A nossa Academia recebe hoje um poeta. E, quando uma Academia de Letras acolhe um poeta, ela cresce. Cresce por dentro, que é como convém crescer.
Mas o que é um poeta? E o que é o poeta hoje, nestes tempos de cólera? Sou levado a imaginar que o poeta não é apenas um fabricante de versos, destinados ao prazer solitário de beletristas certamente sedentários. O poeta é antes uma espécie humana – cada vez mais rara – tocada pelo vigor da criação: saído da “árvore do mundo” e protegido ou desamparado pelo “chapéu das estações”. Talvez, por isso, alguém que trabalhe a Linguagem no interior de um compromisso criativo, mesmo que em diferentes campos da aventura ou do saber humano, na investigação científica, no desempenho público, na vida profissional, este “mais que alguém” pode e deve ser considerado poeta – no sentido radical do termo. Não o deve, nem pode, aqueles produtores de versos, ou de qualquer outra modalidade literária, em franco dissídio com a razão de ser e estar da Poesia.
O poeta que hoje acolhemos, ou por quem somos acolhidos, é Carlos Nejar. Poeta da Poesia, mais que do verso. Porque o verso costuma ser perecível. Quando os tempos mudam, os estilos se alternam ou se alteram, os versos sofrem profundos abalos. E, nessas horas incertas de revezamentos ou de impugnações históricas, quem assegura a permanência do poeta é a Poesia: a palavra que fala ou se cala, para além dos limites do verso.
A poesia de Carlos Nejar se compõe de camadas diversas, que se entrecruzam, se dispersam, retornando sempre ao mesmo estuário, ao mesmo núcleo energético, de onde irrompem, em sequência razoavelmente solidária, as imagens da revelação. Revelação sobretudo de Deus, sob o olhar vigilante do tempo. Como se a Poesia não fosse se não a projeção natural dessa revelação, acompanhada de uma vontade diária de ver e pressentir. Mas este poeta metafísico, mágico, obstina do culto do mistério, jamais se deixa enredar nas malhas de um poema enigmático. O seu enredo poético de tal maneira alarga o princípio da realidade, que quase podemos falar na transparência do mistério – religioso, cosmogônico, telúrico.
Tanto mais porque o Deus absorvente do poeta é “o Deus vivo”, que ele não se cansa de apontar nos versos mais ou menos explícitos do seu livro O Chapéu das Estações:
Deus é vontade
de estar tão perto
que só capina
no amor ou dentro
do pensamento.
Ou, ainda: “Deus, a folga. / A façanha dos vivos.”
É no tecido espesso do tempo, curtido “nas oficinas do vento”, do Vento Minuano, que o homem se abriga ou se desprotege. Na poesia de Carlos Nejar, o tempo logo se mostra como usina incansável, criador, não menos infatigável, de cotidianas verdades, que parecem tomar corpo e alma por entre o calendário objetivo das condenações pontuais e o horário subjetivo dos gestos generosos. Compreende-se porque a sua estratégia, mais que de mediação, de manifestação do real, deixa campo livre para os jogos opositivos. Ou para a valorização adequada de situações tensas: o homem entre a eleição divina e a experiência imediata, a peripécia humana cortada pela errância e o enraizamento, o mundo como dor e amor.
O tema da errância se organiza em torno do que poderá ser a constelação da viagem e tanto nos fala, em Memórias do Porão, de alguém que “viajou para aquém da infância e não voltou”, quanto, em Canga, nos descreve o exílio, mas já com as imagens da terra e no registro próprio à sua linguagem espiritual:
O exílio não é o longe,
mas o cerco.
O exílio, campo exposto,
onde pasta o pensamento.
boi que trabalha no amanho.
O exílio é um deus amargo.
É preciso, portanto, regressar à terra, voltar à morada do homem. A terra é o lugar da raiz. E será sempre, enquanto for terra sem terror. Porque o terror vem a ser a expressão mais acabada do desenraizamento. O poeta, que é também poeta do conhecimento, sabe, e porque sabe, afirma, justamente em Um País o Coração: “Os ventos vêm / mas não separam / homem e terra.”
Carlos Nejar procura, frequentemente, estabelecer novas modalidades de convivência, relações inesperadas, que talvez se potencializem no binômio dor e amor, agora convertido em instância de conhecimento e passagem obrigatória da invenção.
Árvore do Mundo consigna: “Onde o amor / só de criar, nos cria.”
Em Memórias do Porão, acrescenta:
Mas o amor é a energia predisposta
ao inteiro silêncio. A energia
de salvação.
E a salvação é o avesso da matéria.
O enlace com o segmento dor não é menos preciso. Em O Chapéu das Estações:
Só na dor entendemos.
....................................
E na dor respiramos
os climas inventados
o olor da resistência.
ou em Árvore do Mundo: “A dor é resistência. / Até a execução / no amor é resistência.”
A resistência da subjetividade, ampliada pela experiência do “outro”, em Canga, Os Viventes, Um País o Coração, transpõe as barreiras individualistas, para levar adiante a preocupação solidária por identificar um “rosto coletivo”.
O trabalho da linguagem, na Literatura ou nas literaturas brasileiras, especialmente modernas, oscila entre a lição da memória e a ação da experiência, no encalço da identidade possível. Não tão possível, em face da incessante pressão individualista. Do abismo que se interpõe entre a premissa da rememoração e a promessa da identidade.
A eclosão da subjetividade, hipostasiada no desenho usurário do indivíduo, nos deixa um legado literário de consistência crítica pelo menos duvidosa. É quando predominam as representações de um indivíduo “sem qualidades”, conforme o dizer de Robert Musil, sem atributos convincentes, abandonado ao seu individualismo predatório. Esse indivíduo ilhado é o contrário do indivíduo como processo, necessariamente intersubjetivo, a uma só vez moção e emoção, que a poesia de Carlos Nejar vai reconstruindo, em meio aos destroços da Baixa Modernidade.
À experiência, estava reservada à tarefa de reprogramar a memória e programar a identidade. Com o avanço da modernidade, o que fora uma experiência razoavelmente coesa se parte em vários pedaços disformes. O homem singular perde o seu eixo ético e leva de roldão as instâncias de ordenação do universo poético ou ficcional.
Daí a expectativa que cerca o aparecimento do indivíduo imune ao individualismo. O indivíduo, como processo, a todo instante rememora e experimenta. E é justamente essa aliança de memória e experiência que evitará o que poderia ser uma morte por claustrofobia. Experiência e memória se encontrariam para viverem, juntas e solidariamente, as peripécias do indivíduo social.
Por isso, é oportuno falar-se em representações, ou manifestações verbais pendulares, que se debatem entre as leis do indivíduo e as individuações da Linguagem, à procura de um esquivo, embora nunca inviável, contraponto. Esse contraponto com o qual se confunde a própria realidade e que o poeta Carlos Nejar assim exprimiu, em O Poço do Calabouço: “O real é contraponto.”
Essa poética do real, e porque do real, do contraponto, talvez se alongue em outro segmento de O Chapéu das Estações:
Não somos apenas o que existe,
Há camadas que guerreiam.
Não apenas o que existe.
Também o que não existe,
somos.
Disse-me certa vez este outro poeta de todos nós, Lêdo Ivo, que todo grande escritor é portador, intérprete e encarnação de uma grande experiência do mundo, da vida, do homem e das coisas. Eu supus que ele falava de si mesmo. Tinha todos os motivos para chegar a essa fundamentada suspeita. Mas Lêdo Ivo me esclareceu que se referia a Carlos Nejar. Fiquei a pensar o quanto de preciso havia naquela avaliação. É que os poetas adivinham, enquanto os críticos apenas constatam. A adivinhação é a constatação antecipada. Do mesmo modo que a Poesia como experiência – experiência vertical e certamente trágica – guarda consigo, como um tesouro escondido, os segredos do mundo. É natural que ela se cerque de mistérios. Mas o mistério, pelo menos em Carlos Nejar, jamais se confunde com a abstração inconsequente. Ele é antes um impulso vital, determinado pela força mítica da realidade.
A permanência do mistério, em épocas escandalosamente devassadas, é ainda o vigor prolongado de uma ética trágica, toda sustentada pela consciência da finitude. “Se queres entrar no Infinito, segue o Finito por todos os lados”. São palavras de Goethe, recolhidas como epígrafe, por Carlos Nejar. Elas correspondem a uma espécie de chamamento à realidade e significam mesmo uma decidida aposta no homem, que talvez encontre o seu correlato no discurso matinal do poeta gaúcho: “Sempre caminhamos sob o vento, / sempre madrugamos sob a terra.”
A responsabilização do homem, do animal simbólico que assume em toda a linha o risco cotidiano de ser, nos atira, sem consternação e sem desolação, nos braços do moralista. Do moralista vacinado contra o vírus prescritivo das éticas autoritárias. Do moralista que é, antes de tudo, o dedicado estudioso do homem. E que por isso pergunta:
Que homem sou,
se desde o acordar
uma culpa flamejante
me guarda?
...................................
Que homem sou,
se continua a reclusão
fora da cela,
se apenado permaneço
além da pena
e não sei quando termina
em suas radiações, irradiações, resinas?
Quando o moralista deixa de ter dúvidas, quando renuncia à sua perplexidade congênita e identificadora, no momento em que ingressa no obscuro território das certezas, nesta hora ele muda de nome. Já não é o moralista, porém o pedagogo. Por isso, o moralista se encontra mais próximo do poeta. Quase podemos concluir, não sem alguma temeridade, que todo poeta que se preza, e nos preza, é um perquiridor, um descobridor do homem.
Esse enraizamento a uma só vez humano e ético – humano porque ético, e ético porque humano –, provavelmente se explicita, ainda mais, no poeta cidadão. No poeta outrora proscrito, que regressa à cidade, para protegê-la da adversidade. No poeta cidadão e até plebiscitário, da sua terra, da sua nação e do seu continente, todo voltado, pelas vias do pensar e do sentir, para a instauração de relações abertamente emancipatórias.
O combate do amor e exercício tenso da vontade reanimam agora o movimento da identidade. O querer e a esperança da parceria – esse modo solidário de apreensão da vida do mundo – mobilizam o homem e a linguagem. Não apenas como relações de produção, mas sobretudo como “produção de relações”. O nosso querido e saudoso Celso Cunha, filólogo com as antenas dirigidas para o poético, me ensinou que a Língua é eminentemente relacional. A Linguagem seria relacional em segundo grau. O poeta de O Chapéu das Estações sabe, com o saber da experiência feito, que entre a aventura e a disciplina persiste uma antiga e sempre renovada peleja relacional. Por isso não se cansa de perceber:
Aventura, aventura,
ferrenha disciplina.
Curta e frouxa a memória
e pequena a fortuna.
A linguagem luta
Aventura, aventura!
O poeta Carlos Nejar conduz a Linguagem ao limite ilimitado da representação. Quando a representação se exaure, ou se esgotam as suas formas habituais de fazer-se presente, ou de tornar presente o dinamismo do real, ele resiste à falsa saída da encenação. Prefere o esforço tenaz da reapresentação. Reapresentar, no caso, é criar. E é como um criador de linguagem que Carlos Nejar chega hoje à sua Casa. Porque a sua casa é a Casa de Machado de Assis.
9/5/1989