místicos e pelos grandes espiritualistas que, isolados à margem da idade contemporânea, fizeram o milagre de renovar na clareza a velha metafísica absurda e incongruente.
A excelência desse cabedal facultava-lhe poderosos instrumentos de observação e habilitava-o a perquirir da estética macabra de Edgard, das maravilhas pungentes de Dostoievski, ou das expressões perturbantes do inferno dantesco, com a mesma calma com que meditava um parecer jurídico ou compunha um artigo sobre fatos do dia.
Considerava o terror uma função normal. Mas a ânsia superior não o deixava nunca. Dele se pode dizer que andou sempre a procurar o nexo imaterial das idéias e a explicação impossível dos destinos humanos.
Analisando um dia a simpática e esquecida fisionomia literária de Lacerda Coutinho, outro ilustre intelectual, que foi também seu colega de repartição, refere-se a um bilhete que este curioso pessimista recebera de um velho amigo louco, no dia de seus anos, e confessa:
“Abalou-me esse documento; e, apesar do meu otimismo e da crença que tenho sempre depositado nas forças benéficas da natureza, fiquei pensativo, perguntando a mim mesmo se não terá seu fundo de verdade o princípio hostilizador, a que a superstição astrológica subordinava a vida de algumas pessoas.”
A opinião, que cada vez se me arreiga mais da leitura de suas obras, é que Araripe representava sobretudo um divagador, mas um divagador profundo e surpreendente. Dizem os seus íntimos que teve, antes do meio século, crises neurastênicas sérias. Houve até uma vez em que precisou ir ao estrangeiro, procurando então em Buenos Aires, no derivativo dos espetáculos novos, sossego para a sua inquietude latente. Isolava-se de tudo nesses momentos. Ficava, como nos conta o antigo secretário de A Semana, “no fundo de seis ou oito meses de absoluta inaptidão para o trabalho”.
Num desses dias amargos, disse a filha dileta, em cuja privilegiada inteligência e amoroso coração se remirava com a mais angélica meiguice de pai que já vi neste mundo:
“Trago a alma mergulhada em tristeza. Por que um céu tão azul, tão formoso e eu sem poder gozá-lo?”
Mas o fato é que saía sempre dessas dolorosas pausas mais espiritual e mais sutil e luminoso do que dantes.
Ele amava a vida com todos os otimismos e dissabores a ela inerentes, a vida no seu desdobramento ilógico mas certo e inevitável, a arte com as suas formosuras e os seus pavores trágicos, a humanidade como ela é, estranha, complexa, vária, difícil.
Era por isso talvez que divagava. Que há de positivo na vida senão a divagação, formadora dos sonhos belos e descobridora de verdades ocultas?
Araripe foi um leitor insaciável e punha nesse árduo trabalho um zelo que ia até os extremos do cuidado material com os volumes, seus diletos amigos hoje e dispersos.
Se escrevia, era extravasante, obedecendo a uma necessidade intelectual irreprimível. No seu andamento vertiginoso, não raro deixava de obedecer a propósitos deliberados; e sempre que podia intercalava figuras novas nos seus trabalhos.
Numa carta que me mandou no dia da morte de Machado de Assis, a quem admirava sem reservas, mas cuja absoluta e formosa castidade nunca pudera compreender, remetendo-me um lindo artigo sobre a figura extinta, e aludindo, no post-scriptum, à continuação de outro Diálogo que já vinha anteriormente rabiscando e que parara de publicar, usava destas expressões:
“O automóvel perdeu um pneumático. Está se endireitando. Sabe quantos passageiros já subiram? Dez. É demais! Está completa a lotação. Vou voltar para a cidade. Nas Furnas (o Diálogo era num passeio à Tijuca), havia tanta lama que foi preciso drená-la. Isso competia ao ajudante do chauffeur, que fez serviço pronto e asseado.”
Aí tendes, no pitoresco de uma carta íntima, a feição aparentemente irrelevante, mas, no fundo, substancial desse grande espírito solidamente preparado e incorrigívelmente divagador.
Essa febre de espraiamento tinha, porém, a vantagem de reconduzi outra vez aos recôncavos quentes, úmidos e deliciosos da vida. O homem reaparecia nele com uma sinceridade panteísta, às vezes chocante.
Muitos escritores realistas, relendo-lhe trechos esparsos, alguns pedaços, por exemplo, do Cajueiro do Fagundes ou da Miss Kate, onde o psicastênico Agripino Simões sonha sonhos eróticos cheios de morbidez, talvez se sentissem pasmados das predileções ardorosas do romancista e do crítico pelos temas quentes e desabridos. Mas esses temas constituem no fim de contas o verdadeiro poema da vida forte, bruta, fecunda, sensual, que se multiplica e se perpetua, graças ao instinto rudimentar e maravilhoso, que reaparece sempre, porque é o gerador de tudo e o pai da beleza eterna e prolífica, expressão da força, da vontade e da glória, na revivescência continuada do paganismo, de que todos nós, pecadores e gozadores disfarçados, afirmamos fugir, mas no qual vivemos prazenteiramente mergulhados...
Ou não tivesse ele sido sócio daquele famoso Club de Rabelais, cuja história daria pano para as mangas e apresentaria sob aspectos boêmios curiosíssimos não só o próprio Araripe como os seus caros amigos e fulgurantes companheiros de troça literária, Valentim, Artur, Pompéia, Lúcio, Said Ali, Rodrigo Octavio, Xavier da Silveira, Max Fleiuss, Urbano Duarte, João Ribeiro e tantos outros sisudos cavalheiros, alguns dos quais já começaram a reviver e outros aí estão brilhando nas letras, na administração, no magistério e na imprensa.
Essas coisas se deram no ano da revolta, pelas alturas de 93, o que quer dizer há dois decênios passados. O clarão da tragédia, para falar a linguagem do saudoso amigo, pareceu normalizar na sociedade daquele tempo a função do terror. Ele viu o drama e, para o sentir mais de perto, alistou-se num batalhão patriótico e montou guarda ao Flamengo. Passado o temporal, voltou ao Club e achou-o mudado. A política separara os convivas, a política ou o sentimento da tragédia, com o terror correspondente... Mas ainda houve uma refeição, e Araripe continuou esticando o Retrospecto Literário...
Foi ele próprio que um dia contou, na Revista desta casa, certa pilhéria com que pretendeu desconcertá-lo, inter pocula, num daqueles banquetes tremebundos do pessoal d’A Semana, o espírito travesso de Urbano Duarte, a quem conheci no Colégio Militar, fardado de major, dando lições sérias aos meninos do curso primário e colaborando com os rapazes mais velhos n’A Aspiração, minha saudade perpétua e meu primeiro ninho de plumitivo, que aliás ainda não deixei de ser.
A história tem graça e vale a pena repeti-la, ao menos corno lembrança da gastronomia descompassada e demasiado picante daquelas estreladas inteligências, que já nessa época podiam pagar-se o luxo de banquetes licenciosos a l0$000 por cabeça na “Maison Désirée” ou na “Vila Moreau”, e pouco mais tarde se recompunham na moralidade, agremiados aos do Centro Artístico, com exposições notáveis e espetáculos nacionais representados por amadores e amadoras familiares no palco histórico do S. Pedro, ou reunidos nos ágapes menos furiosos da Panelinha, quando nós, os mais moços, mal começaávamos a encher as esquinas e a empanturrar-nos com as feijoadas desconcertantes do Gêlobo...
Falava-se em cozinha.
“Urbano então lembrou-se de atacar o processo de crítica literária, a que ele dava o nome de “descascar cebolas”.
– Que tem isso com a crítica? perguntei-lhe.
– Tudo! respondeu o humorista.
– Explique, se me faz favor.
– Descascar cebolas fazem todos aqueles críticos, que sobre três ou quatro conceitos literários, resumíveis em meia dúzia de páginas, escrevem livros. No centro do fruto, cebola ou qualquer outro, pode existir uma amêndoa de valor; mas para que o leitor atinja esse objeto, tem de percorrer capítulos extensíssimos, nos quais o escritor se alarga à vontade, dando-se ao prazer pouco lisonjeiro de flanar através de assuntos completamente estranhos à obra criticada. É uma cilada, já se vê, armada à boa-fé dos inexperientes. Talvez um bom modo de descartar-se da obra, que o crítico não pretendeu ou não pretende analisar.”
Araripe remata a narrativa dizendo com muito bom humor:
“Ri-me, porque a sátira vinha com endereço a mim.”
As deformações pitorescas da ironia exprimem às vezes melhor as coisas do que a seriedade lírica dos ditirambos e a eloqüência condoreira dos panegíricos. As “cebolas descascadas” só eram pejorativas na aparência. No fundo chistoso da frase estava expressa uma verdade que vem a ser esta: Araripe punha muito de seu no brilho nos outros. Se não fora essa preocupação perdulária, ele teria realizado uma obra própria de escritor de grande intensidade e pujança e não haveria seguramente ficado nas tentativas quase falhas do romance...
Há nos seus livros páginas admiráveis de estilo, notações psicológicas felicíssimas, paisagens quentes, pintadas com energia, alegorias fortes e lindas, diálogos espontâneos e vivos, tudo que pode fazer do homem um grande e legítimo servidor direto da arte e da imaginação. E, renitente áureo, insofreável, repontando aqui e ali, passa na sua obra literária o sopro da vida cálida, o sensualismo tropical espontâneo.
Não lhe estou a fazer malevolência alguma com a sinceridade deste elogio na parte concernente à natureza intrínseca da grande figura que comemoramos. Todos nós precisamos de alguém que nos levante a ponta desse véu com que nos cobrimos.
Quando publiquei o meu segundo livro de versos, ele não se conteve que não indicasse em mim, entre tanta névoa e tanta mágoa, o sinal oculto da voluptuosidade. Não era, aliás, de estranhar que o tivesse o místico no desdobrar da mocidade. O espiritualismo velado e discreto conduz mais depressa aos gozos ardentes do que o próprio materialismo declamador e grosseiro.
Albert Leclerc, no seu interessante livro Le mysticisme catholique et l’âme de Dante, descreve com científica precisão o segredo esquecido:
“Il faut reconnaître, avec la phsysiologie contemporaine, que les centres cérébraux intellectuels des êtres predisposées à une émotivité de ce genre sont le siège d’impressions voluptueuses d’un ordre spécial mais très vives; il faut encore remarquer la transposition considérable d’émotions sexuelles que révèle l’expression des passions que peuvent d’abord paraître asexuelles; la phychologie a même établi que l’apparition première chez l’individu, et que l’évolution individuelle ou sociale de tout ce qui a une valeur d’art dans toute les oeuvres humaines, étaient dues en partie au stimulant de cette puissance mystérieuse, mère aussi des plus ignominieux mouvements, qui réside, en notre système nerveux central, à l’opposé de l’encéphale.”
Justificando-me assim da increpação oportuna que o saudoso e querido mestre e amigo me fez, a ele próprio aplico agora as escusas científicas do mal divino, que nunca foi privilégio dos simbolistas mórbidos, podendo, como se vê, alastrar-se sub-repticiamente até aos críticos mais austeros...
Poucos, raríssimos no nosso país, terão enchido tão ampla e dignamente uma longa vida de inteligência, de estudo, de bondade e de trabalho, como esse cearense maravilhoso e irônico, cuja boca breve e cujos olhinhos perquiridores pareciam protestar contra a austeridade um tanto rude do semblante, onde aliás as rugas não eram senão expressões do sonho torturado, que tudo ambicionava conhecer e decifrar, desde os grandes lances trágicos de Ésquilo, até as rebeldias inovadoras dos dramaturgos e filósofos escandinavos.
Tendo herdado de seu velho e digno pai o hábito da leitura, o prazer da discussão, o gosto da história e das letras, o método no trabalho, a vontade firme, foi de direito um continuador brilhante da justa fama e glorioso prestígio da família ilustre, cujo sobrenome três vezes brilha nesta casa.
A sua obra assume aspectos imprevistos. Esplende o autor na ficção, como romancista, percorrendo toda a gama, desde a suavidade imaginosa até o pinturesco regional e a complicação psicológica, que nivela os escritores aos alienistas.
Há muito que ler e admirar em todos esses trabalhos de imaginação, desde o Ninho do beija-flor e O reino encantado até Jacina – a Morabá, Miss Kate e O cajueiro do Fagundes.
Na crítica, embora em regra se servisse dos livros de que tratava como um simples pretexto para se expandir e se espraiar, adquiriu uma autoridade incontestável e primou sempre pela acuidade de seus processos, vastidão de sua cultura literária e filosófica, segurança de critério e autoridade dos conceitos.
Ele era de fato um crítico, se fazem grande questão de apelidá-lo; mas ninguém pode filiar sem maiores explicações o seu poderoso espírito a essa missão dogmática de comentador oficial, caída hoje em descrédito.
Araripe tinha em alto grau a paixão do belo, vibrava com os grandes autores, delirava com eles, possuído sempre do fogo interior que cria, vivifica e deslumbra. Ora, a crítica não se apaixona, não vibra, não delira; esmiúça, conta, mede, pesa, apara, censura, tudo com pausa, tudo sem alma, irritantemente estéril na sua função parasitária...
Convém lembrar o que Araripe Júnior disse um dia, por desencargo, salvando embora os tipos consagrados de Paul Saint-Victor, Sainte-Beuve, Hippolyte Taine, John Ruskin e outros de sua predileção:
“Eu não creio que a crítica seja uma ciência fundada. Não lhe conheço os princípios abstratos. A crítica, portanto, arvorada em magistratura, é um escândalo tão digno de ser profligado como as antigas justiças consulares.”
Os críticos que ele admirava e cujos processos procurava seguir não eram propriamente os que tudo explicavam, à maneira de Taine, nem os que deduziam regras como de uma ciência independente, e se tem tentado infrutiferamente de Baumgarten até o malogrado Hennequin.
Isto que ele escreveu em janeiro de 1907 combina perfeitamente com o seguinte, que deixara impresso em maio de 94 no prefácio da primeira edição do Gregório de Matos:
“Orientado no evolucionismo spenceriano e adestrado nas aplicações de Taine, procurei depois fortalecer-me no estudo comparado dos críticos vigentes. Todos os pontos de vista da exegese moderna têm sido objeto de minhas preocupações. Toda idéia boa ou má, exeqüível ou inexeqüível, é sempre humana. Assim, pois, acostumei-me a nada desprezar. O próprio pessimismo e os seus variadíssimos dialetos literários, ocultismo, decadismo, pré-rafaelismo, wagnerismo, têm-me ensinado a discernir melhor as coisas humanas e a dirigir o espírito, pondo de lado o que é fortuito. Devo declarar também que muito continuo a aprender relendo Aristóteles, Longino, Horácio e principalmente o bom Quintiliano. O Laocoonte de Lessing fez época na minha carreira de crítico, apesar de havê-lo conhecido quando já estava muito familiarizado com a estética de Taine. Lessing, pelo menos, convenceu-me de que os princípios da arte, os elementos simples, já eram conhecidos da antiguidade grega e que a crítica moderna apenas desenrolou, equilibrando-os, e agora trata de adaptá-los à vida complexa do espírito secular.”
Por estas palavras, que são dele próprio, facilmente se verifica quão longe andava o crítico da crítica, tomados esta e aquele no sentido comum e vulgar.
Mais recentemente ainda, em julho de 1909, repetindo e ampliando uma contestação que opusera ao doutíssimo José Veríssimo em 1905, fez timbre em explicar miudamente a influência de Taine nos seus processos de crítica, declarando então abertamente que, sem negar essa influência, tomava rumos próprios, por uma discordância visceral de sua natureza com as tendências pessimistas, o determinismo seco e a falta de lirismo do autor da História da literatura inglesa.
Liberto do monopólio das escolas, pelo estudo da sociologia contemporânea, que parece ter destruído o velho espírito de sectarismo, voltou a Taine, mas só para procurar, como refere no seu último livro dedicado ao Conde de Prozor e que, por ser uma maravilha que nos honra, já devia estar traduzido para língua mais falada, as correlações dos estilos e as suas influências à distância no tempo e no espaço.
Foi então que ele tomou a Arte nas suas expressões mais altas e ma perfeitas, pondo-se a estudar o sentimento da tragédia, desde Ésquilo até Ibsen, e enfileirando de permeio Alighieri e o grande Will, para chegar finalmente aos altos pensadores e escritores do século XIX, sustentando, apoiado em Nietzsche, que o sentimento trágico virá a constituir a verdadeira base da obra artística do século XX.
Araripe confessava que daí lhe viera uma grande alegria interior, o gozo de viver compreendendo a vida em toda a plenitude de suas manifestações. Mas não sei se combateu e destruiu, como ingenuamente imaginava e dizia, “as duas supremas negações, o diabo e a morte”, que eu, na minha insignificância, continuo a reputar dois símbolos eternos, duas figuras inextinguíveis, causa e finalidade das tragédias todas...
No comentário, ninguém foi mais vivamente pugnaz e buliçoso do que Cosme Velho, cujos diálogos cintilantes, lépidos e uma vez por outra cáusticos, diziam com independência das novas grandezas do Brasil.
Como burocrata, a sua tarefa representa uma soma formidável de trabalho. Seus pareceres, guardados no Arquivo da Secretaria da Justiça e Negócios Interiores, dariam volumes e volumes de doutrina e praxe administrativa.
Para esse ministério só entrou em 1886. Havia sido já secretário do Governo em Santa Catarina, de janeiro a dezembro de 1871, deputado provincial do Ceará nos dois biênios de 1872 a 1875 e juiz municipal de Maranguape, do penúltimo ano indicado até 1876. A advocacia nunca lhe sorrira, como também não lhe tinham agradado a política e a magistratura. Ele não era homem da lei, mas da doutrina, nem dos partidos, mas das idéias. A própria carreira para que se titulara, como que se lhe afigurava uma permanente deformação intelectual para servir a interesses particulares nem sempre legítimos. Faltava-lhe tentar a burocracia. Aproximou-se dela com o vago pavor de encontrar-lhe os mesmos defeitos das outras profissões pelas quais transitara. Mas a nossa burocracia, naqueles tempos, era uma severa escola, e ele pôde por fim sentir-se bem no lugar a que concorrera. A República ali o encontrou e foi premiando-lhe os méritos, até que lhe criou um lugar privativo, como a sua capacidade reclamava.
Jurista, consultor geral da República, foi durante anos uma admirável enciclopédia do Direito posta ao serviço dos interesses superiores do país, esclarecendo e guiando o Governo em um sem-número de questões relevantíssimas, tratadas exaustivamente pela sua sapiência indiscutível, que pôde substituir sem demérito o aparelho suntuário do antigo Conselho de Estado.
Na resenha dessas questões encontraremos monografias completíssimas sobre os mais importantes e variados assuntos, de que apenas enumerarei estes, a título de simples nomenclatura:
I – Imunidades parlamentares;
II – Mineração;
III – Taxação dos Estados e do Distrito Federal;
IV – Prescrição (vários casos);
V – Montepio (idem);
VI – Acumulações remuneradas;
VII – Leis de amortização;
VIII – Catequese;
IX – Funções públicas vitalícias – Direitos e garantias dos funcionários vitalícios;
X – A telegrafia sem fio em face do regime da Constituição Federal sobre o serviço de telégrafos;
XI – Propriedade e servidão militar;
XII – Irredutibilidade de vencimentos da magistratura;
XIII – Monopólios municipais em concorrência com serviços federais;
XIV – Expulsão de estrangeiros;
XV – Direitos autorais de estrangeiros não residentes no Brasil;
XVI – Distribuição constitucional e registro nacional das águas;
XVII – Intervenção federal nos Estados (vários casos);
XVIII – Vacância de bens de ordens religiosas;
XIX – Intervenção do Governo Federal na instrução primária do país;
XX – Cessões territoriais feitas pelo Governo Revolucionário do Acre.
Esbarrei há dias, na Biblioteca da Câmara, com um volume do Espírito das leis, de Montesquieu, com a capa estragada e indícios evidentes de trato constante.
Na primeira página está escrito: Araripe Júnior, Recife 1868. Como ele nasceu em 1848 (27 de junho), segue-se que aos vinte anos, doze meses antes de formar-se, já trocava os compêndios pelas obras mestras.
Quarenta anos decorridos dessa primeira leitura, na sucessão interminável de outras igualmente valiosas para a compreensão larga do direito e da democracia, por força apuraram o seu sentimento político no liberalismo e na tolerância.
Na mesma Biblioteca estão hoje alguns de seus cadernos de retalhos e notas. É preciso consultá-los para se ter idéia do seu método admirável de trabalho e da segurança de suas fontes de informação.
Escrevendo a respeito do primeiro volume de seus pareceres, disse o ilustre Dr. Valadão:
“O seu processo de orientação é sempre seguro. O texto da Constituição não lhe inspira timidez. Além de crítico, Araripe Júnior dele se aproxima desassombrado: examina-o, desdobra-o, até que ele se possa harmonizar com a sua finalidade social. Não é um fetichista da lei; é um cultor do Direito.”
Personificando o tipo Ideal do perfeito polígrafo, a sua ação educadora no nosso meio se dilatou de um modo realmente prodigioso.
Pasmava a gente de encontrá-lo tão modesto, a cuidar de coisas mínimas, contente da vida entre os seres que adorava, e feliz também dos amigos que possuía e das admirações que suscitava, sem parecer que atentasse nisso.
Quem o visse, nos últimos tempos, quase infantil, a ajeitar sem descanso o microscópico pince-nez azul que parecia reputar um hóspede importuno no seu nariz reto e curto, quem o visse, despreocupado e moroso, a sair de um cinema para entrar no imediato, lado a lado de Euclides da Cunha, este outro incomparável gigante que ele revelara ao Brasil estarrecido em dois ou três artigos de crítica, mal suporia que aquele velho simpático e palestrador fosse, na verdade, a capacidade complexa e multiforme, admirada por todos os seus contemporâneos.
Escragnolle Dória no-lo descreve como um avô caroável, fazendo com os netinhos passeios longos, que terminavam em regabofes de frutas, ou conduzindo-os com extremos de ama-seca aos circos de cavalinhos, para que vissem os trapezistas e palhaços e se divertissem e o alegrassem também com a angelitude de seus brincos.
Eu não poderia de modo nenhum fixar neste breve discurso os traços principais da saudosíssima figura que me precedeu e cujo lugar aqui ficará mais vago ainda com a insuficiência palpável de minha presença.
Dele recebi, nos intervalos da moléstia que o prostrou, reiterados bilhetes para que apresentasse a minha candidatura à vaga de Raimundo. Guardo esses autógrafos, como relíquias da bondade que se partiu, e choro a fatalidade que me trouxe por afeto a pleitear-lhe a sucessão. Não careceis de perspicácia para compreender que os vossos votos claudicaram na escolha, nem eu me animo a escusar-me da audácia de havê-los impetrado. Culpai a solicitude benevolente de Araripe Júnior e de outros que moram convosco e afinam pela mesma corda sentimental e gentil.
Ele imprimiu sempre em relevo esta nota suavíssima nas faces poliédricas de seu grande e formoso caráter de homem e de escritor.
José Veríssimo, seu digno êmulo e irmão nas letras, acentuou-lhe essa qualidade primacial no breve e sólido necrológio que pronunciou à beira de seu túmulo, no dia do seu sepultamento. A presença de nosso digno Presidente nesse enterro foi outro testemunho eloqüente do reconhecimento das qualidades morais do morto. Ele nunca poupou flagelações ao gênio de Rui Barbosa, mas este, que lhe era rival na bondade sem fim, compreendeu com tocante indulgência, no instante de seu desaparecimento, que todas aquelas investidas, como as que, por exemplo, se adivinham nos Dous Grandes Estilos, significavam apenas represálias nobilíssimas da piedade filial magoada e sincera, embora talvez sem causa que justificasse tamanho ardor e tão vivos ressentimentos.
Pena foi que tais represálias houvessem até chegado a ocasionar, da parte dos melindres ofendidos, o rompimento com outro intelectual distintíssimo, perfeitamente inocente de semelhantes diabruras...
Senhores: Antes de compor este discurso, que me vai saindo tão incolor e sem nexo, quis reler todos os outros aqui pronunciados em ocasiões análogas, no propósito mental e geométrico de regular por eles a forma e extensão do meu. Encontrei-os de todos os tamanhas e feitios, excelente afirmação de que a Academia não fixou ainda o seu metro à loquacidade dos recipiendários. Vejo, com pesar, que estou enchendo de coisas vazias a minha fala sem tom e sem fundo. Perdoai-me, com o precedente de outros, que por pouco se não esqueceram dos seus grandes patronos. Eu vos fatigaria se me propusesse a trazer-vos minúcias biográficas e analíticas. Contento-me com o bastante para vos mostrar que entro desolado pelo não poder jamais honrar suficientemente a sucessão dificílima. A sinceridade de minha saudade possa ao menos justificar o excesso da pretensão que inadvertidamente coroastes. Tomo o exemplo sóbrio de João Ribeiro e vos digo, como ele o fez do suavíssimo Luís Guimarães, que o dia é do louvor e não da crítica.
A crítica é uma função do negativismo. Quem critica de verdade só por exceção admira. A justiça do preclaro acadêmico designado para me receber não olvidará naturalmente o castigo do vício apologético, hoje tão radical em mim como a virtude contrária me foi na primeira idade. Acatarei a pena como lição profícua, porque sei que ele educou o seu fino espírito na observação, que hoje substitui, como mestra da vida, a velha História, que escrevia sem penetrar o sentido dos fatos e, apesar disto, se jactava de ser, na frase de Cícero, a testemunha dos tempos e a luz da verdade.
Permiti que registre, para concluir, outros aspectos curiosos da personalidade de Araripe Júnior, falando, por exemplo, do que José Veríssimo chamou nele “o pico de exotismo e singularidade com que se lhe comprazia o gosto do estranho”.
Não tomemos semelhante alheamento ao pé da letra, pois muito certo é que não haja sido esse o objetivo da referência autorizada.
Ninguém foi mais lidimamente e superiormente nativista do que ele, a quem o próprio e ilustre José Veríssimo considerou “um dos mais compenetrados da obrigação de fazermos essa obra, mais que todas patriótica, da cultura nacional”.
Machado de Assis queria que a Academia servisse sobretudo para “conservar no meio da federação política a unidade literária”. Ninguém serviu melhor a esse ideal do que Araripe Júnior.
Devemos atentar nisto com o maior cuidado. A federação política está feita, embora ande por aí adulterado e claudicando o pensamento constitucional que marcou ao Brasil essa forma de vida, que os espíritos mais adiantados do Império, nos últimos tempos deste, já namoravam, desiludidos de corrigir a atrofia do centro.
A unidade literária será uma função lógica e natural do triunfo do idioma. Graça Aranha entreviu essa vitória nas mais belas páginas de seu livro, mas não devemos confiar que ela nos esteja assegurada sem um esforço constante de nossa parte para manter tão alta e bela conquista. Só esse trabalho, pelo comércio ininterrupto das letras e pela difusão ampla e larga do ensino, poderá nivelar as dessemelhanças lingüísticas regionais, que as disparidades mesológicas favorecem num país vasto como o nosso e a invasão em massa de elementos de fora agrava sobremodo. Todo homem de inteligência e de preparo entre nós deve ser uma força militante e educadora, escrevendo o mais que puder para assegurar o patrimônio inestimável e habilitá-lo assim a resistir melhor, pelo apuro da cultura, à fragmentação dolorosa que se receia.
A propósito desse assunto, a referência ficaria incompleta se eu não aludisse a uma passagem muito interessante dos “Lucros e perdas”, crônica mensal dos acontecimentos, que Araripe Júnior redigiu em 1883, de colaboração com este outro luminar da crítica no Brasil, Sílvio Romero.
O destino de nossa literatura foi ali nitidamente fixado pelo segundo com pincel de mestre. Ouçamo-lo:
“Todo e qualquer problema literário há de ter no Brasil duas faces principais: uma geral e outra particular, uma influenciada pelo momento humano e outra pelo meio nacional, uma que deve atender ao que vai pelo mundo e outra que deve verificar o que pode ser aplicado ao nosso país. A literatura no Brasil, a literatura em toda a América, é um processo de adaptação de idéias européias às sociedades do Continente.
Para que a adaptação de doutrinas e escolas européias ao nosso meio social e literário seja fecunda e progressiva – é de instante necessidade conhecer bem o estado do pensamento do Velho Mundo e ter uma idéia nítida do passado e da atualidade nacional.”
Araripe fulgiu nessas duas modalidades imprescindíveis à formação do ambiente compósito que o seu colega de panfleto reclamava para exprimir as conveniências de ordem cultural no Brasil.
As névoas intelectuais, em que gostava de mergulhar, não lhe tiraram a marca de nascença. O cearense perdurava nele, como um bom e amoroso filho da terra ardente brasileiro e entusiasta, cheio, é certo, de curiosidades universais, mas fiel e apegado ao sentimento da pátria, que as suas intimidades mentais com os credos libertários mais avançados nunca lhe modificaram. Gabou-se até disso quando, no momento da irrupção jacobina, conseqüente ao triunfo da primeira resistência militar na República, lançou à publicidade o seu notável estudo sobre Gregório de Matos, erigindo-o num símbolo inicial da revolta nativa. Bisneto de Bárbara de Alencar, a heroína e mártir, a quem ele próprio chamou de Cornélia e a quem o padre Joaquim Dias Martins se refere com tantos gabos; neto do intrépido e malogrado Tristão Gonçalves, cuja cabeça Lord Cochrane pôs a prêmio, e daquela doce e abnegada Ana Triste, que fez de sua longa viuvez um noivado de lágrimas; filho do segundo varão daquele nome e ligado pelo sangue ao famoso padre José Martiniano e ao notável romancista e político José de Alencar, ele encarnava por sucessão legítima a glória do Ceará na amplitude de suas tradições liberais e nacionalistas e na refulgência de suas letras apuradas e distintas.
E foi mais pelo renome do Brasil do que pelos brasões da família colateral, que eternizou a figura do autor do Guarani e fixou nos seus variados trabalhos tantos outros tipos excelsos de nossa galeria, chegando até ao misticismo doentio de Anchieta, que aliás não creio ter saído muito diminuído de suas irreverências.
O seu gosto pelo estranho não era também só o extravasamento da gentileza literária enaltecendo os de fora, como fez com o alto e brilhante espírito de Garcia Merou, para retribuir o galante favor de sua assiduidade nas palestras finas d’A Semana e não sei também se nos chás deselegantes mas saborosos da antiga e celebrada Revista Brasileira, cujo nome todos que aqui entram estão no dever de citar porque foi ela o verdadeiro núcleo formador desta Academia.
No fundo, essa tendência para o estranho não significava da parte de Araripe senão o horror da banalidade e a propensão intelectual incoercível para penetrar e discutir aquilo que ele próprio chamou uma vez, referindo-se, se bem me lembro, a Alighieri, a parte noturna das coisas humanas, ou sejam os “temas eternos” sobre quê palestram as figuras imortais de Milkau e Lentz na Canaã, verdades absolutas e inexplicáveis que ficam representando, em todas as literaturas, como na longa história dos sistemas de filosofia e de crítica, os grandes marcos miliares do pensamento e da arte, à semelhança daqueles faróis soberbos de que nos fala Baudelaire, nas lindas quadras que consagrou aos pintores de gênio:
Car c’est vraiment, Seigneur, le meilleur témoignage
Que nous puissions donner de notre dignité
Que cet ardent sanglot qui roule d’âge em age
Et vient mourir au bord de votre éternité!
Dele posso dizer que foi talvez o único que compreendeu a geração de que sou parte mínima e que devia de preferência ser representada entre vós por algum dos artistas puros que produziu e que o jornalismo não estragou.
Quando Cruz e Sousa apareceu com o Missal e os Broquéis, todos se conclamaram contra o esteta novo e estranho, apedrejando-o como um vazio e campanudo arrumador de frases. Araripe, não. Deteve-se a examinar longamente aqueles dois livros, que já anunciavam o poder das Evocações, a claridade dos Faróis e a sabedoria dos Últimos sonetos. É possível que, com o querer tornar-se exaustivo, tivesse parecido cruel. Mas não deixou de reconhecer que as novas fórmulas ficavam sendo uma transformação necessária do Parnasianismo. Foi mais longe, confessou que a aspiração da escola era “criar aptidões novas, nova afinação aos nervos, exprimir o inexprimível, transformando o poeta no microfono vivo da vida terrestre invisível’. Considerou-nos, apesar de tudo, “um sintoma de fenômenos mais elevados”. Não foram de outra ordem os conceitos mais recentes de Bergson, que o professor Dumas divulgou entre nós, sobre o significado e o alcance do movimento simbolista.
Seis anos depois, na monografia do Livro do Centenário, Sílvio Romero incluía o negro admirável entre os reis do verso no Brasil, dizendo que ele era a muitos respeitos “o melhor poeta que o nosso país tem produzido”, o verdadeiro “ponto culminante de nossa lírica após quatrocentos anos de existência”. Não tardou que nos chegasse do estrangeiro o eco dessa consagração na admirável conferência de Ricardo Jaime Freire. E, há poucos meses, o espírito eminente e gentil que preside esta sessão, o Sr. Conde de Afonso Celso, fechava o seu formoso discurso aos novos bacharéis em Direito, recitando-lhes com alma e sentimento quatorze lapidares decassílabos do grande artista morto.
Por ocasião do passamento de Araripe Júnior dei no Jornal a notícia comentada que a aflição do momento me sugeriu. Vossa Revista considerou-a bem feita e a transcreveu. Não é demais que eu lhe reivindique a paternidade, reportando-me aos seus termos, como escusa da estreiteza deste discurso, a que tive de fazer numerosas aparas, pelo respeito que me merece a vossa atenção.
Posso rematar sem atavios, voltando ao começo, para ligar pelo mesmo traço comum a febre da indagação moderna, perfurante e sutil, que deve ser o apanágio do jornalismo de nosso tempo, e os aspectos proteiformes dos grandes espíritos como de Araripe Júnior.
É a vida que nos interessa, na complexidade imensa de suas manifestações, sejam estas visíveis e claras ou sejam sibilinas e trevosas.
Todos nós somos arrastados na onda universal da curiosidade, que não se exerce só sobre os fatos, antes persegue e devassa as idéias, até para além dos segredos da morte. Araripe foi um ousado navegador destes mares imensos e sem praias, onde a ilusão humana chora os desesperos de sua impotência. A sua substituição devia caber a alguém da mesma envergadura e possança, nunca ao frágil aprendiz em condições e incapaz de falar-vos a linguagem reveladora e profunda de que o Mestre se servia para desvendar os mistérios da razão e explicar na Arte os fatalismos do destino social. Ele ocupou, entre nós, um píncaro soberbo, e eu só devo esperar que a lição de seu descortino continue projetando sobre a planície modesta, onde vivem os humildes, um pouco da luz divina, para consolar as almas rudimentares, que não podem subir às alturas soberanas de onde tudo se abarca e se avista no gozo radiante e perfeito da eterna beleza!