Essa publicação faz parte da coleção Revista Brasileira
Editorial
Rosiska Darcy de Oliveira
Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras.
A palavra assusta. O medo da literatura vem de longe. Todos os autoritários temem a força da palavra. Temem a imaginação que transita soberana pelos territórios livres do sonho e do pensamento. A imaginação e o pensamento são, de natureza, rebeldes.
Autoritários têm uma versão própria do que seja o mundo que acreditam correta e indiscutível. Organizam a história segundo sua lógica e constroem assim sua própria ficção que chamam de verdade, enquanto os romancistas escrevem as verdades que chamam de ficção. É então que são censurados.
A literatura é mesmo subversiva. Se assim não fosse, os aiatolás do Irã não teriam lançado uma fatwa contra Salman Rushdie e seu Os versos satânicos, cujo pecado maior foi ter dito literariamente o que outros já tinham dito em ensaios e artigos teóricos. O talento do escritor tece o mundo que deseja e, pior, serve de exemplo e excita o sonho de olhos abertos com que se faz a vida real.
Quem queima livros não percebe a força da metáfora viva que cria. Quer reduzir a cinzas o que existiu como se cinzas fossem sinônimo de aniquilamento. Só que cinzas, modernamente chamadas censura, são bom adubo.Livros, queimados ou censurados, fertilizam novos sonhos que nascem ainda mais frondosos.
Mas foi então que a mentira autoritária encontrou seu instrumento ideal, as fake news, mentiras de longo alcance. A infocracia está corroendo por dentro a democracia. Como defendê-la? Como apagar essa fronteira em que a censura é invisível e todos, sem saber, obedecem a ela? Um caminho estreito, balizado pelas supostas escolhas do sim ou não, que viciam o cérebro em um raciocínio sem nuances, sem dúvidas, e desaprendem a pensar.
Mais uma vez, contra essa censura invisível que encolhe o pensamento, a poesia encontra suas veredas, a poesia em si, única e irrepetível. A poesia da pedra ou da faca de João Cabral de Melo Neto.
Em prosa, o infinito Machado de Assis, imprevisível, ensina a complexidade humana e a sua própria.
A Revista Brasileira desde sempre trabalhou com a imaginação: o defunto Brás Cubas, no fim do século XIX, escreveu aqui suas memórias póstumas. Atualíssimas, ei-las de volta às nossas páginas.
A multiplicidade de pontos de vista, que é a vocação da Revista, recusa os caminhos estreitos e traz depoimentos sobre a sensibilidade de várias culturas que formaram e continuam dando forma, cada dia uma forma diferente, à sociedade brasileira. Com a palavra os escritores e artistas indígenas e negros, suas línguas e pensamentos.
A força da palavra não se extingue. Há uma ameaça quando a tecnologia usada contra a liberdade reduz e desintegra a palavra e o pensamento. Mas os que lidam com palavras têm também seus instrumentos pacíficos. A imaginação artística e a literatura em todas as suas formas resistem. Como escreveu o poeta João Cabral, em Uma faca só lâmina,
Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.