Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Lêdo Ivo > Lêdo Ivo

Discurso de posse

Numa tarde de outono, um homem caminha pelas ruas de Londres. O frio e o vento o obrigam a encolher-se no seu sobretudo. Sozinho e desconhecido na metrópole que Verlaine comparou à Babilônia, esse homem é um exilado, expulso de sua pátria por um caudilho taciturno. E, enquanto ele marcha entre as folhas que caem, em seu espírito flui a interminável reflexão sobre o seu país que, no outro lado do oceano, vive as turbulências do dissídio e do desencontro. 

Esta é a imagem que me ocorre de Rui Barbosa, o Fundador da Cadeira 10: a do exilado.

Os dias de Londres impuseram ao tribuno tonitruante um falar em voz baixa, para si mesmo e sua solidão. O resultado desse quase silêncio, desse murmúrio comparável ao das águas do rio estrangeiro, é a prosa solene e majestosa das Cartas de Inglaterra – conjunto de ensaios que está para a Literatura Brasileira como os Ensaios de Macaulay para a Literatura Inglesa. Bastaria esse livro admirável para que o Fundador desta Cadeira ocupasse, como ocupa, um dos sítios mais privilegiados da história da Prosa Literária em nossa Língua.

Bendito exílio! Bendita amargura cívica que, sequestrando-o do convívio pátrio e condenando-o às marchas erradias pelas ruas da Inglaterra, permitiu a Rui Barbosa a reflexão prolongada que haverá de guiá-lo quando, de volta ao Brasil, tornar a falar em voz alta e a empolgar, com seu estilo suntuoso e indignado, as praças públicas, as tribunas políticas e literárias e as colunas dos jornais.

Na trajetória extraordinária de Rui Barbosa desfila o mundo político, com as suas ambições, vitórias, derrotas, confidências e inconfidências, frustrações e perplexidades, sonhos e promessas – toda essa galáxia dos homens e acontecimentos envolvidos no infindável processo de conquista, manutenção e perda do poder, e na qual se estendem tantas escuridões, estrelas cintilam e se apagam e voltam a brilhar misteriosamente como se fossem as luzes dos destinos surpreendentes, e silêncios se sucedem a palavras inflamadas, e a vibração dos comícios e do povo nas ruas é, às vezes, abruptamente substituída pelo avançar dos tanques e a cintilação das baionetas.

Desse mundo ao mesmo tempo mutável e petrificado, que foi também o de Evaristo da Veiga, o Patrono desta Cadeira – desse mundo de utopias e sucessivas esperanças adiadas, dessa comédia política engastada na grande comédia humana, Rui Barbosa foi o habitante glorioso e exemplar, sempre voltado para nós, para a nossa inquietação, e pronto a nos dizer que a História não é só o passado, a experiência acumulada ou perdida, mas também o tempoque está sendo vivido por todos nós, o hoje e o aqui. A História é o presente dilacerado que nos incita e incomoda. Na sua lição suprema, a Liberdade avulta como o nosso bem mais valioso, pois os que a menosprezam ou condenam, sob a justificativa de que a sua supressão, mesmo temporária, seria indispensável ao estabelecimento da Ordem e da Justiça, são na verdade os emissários da Injustiça e até do Terror. Nas nações que suprimiram a liberdade a fim de implantar a justiça, não há justiça nem liberdade.

Como no tempo de Rui Barbosa, prosseguimos buscando o modelo de organização nacional que nos permita consolidar, para sempre, o regime republicano e democrático e fundar uma sociedade justa e moderna num Brasil ainda separado em duas civilizações distintas, a da riqueza e a da miséria, assentado em privilégios inextirpáveis e desprovido do sentimento de solidariedade social.

Não encontramos até hoje esse sistema de convívio, que deve estar presente não apenas nas Constituições mas, principalmente, nos espíritos, e incorporar-se às nossas vidas como uma verdade e um destino. Por isso, continuamos pagando, periodicamente, pesado e escuro tributo pela nossa incapacidade. E o caminho do exílio, inaugurado pelos poetas da Inconfidência e seguido por José Bonifácio e Rui Barbosa, permanece aberto, como símbolo da casa dividida e do trágico desencontro das vontades políticas.

Ao longo da História do Brasil, os exilados formam verdadeira legião, o que levou o grande historiador José Honório Rodrigues – desde ontem guardado em nossos corações de companheiros – a cunhar a palavra exiliografia para designar esse arquipélago de sombras.

Com o poder e o esplendor da Linguagem, Rui Barbosa nos deixou uma obra que, tocando sempre em nossas feridas ora cicatrizadas, ora reabertas, nos indaga e nos responde.

Mas a Literatura é o reino do terror e da interdição. Nos lábios do iniciante que se dispõe a mudar o destino das Letras, como se assim também mudasse o destino do mundo, está sempre suspensa uma condenação à morte.

Cada geração arma o cadafalso destinado ao sacrifício dos que vieram antes. Mas, graças a Deus, essa alvorada sanguinária traz a consolação de que o crudelíssimo verdugo juvenil de hoje será amanhã sumariamente decapitado. A liberdade estética anunciada pelo porta-estandarte pressuroso antecipa nova servidão e já traz em seu bojo a garantia da revolta futura. As transgressões mais ousadas são temporárias e passarão como passa o vento que faz fremir a folhagem das florestas. A última palavra não existe em Arte. Ninguém ocupará por muito tempo a fortaleza sitiada e expugnável. E assim vai o mundo: de justiça em justiça, de injustiça em injustiça, de ilusão em ilusão.

Não é de estranhar-se, pois, que o Modernismo, com o seu exacerbado cultivo da coloquialidade e presunçoso desapreço pela retórica, tenha excluído Rui Barbosa da praça principal das nossas Letras, atingindo-o mortalmente no seu ponto vulnerável – ou invulnerável.

O conceito vigente de Literatura, que privilegia a criação poética e a ficção, destituindo vários gêneros preclaros – como a Oratória Política e Religiosa, a Epistolografia, a Prosa dos grandes jornalistas que são também grandes escritores, a Historiografia – contribuiu ainda mais para o afastamento de Rui Barbosa.

Todavia, a sua obra torrencial e oceânica, a sua prosa durável como os rochedos e fragorosa como as ondas das tempestades, insiste em propor-nos a interrogação fundamental que se submete sempre a uma resposta temporária: onde começa e onde termina a Literatura.

E a sua prosa juncada de fulgurações retóricas nos adverte que a Literatura se divide em várias famílias espirituais e estilísticas, não podendo, portanto, ser representada por uma única e monótona família, enfraquecida e empalidecida pelas sucessivas uniões incestuosas e na qual todo mundo seja primo de todo mundo. Os adeptos da linguagem única para a criação poética e literária, com a adoção compulsória de um determinado estilo, são, na realidade, sequazes do autoritário ou totalitário partido único.

Na Casa do Senhor, há muitas moradas – guardemos em nossas almas essa verdade bíblica, que o meu antecessor, Orígenes Lessa, certamente muito amou. Na diversidade estilística, residem o brio, a força e a honra das literaturas.

A grande Geração Realista e Parnasiana de Rui Barbosa e Machado de Assis se caracterizou pela obsessão de pureza e correção gramaticais, numa atitude estética que promoveu a relusitanização de nossa Língua literária e contrariou o processo de ruptura linguística iniciado pelo nosso Romantismo e que, ainda hoje, confere um encanto primaveril à prosa de José de Alencar e à poesia de Castro Alves.

As polêmicas em que se envolveu Rui Barbosa – especialmente a que se travou em torno do texto do Código Civil e teve como sobranceiro antagonista o também baiano Carneiro Ribeiro – indicam esse cuidado obsessivo, que chegou mesmo a contagiar a opinião pública e a dispor, na imprensa, de um espaço permanente.

Sucessor de Rui Barbosa nesta Cadeira 10, o sergipano Laudelino Freire – que nos legou um dos mais prestigiosos dicionários da Língua – pertence ao mesmo universo cultural do autor de Réplica. Em seu caminho, percorrido na disseminação das regras do bem escrever e do bem falar, acumulam-se as respostas às consultas dos leitores e às polêmicas, numa ação didática que, aliás, não logrou evitar a contaminação anedótica.

Confesso que, para mim, uma polêmica entre gramáticos tem o mesmo encanto de um duelo num romance de aventuras, é tão emocionante como Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Como no tempo em que eu lia a Coleção Terramarear, a Pleiade de minha infância, a minha respiração resta suspensa no momento em que um dos polemistas ressuscita a abonação daquele frade que andou pelas Índias e, com essa descoberta formidável, paralisa o descuidado adversário. Esse instante supremo só é comparável àquele em que o espadachim afortunado faz fulgurar a estocada imprevisível. A riqueza dos argumentos invocados desdobra vastos horizontes, como se estivéssemos diante de um daqueles tesouros conquistados pelos piratas de Emilio Salgari nos mares da China. E, assim, todas as transgressões léxicas e sintáticas se convertem em acertos.No manancial que Rui Barbosa tanto frequentou e no qual hauriu a sua opulência de discípulo do quase baiano Padre Antônio Vieira, renovando galhardamente a expressão barroca, todas as lições, inclusive as mais heréticas, estão acumuladas. Esta Língua belíssima e planetária, que é a nossa guarda em seu acervo os amparos mais surpreendentes, assegura foros de cidade à prosa mais canhestra e à sintaxe mais desastrada – e tanta é a generosidade do presente sucessivo convertido em passado, que os mais acirrados depredadores do idioma podem buscar, no florilégio esquecido ou caluniado, as suas justificações mais respeitáveis e a sua nutriente ração de vernaculidade.

A ordem e o rigor que regem o universo dos gramáticos e filólogos não passam de enganos ledos e cegos. São portões que se abrem para a liberdade, a desordem e a aventura. São grilhões que só escravizam os já cativos.

É de lamentar-se, pois, que as polêmicas gramaticais tenham desaparecido. Considero essa desaparição um sinal lúgubre, uma incômoda evidência do nosso declínio, já que o homem não interroga mais o seu dizer e o seu falar.

Não esqueço, contudo, os seus inconvenientes. Afeiçoadas à vocação querelosa dos homens, as polêmicas transcorrem numa atmosfera carregada de ironias, intolerâncias, rancores e até ódios. O interlocutor mais douto e mais forrado em argumentos e certezas é insultado e escarnecido e retribui na mesma moeda perversa, numa lauta compensação de injúrias. Contudo, esse bilioso desapreço pelo próximo corre por conta do grande e inabalável amor que os gramáticos dedicavam à nossa Língua. Eles muito odiaram, porque muito amaram – e que esse puro amor os absolva de todas as suas impiedades. Benditos gramáticos que, no inferno amarelo das polêmicas, encontravam o paraíso da Linguagem!

Hoje, os consultórios gramaticais foram substituídos pelas seções de horóscopos. A utopia individual e as esperanças descabidas dos homens invadiram o lugar privilegiado antes ocupado pela legislação linguística. Assim, em vez de ensinar os homens a falar, os jornais do nosso tempo os habituam aos sonhos desabridos e os nutrem diariamente da presunção grandiosa de que os seus destinos estão acumpliciados com o movimento das estrelas.

Todavia, aqueles dentre nós que todas as manhãs renovam o compromisso de “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, segundo a lição do poeta, não podem deixar de evocar os tempos ditosos, quando os astrólogos ainda não haviam enxotado os filólogos e gramáticos.

Hoje, a Babel está instalada em toda parte, até no coração dos homens. A incomunicabilidade é a evidência contundente deste tempo de comunicação acelerada. Neste século de imagens, mais do olhar que da língua, as ambiguidades e plurissignificações despem as palavras de sua exatidão. Vivemos num mundo em que tudo é dúvida e indagação. Quase poucos sabem o que dizem, porque não aprenderam a dizer – e esse caos deslumbrante, típico da sociedade de massa e das multidões solitárias que juncam as ruas, tornou-se a própria matéria da expressão artística e literária. O homem avança para as estrelas, no novo Renascimento em que as naves espaciais substituem as caravelas, mas, ao mesmo tempo, regressa às cavernas, no eterno retorno em que o futuro o devolve insidiosamente ao passado mais remoto e iracundo.

Senhores acadêmicos,
   
na buliçosa trajetória do paraense Osvaldo Orico, sucessor de Laudelino Freire nesta Cadeira, continua crepitando o rastilho do fogo polêmico que crestou tantos figurantes literários da Primeira República.

Num volume de memórias, ele não hesita em empregar tintas fortes para descrever, com grande desenvoltura e talvez algum desabuso, as peripécias de suas colisões, tão entranhadas no que considerou ter sido a sua estonteante ascensão pessoal.

Foi Osvaldo Orico um dos nossos passantes literários mais bizarros. Tendo surgido no alvorecer do Modernismo, não o atraiu a estética de ruptura e busca do novo. Com a sua notória autoestima, viveu sempre ao redor de si mesmo, jamais se fatigando de contemplar-se num espelho previamente aparelhado para confirmar o conceito que tinha tanto de sua obra variada como de sua vida rumorosa e até colisiva – e o incansável ver-se a si mesmo o terá compensado decerto do silêncio crítico generalizado que circundou o seu estilo borboleteante. Dos seus livros, lembro Cozinha Amazônica, colorido e sápido catálogo de manjares equatoriais. Para completar essa referência, recordo aqui uma noite, numa festa em casa amiga, em que esse meu antecessor se nutria das bebezainas e comezainas suculentas e, talvez, excessivas de sua terra natal. Embora nos arredores dos oitenta anos, continuava ancorado numa mesa que parecia resumir todas as seduções do mormaço amazônico, nela praticando um meticuloso ritual de repetições, quando apetites bem mais jovens já se haviam retirado daquele porto de delícias. E a sua soberba pertinácia inquietava o seu médico, ali presente e temeroso de que a afeição do seu ilustre cliente à culinária nativa o privasse de chegar a uma idade ainda mais provecta.

A Osvaldo Orico, que tanto contribuiu, com o seu temperamento impetuoso, para a trepidação de nossa vida literária e nela deixou persistentes sinais, sucedeu, nesta Cadeira, o modesto e meigo Orígenes Lessa, amigo dos homens, dos livros e das árvores. O que o convívio cultural pode oferecer de mais claro e salubre se encarnava nesse filho de pastor evangélico, nesse paulista de Lençóis que se distinguiu pela sua humildade pessoal e devoção às Letras e ainda pelo exemplo de solidariedade intelectual e humana, a que não estava ausente um frêmito utópico.

A vasta bagagem de Orígenes Lessa está destinada a leitores de todas as idades e aberta às curiosidades mais várias. Ele pertencia à linhagem invejável dos criadores literários que escrevem diariamente, história após história, livro após livro, e passam a vida inteira rodeados de seus próprios enredos e personagens, respirando simultaneamente a existência real e essa outra existência a que a linguagem confere nítida realidade.

Foi Orígenes Lessa fundamentalmente um ficcionista que, num estilo correntio, soube realizar-se no Romance, na Novela, no Conto e no domínio da Literatura Infanto-Juvenil.

Como romancista, não são poucos os títulos que ostentam o seu tirocínio – presente no inesquecível O Feijão e o Sonho, na ficção pungente e nostálgica de Rua do Sol, comovido tributo a uma infância reinventada pela imaginação no sombrio mergulho psicológico de A Noite sem Homem, sem esquecer a narrativa nervosa de O Joguete, cuja precisão e brevidade nos remetem para a sua arte de contista.

Ao longo de sua carreira, Orígenes Lessa se afirmou como um dos nossos mais apreciados cultores da história curta. Nutrido em Maupassant, Tchekov e Mark Twain, e ainda nos paulistas Monteiro Lobato e Antônio de Alcântara Machado, ele nos oferece, em obras como Omelete em Bombaim e A Desintegração da Morte, conjuntos consideráveis de contos que documentam a sua capacidade de criar personagens vívidos, engendrar situações e captar pequenos flagrantes da vida cotidiana, destramente surpreendidos sob uma luz insólita ou burlesca, quando não trágica. O exemplar e modelar Milhar Seco, a história do pequeno engraxate que encontra a morte em plena alegria, sendo uma das obras-primas do conto em nossa Língua, reclama ser considerado o seu instante mais alto de contador de histórias, cuja mão segura sabia levantar o véu que esconde os pequenos destinos e com olhar atento acompanhava os passos das criaturas anônimas das ruas e as convertia em ficções.

 Às histórias de Orígenes Lessa, longas ou sumárias, e sempre povoadas de miúdas vidas cinzentas, não falta, às vezes, uma aura de parábola ou alegoria, a testemunhar sua fidelidade à Bíblia, ao seu alcance desde a infância. Nos dias finais, o filho de pastor evangélico e antigo menino que havia fugido do seminário, no passo atrevido que antecipava a vocação de escritor e exprimia a escolha entre dois caminhos tão diferentes, demonstrou essa assiduidade em livros como O Evangelho de Lázaro e Simão Cireneu, aos quais se acrescentam as inéditas Narrativas Bíblicas.

Sua obra mais célebre, O Feijão e o Sonho, tem, aliás, algo de alegórico, entranhado na singeleza e pungência da narrativa. Esse romance se nutre das duas vertentes nítidas da existência humana: a necessidade e a fantasia, os limites da vida diária, com as suas estreitezas e servidões, e as aventuras e satisfações espirituais que nos esperam a todos quando abrimos as portas da imaginação.

E ele, Orígenes Lessa, sabendo olhar o chão e sabendo contemplar o longo e evasivo horizonte, cumpriu belamente o seu ofício literário e humano. Até mesmo nas horas derradeiras, já com o coração pacificado, e cercado pelo apreço de seus pares e a consagração de milhares de leitores, continuou fazendo do sonho a matéria de sua própria vida.

Experiente escritor profissional, convertia a sua imaginação no pão bíblico de cada dia – no feijão de sua mesa de operário das Letras. E o reconhecimento unânime não saudava apenas o ficcionista que tão bem conhecia o caminho travessio que leva ao mundo dos adultos. O aplauso vindo de todas as partes recompensou também a pena aérea e delicada que escreveu tantas histórias para crianças e adolescentes.

A presença notável de Orígenes Lessa na Literatura Infanto-Juvenil já o tornou um dos nossos clássicos no gênero – um dos raros que podem ser colocados ao lado de Monteiro Lobato. Esta última e fervorosa afeição literária nos induz a reconhecer que esse escritor amado pelas crianças e jovens possuía algo dos seres para os quais a vida é uma ronda de surpresas; e, conhecedores da natureza humana, preferem o sorriso indulgente ou malicioso ao ríctus de rancor ou amargura. Sorriem melhor os que sorriem por último.

Não foi apenas para a Literatura que convergiram a imaginação e criatividade de Orígenes Lessa. Na história da Propaganda e Publicidade, ele dispõe de uma posição qualificada. Contudo, o pioneiro em Comunicação Social que foi Orígenes Lessa não a utilizava em benefício próprio, para a projeção de sua imagem pessoal ou de sua obra, cuja trajetória clareada pela aceitação popular se caracterizou pela ausência de trombetas, pelo seu ar quase esquivo. Em seu caminho de homem e escritor, guiava-o decerto aquela luz mais alta que estabelece a hierarquia oculta dos homens e confere uma primazia incontestável aos que sabem guardar em seus espíritos uma perpétua infância e se sentem rodeados de vozes longínquas. Não esqueçamos do amor que ele devotava aos livros e seu papel no aprimoramento social e comunitário, o que o levou a criar, em sua cidade natal – nessa cidade de Lençóis Paulista que tanto o ama e foi amada por ele –, uma biblioteca admirável. E também não nos esqueçamos de seu interesse pelos poetas anônimos das feiras, o que o fez recolher tão amorosamente, com a mais límpida competência, letras e vozes do nosso folclore.
   

Senhores acadêmicos,
   
para Goethe, com a verdade e a mentira o artista constrói uma terceira coisa, que é a obra de Arte. Na paixão pela fabulação própria do homem, ele identifica o seu e nosso pendor para a edificação de mundos imaginários.

Assim, não deve servir de pasto à estranheza que certa roupagem florida se acrescente, como um selo, à nossa vocação para a prática de um imaginário que, começando por ser inventado por nós, termina por nos inventar e nos impor o seu emblema de mitografia e ficção. Nessa metamorfose, as nossas obras findam por gerar as nossas vidas e escrever as nossas biografias. A nossa aventura interior corrige a monotonia do mundo. E vivem duas vezes os que não dispensam a passagem dos cavaleiros da ilusão pelos palcos da vida.

Num poeta, coexistem o intelectual e o primitivo, e ambos formam uma unidade inseparável. A inteligência se enraíza nas profundezas da carne e da terra e desses reinos escuros e misteriosos extrai a sua força criadora, esse enlace da imaginação e do amor, esse fruto maduro de segredos sepultados.

Assim, o que o poeta diz haverá de ostentar, sempre, o sinal coletivo dos que, em sua fala individual, exprimem as vozes do outro e dos outros e recolhem o sussurro interminável que quebra o grande silêncio do mundo. A criação poética é, pois, uma dádiva e um testemunho. É uma devolução que o poeta faz ao seu berço. A linguagem de todos, tornada uma linguagem pessoal, regressa, em forma de canto, às suas origens que são a própria capital da vida.

A Poesia é uma magia da linguagem: uma magia criada pelos homens. E, na mesa do mundo, essa infindável celebração do universo, testemunhando uma vocação e um magistério, haverá de ter sempre uma serventia, quer assegurando a continuidade do idioma nativo através dos tempos, quer renovando as imagens da existência e do homem como prova maior de nossas vidas.

Graças a essa linguagem, aqui estou. Certamente fui trazido pelos navios de minha infância e pelos ventos do mar que, atravessando lagunas e coqueirais, ilhas e estaleiros apodrecidos, alcança esse irmão separado de nós que se confunde com os caranguejos semiocultos na terra mole e escura dos mangues e maceiós – essa terra congeminada à água que é a minha raiz e o meu berço, a minha Pátria e a minha Linguagem, e até mesmo o meu pesadelo.

Reinos da malícia, as academias amam as anedotas e as frases afortunadas. Atrevo-me, pois, a contar-vos uma pequena história. Num telhado em Paris, no fim do século passado, alguns gatos costumavam reunir-se. Uma noite, um deles foi atraído pela presença de uma belíssima angorá. Perguntando-lhe quem era, numa delicada interpelação que decerto prenunciava abordagens mais ousadas, recebeu dela a seguinte resposta: “Dizem que sou a gata do poeta Stéphane Mallarmé.”

Essa resposta felina e ambígua exprime a nossa dificuldade de ser. Mesmo vestidos em fúlgidos uniformes, que o tempo se incumbirá piedosamente de desbotar, nossa dúvida permanece. Não sabemos ao certo quem somos, já que a nossa imagem se nutre do que presunçosamente pensamos ou julgamos ser e do matizado conceito alheio, numa escala que vai do vitupério ao louvor.

Duvidoso de mim, como a gata de Mallarmé, nutre-me a certeza de que me acolhestes como presumo ser e presumis que eu seja. Sou grato à vossa carinhosa acolhida. Mas ouso confessar que, entre vós, e vencido o longo caminho, me sinto ainda como o aluno relapso que um dia, inexplicavelmente, ganha nota dez.

Nesta Casa misteriosa, é convívio o que, em outras paragens, seria indiferença, e a cordialidade ocupa o lugar da colisão. Os antagonistas de ontem se convertem aqui em amigos de infância, semanalmente aplicados em partilhar radiosas lembranças imaginárias.

Assembleia literária e cultural, corredor político, salão mundano, entreposto de ambições, estuário de sonhos e até escola de polidez, esta Instituição oferece a quem busca a sua verdade um perfil ambíguo, capaz de desorientar tanto o singelo portador do aplauso unânime como o rancoroso e sinistro detrator.

Na verdade, a Academia é o que cada um julga que ela seja, com sua fidelidade, distanciamento ou desamor. E, ao julgamento que fazemos desta Casa sempre iluminada pelas luzes fortes e obstinadas de um poder e de um prestígio que ela gerou desde momento inaugural, haverá de acrescentar-se o dos nossos antecessores, que a escolheram como lugar de convivência.

Essas vozes de cinza, aqui presentes na evocação continuada, nos ensinam que a Literatura é um sistema e uma permanência, uma herança e uma promessa, uma graça e uma fidelidade, uma ininterrupta acumulação da memória, a pergunta que não nos cansamos de fazer aos nossos corações inescrutáveis.

Essas vozes cortadas pela morte nos advertem para o capricho do tempo que muda as obras mais ruidosas em silêncio, apaga rostos e silencia fanfarras, converte as vanguardas mais belicosas em tradições vetustas ou em piedosos esquecimentos e nos incita a não confiar muito na generosidade e justiça do dia seguinte ou nas conspirações felizes da posteridade.

Mas a nossa palavra, mesmo perdida ou avariada pelo vento da noite, haverá de ser sempre dádiva e serventia, pois a nossa tarefa consiste em exprimir o mistério da vida e criar uma nova imagem do mundo. Neste dizer pelos que não dizem e neste cantar pelos que não cantam, está a nossa honra. 
   

Senhores acadêmicos,
   
Pascal observa que a vaidade está de tal modo ancorada no coração do homem, que todos, seja um cozinheiro ou um filósofo, se vangloriam de ter os seus admiradores e os desejam. Os que escrevem mal reclamam a glória de escrever bem; e o próprio leitor almeja apregoar a glória da leitura.

Que, entre tantas vaidades naturais à sempre tolerável miséria de nossa condição humana, me seja permitido propalar aqui a de reunir-me agora a tantos amigos, a tantos companheiros do crepúsculo.

Que a vaidade do convívio harmonioso entre vós seja a minha derradeira vaidade.

7/4/1987