Permiti, Sr. Lêdo Ivo, que eu dê início a estas palavras de boas-vindas, lembrando, sem dúvida por deformação profissional, passagem dos Evangelhos. A parábola do homem que persiste em bater à porta até que ela se abra: “Batei, e abrir-se-vos-á!” Mais de vez batestes às portas da Casa de Machado de Assis, que hoje se abrem de par em par para acolher-vos. E a vossa persistência em bater, sendo afinal recebido por unanimidade e em votação relâmpago, terá decorrido de duas convicções. A do vosso próprio valor e a de que os membros desta Casa sabiam sobejamente que merecíeis, como poucos, uma de nossas Cadeiras, tanto por direito de nascimento como por direito de conquista.
Por direito de nascimento, porque já nascestes para as Letras como poeta consagrado, desde que publicastes, aos vinte anos, na mesma Faculdade de Direito pela qual passei antes de vós, o vosso livro de estreia, As Imaginações, saudado com entusiasmo não só por Mário de Andrade, Lúcio Cardoso, Sérgio Milliet e Roger Bastide, como também por Afonso Arinos, Adonias Filho e Otávio de Faria, que haveriam de preceder-vos nesta Casa. Mário de Andrade classificou a vossa estreia de “deslumbrante”. Nascíeis para as Letras como a província de Minas Gerais, presente aqui não apenas naquele que vos saúda, como naquela que vem sendo a metade de vossa alma e hoje partilha a vossa glória. Pois já lembrava Alceu Amoroso Lima, citando Diogo de Vasconcelos, que as Minas já nasceram prontas e acabadas, como Minerva da cabeça de Júpiter, não conhecendo infância nem folclore, a tal ponto que os poetas da Escola Mineira sobrepujavam então os da Metrópole.
Vossa estreia não era uma promessa, mas uma evidente realidade, que dispensava a condescendência dos críticos, diante de versos definitivos como estes: “Um céu espera por mim / em um áspero continente / que nenhum mapa registra.” Ou então, já prefigurando, logo no ano seguinte, Ode e Elegia, o sentido e longo poema em memória de vosso irmão Éber Ivo:
Éber,
o espírito de Deus pousou em tuas mãos trêmulas
e na agonia dos teus olhos enevoados
que se entrecerraram porque o ritmo do teu coração morreu
e teus sonhos procuraram outros roteiros mais extensos.
[...]
Nós guardamos o teu retrato de primeira comunhão
e o ampliaremos para que cresças durante a prolongada ausência;
recolhemos os teus livros e os teus cadernos
de primeiro da aula e choramos os teus dez anos inquietos;
outros souberam somente que partiste num esquife branco
e teu último traje terreno foi uma roupa de marinheiro.
[...]
Teus olhos se transformaram em faróis
e sentiste a permanência do grande poeta que é Deus
antes de sentires a transfiguração poética;
peço, porém, que digas aos poetas que encontrares por aí
que o mundo se afunda em grandes tormentas
e os poetas continuam sendo os timoneiros do mundo;
mesmo que as estrelas não brilhem nos céus claros estarás conosco,
tão integrado conosco que não te sentiremos ausente.
Dizei-me, senhoras e senhores, se isto são versos de vinte anos. E não julgueis ser a emoção que torna perfeito o longo poema de que citamos alguns versos. A emoção é antes uma armadilha e só consegue ser Poesia, quando é, como já se disse, recolhida na tranquilidade. Na tranquilidade do artista que domina seus meios de expressão por alta capacidade técnica, que não esperou, no caso de Lêdo Ivo, tão bem nascido nas Letras, le nombre des années.
E viriam, logo em seguida, vossas odes, elegias e baladas em longos versos claudelianos, que não significam, contudo, influência ou cópia do grande poeta de nossa comum admiração e nosso comum afeto. Na “Descoberta do inefável”, que dedicastes a Lêda (que descobrimos assim tão cedo em vossa história), há um contínuo perpassar de anjos:
Temos necessidade de anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser poetas.
Vem, incontável música, e anuncia
(ao poeta e ao homem, humilde unidade)
a ressurreição diária dos anjos.
Restaura em mim a certeza de que a folha voando
é o seu indomável divertimento,
pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez,
sem que eu soubesse, por um anjo
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.
Dedicastes a Lêda esse longo poema de tantos anjos, mas logo, na “Elegia” seguinte, vos dirigíeis diretamente a ela:
Moça, de onde vem essa beleza que antecede à voz?
Esse ar de quem viu pássaros voando, muito longe,
onde o descobriste, em que sono ou viagem, moça?
Fala, menina, que o silêncio te escuta. Canta,
que o canto é a necessidade do céu, é a alegria
a descer sobre nós como se estivéssemos subindo
para a incessante altura.
E, prosseguindo na conquista da Academia, para a qual já havíeis nascido com o primeiro livro, dá-se em breve o Acontecimento do Soneto, pois não há poeta que se preze que os despreze. E, no primeiro deles, sendo todos dedicados a Lêda, concluíeis, davidicamente e camonianamente, com estes dois tercetos:
Sôbolos rios que cantando vão
a lírica mortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,
Irei levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.
Bem compreendeis (ou não seríeis o grande poeta que sois) não haver oposição entre o moderno e o antigo, entre o particular e o universal, entre o efêmero e o eterno.
Retomais, depois dos sonetos, os poemas longos, de longos versos, mas agora cada vez mais alternando-se com novos sonetos ou pequenos poemas, como este “Para embalar tua filha”, espécie de pintura em porcelana, que podemos citar inteiro, de tão breve, de tão leve:
À flor d’água, a flor.
E porque a quiseram
vai o nadador
também à flor d’água
em busca da flor.
E por mais que nade
nada encontra n’água.
Sumira-se – encanto! –
à flor d’água a flor.
Nada o nadador.
Atrás da flor n’água
nada o nadador.
Nada até morrer
de amor à flor d’água
em busca da flor.
E assim, nadando em busca dessa flor simbólica, que sempre parece escapar-nos como a própria beleza, conquistastes enfim, a Academia, embora já a tivésseis merecido há tanto tempo como Jacó a Raquel.
O ano passado, numa reunião menos formal que a de hoje, nosso Presidente (o da Academia) denunciava entre os presentes um candidato que não ousava confessá-lo, mas vivia de olho no jeton e no mausoléu. Não éreis vós o candidato enrustido, pois não estáveis presente àquela tarde e jamais ocultastes vosso desejo de pertencer a esta Casa. Tendes, portanto, aqui, a partir de hoje, não só vossa Cadeira cativa, como o vosso jazigo no São João Batista. Sois ainda bastante moço para que vos possa falar, sem causar susto, da “indesejada das gentes”, como a chamava Manuel Bandeira. E, além disso, que eu saiba, sois o único acadêmico com epitáfio pronto, composto por um dos nossos confrades, nada menos que João Cabral de Melo Neto, a quem considerais, desde 1940, “companheiro na viagem da vida, por mais distanciados que estejamos geográfica ou esteticamente”:
Aqui repousa
livre de todas as palavras
LÊDO IVO,
poeta,
na paz reencontrada
de antes de falar,
e em silêncio, o silêncio
de quando as hélices param
no ar.
Livre das palavras. Pois as palavras, que vos gabais de dominar quando declarais: “Sou um pastor de palavras”, vos dão também não pouco trabalho, de tal modo as lavais antes de usá-las. O que levou Guimarães Rosa a chamar-vos numa dedicatória: “poeta das palavras lavadas.”
Jean Cocteau dizia que um acadêmico, ao morrer, se transforma em Cadeira. Graças aos cuidados de nosso precavido Presidente, nos transformamos também em mausoléu. Talvez não vos pareça tão importuna essa conversa fúnebre, se vos lembrar que, até à Revolução Francesa, o secretário da Academia, modelo da nossa, tinha a expressa obrigação de propor aos acadêmicos doentes a vinda de um padre que os assistisse. Não temos aqui secretário perpétuo, mas, por livre e espontânea vontade dos seus eleitores, um Presidente que se perpetua, garantindo as tradições da Casa. Mas, se não é mais função dos secretários precaver contra a morte os seus pares, colocastes entre vós um monge, um simples monge. Sem as vestes episcopais de D. Silvério Gomes Pimenta e de D. Aquino Correia, não deixa de ser, entre o ouro dos vossos fardões, um memento mori! E isso é bom para que vossas imortalidades não vos subam à cabeça... E até os heróis pagãos, como atesta São Jerônimo, faziam-se acompanhar, em seu carro triunfal, de um escravo a lembrar-lhes, de espaço em espaço, sua condição humana e não divina.
Mas, como diz o Eclesiastes, tão amado e citado por Machado de Assis, há tempo para tudo: hora de nascer e hora de morrer, hora de plantar e hora de colher o que se plantou, hora de chorar e hora de rir. A hora desta noite é de alegria, tanto para vós, Sr. Lêdo Ivo, para a Academia que unânime vos recebe, unanimidade que nos absolve de não vos termos logo aberto a porta, como nos consola também um pouco de a não terem aberto, antes de vós, ao grande poeta Jorge de Lima, que hoje, alagoano também, parece entrar convosco nesta assembleia.
Comemoramos o ano passado o XVI centenário da conversão de Santo Agostinho, que nos deixou As Confissões. Entre as suas e as de Jean-Jacques Rousseau, a distância torna-se maior pela semelhança do título. E Ernest Hello comentou:
Temos diante dos olhos duas modalidades de confissão: a confissão de quem se arrepende e a confissão de quem se gaba. Pois, há um modo de narrar as faltas pior que a própria falta. E há um modo de se comprazer no crime pior que o próprio crime. A confissão é um mundo que tem dois pólos: Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau.
Também vós, Sr. Lêdo Ivo, nos destes as vossas confissões, que não são as de um santo nem as de um pecador, por serem, como pusestes no título, as Confissões de um Poeta. Nelas não pretendestes, como Agostinho, narrar a obra da graça de Deus em vossa alma (quem sabe um dia ainda o fareis?), nem pretendestes, como Rousseau, fazer de saída o próprio elogio, proclamando-se “o melhor”. Vossa intenção foi apenas estética. Narrar, isto sim, como fostes sendo possuído pela Poesia, ao contrário do vosso irmão Éber que, como dissestes no poema, foi conhecer, pela morte, o poeta que é Deus, antes de conhecer a transfiguração poética.
Antes mesmo de saber que a Poesia existia (contai-nos em vossas confissões), e presumindo que ela se reduzia a um segredo pessoal, a uma mensagem intransmissível, eu era poeta. Da realidade do dia consumido, eu fazia o que bem quisesse, guiado pela imaginação. Transformava os acontecimentos, mudava o destino e a fisionomia moral das pessoas, alterava a geografia, voava através dos tempos, encolhia e espichava o tempo ao meu bel-prazer. Rival da vida e do mundo, o meu universo pessoal impunha, no silêncio de mim mesmo, a sua verdade irresgatável. E eu dormia tranquilo e confiante. Sabia que a vida jamais haveria de deformar-me. Eu pertencia à linhagem de seres dotados do escudo invisível de sua própria e múltipla verdade.
Permiti-me discordar, Sr. Lêdo Ivo, dizendo que exagerais. Na minha opinião, não éreis ainda poeta. Tínheis então um dos elementos da Poesia. Aquela sensibilidade que possuem também todos aqueles que são capazes de compreender, de vibrar com os vossos poemas. Só vos tomastes, no entanto, poeta, só começastes a ser plenamente poeta, no dia em que descobristes as palavras, em que compusestes o primeiro verso, no dia em que para vós o verbo se fez carne. Pois o poeta, que vem do grego, é “aquele que faz”. A emoção, comum a todos que amam a Poesia, constitui apenas uma primeira parte: o poeta só nasce no momento em que a consegue recolher na tranquilidade, em que consegue expressá-la em palavras que lhe servem de limite e auréola. E me dais plenamente razão quando dizeis, em mais de um lugar, que não existe uma Sra. Forma distinta de um Sr. Fundo, mas que ambos constituem um casamento indissolúvel. E, se isto vale para a Literatura em geral, que se dirá da Poesia? O poema perfeito é aquele em que não se pode mudar uma palavra, ou mesmo uma vírgula. E dizeis acertadamente: “Assim como não temos um corpo (somos o nosso corpo) a Poesia não tem uma forma. É a sua forma.”
O poeta só começa realmente em vós, quando dizeis do vosso alter ego, Teseu do Carmo:
Como todos os meninos, ele amava guardar pedras, calhaus, uma lívida e esponjosa estrela-do-mar. Mas, também, desde a infância, ele quisera guardar consigo as chuvas que caíam sobre os sítios hipotecados, o farol da curva do bonde, os caranguejos que desapareciam no negro trapiche, o negro casco de um navio contra o azul, a lua que o seguia no caminho noturno quando voltava da escola. Escrever era para ele uma tentativa canhestra de recolher essas imagens e torná-las duráveis; guardá-las como o avarento guarda as suas moedas e a lágrima o seu sal. Quisera retê-las no papel para não esquecê-las e poder lembrá-las sempre.
E foi então que começastes, para isto, a pastorear as palavras e, muito cedo, sentistes que elas vos obedeciam e reconheciam como a um bom pastor, a ponto de vosso primeiro livro, publicado ainda antes da vossa maioridade, já ter sido um livro maior.
Em Situation de la Poésie, Jacques Maritain nos lembra que as palavras não são usadas pelo poeta apenas como sinais, mas como símbolos. Por isso, não se preocupa ele apenas com o que a palavra significa, mas com sua música, o seu volume, o seu cheiro, a sua cor: pois as palavras possuem tudo isto. E o poeta não joga apenas com as palavras em si, mas com novas centelhas que lhes arranca, aproximando-as insolitamente umas das outras, como uma cor valoriza a outra.
E por isso mesmo, como frequentemente observastes, Sr. Lêdo Ivo, torna-se às vezes quase impossível distinguir entre Prosa e Poesia. Vós mesmo, embora na pele de Teseu do Carmo, declarastes vossa perplexidade, quando vosso editor vos pediu uma antologia de prosadores. A princípio, parece muito simples, como dizia o filósofo a Monsieur Jourdain: “Tudo o que não é Prosa é Verso, e tudo o que não é Verso é Prosa.” Mas eis que há prosadores que se tornam de repente poetas, como Machado de Assis, ao chamar à existência, como o Criador, numa síntese de poeta, a humilde figura de D. Plácida, a esconder nas saias os dedos queimados nos tachos, fruto da conjunção de duas “luxúrias vadias”, o sacristão da Sé e uma mulher que fazia doces para fora.
Mas, se há prosadores que se tornam de repente poetas em plena prosa, quando esta atinge de súbito uma intensidade imprevista, produzindo uma centelha inesperada, vós, ao contrário, Sr. Lêdo Ivo, sempre poeta, desde que, menino e moço, ainda na cidadezinha que em vão tentastes revisitar, a mão do Anjo da Poesia vos tocou na espádua. Em vão, escrevestes romances, crônicas, ensaios. Como tudo se transformava em ouro ao toque do rei Midas, tudo se transforma em Poesia em vossas mãos, em vossa pena. Bem o reconheceis, quando declarais abertamente: “Sou essencialmente um poeta. Minha prosa é o descanso do guerreiro.” Sim, pois o poeta deve lutar com as palavras e vencê-las, como Jacó ao lutar até a aurora com o anjo do Senhor, que então lhe muda o nome para Israel: “Forte contra Deus.” E escrevestes: “Sou um poeta: as palavras me obedecem.” E vos surpreendeis a assinalar a frequente intromissão de versos em vossa prosa, quando escreveis, por exemplo, a respeito de um dos vossos romances: "Em Ninho de Cobras, encontro um verso que o poeta Lêdo invejaria: ‘O tumulto das ondas hesitantes.'"
Além da impossibilidade de traçar fronteiras entre Prosa e Poesia, outro problema preocupava Teseu do Carmo, este sósia que criastes, para falar de vós mesmo na terceira pessoa e até para criticar-vos ao atingi-lo, às vezes, com vossa ironia, como o Aristarco de O Ateneu sentiu ciúmes da própria estátua, quando um dos bajuladores quis coroá-la... Teseu do Carmo, que se insurgira contra a ideia de colocar Prosa e Poesia em compartimentos estanques, sentiu na própria carne a impossibilidade e a decepção das Poesias Completas. Quando o editor telefonou-lhe para que fosse receber o primeiro exemplar das suas, sentiu-se um hipócrita e farsante, pois já trazia no bolso um soneto clandestino, que desmentia aquela completude. Pois escrevestes, Sr. Lêdo Ivo: “O destino, a fatalidade e a essência da obra de um poeta é ser incompleta – dessa incompletude vive e morre.” E tendes razão. As poesias não podem ser completas, porque, sob um certo aspecto, nenhum poema é perfeito, nenhuma obra de Arte é perfeita. Dizeis com precisão: “A última palavra não existe em Arte.” Terminada a obra em que o artista colocara o quanto tinha, esta já não lhe basta, e parte para outra.
Escreve Baudelaire:
O imortal instinto do belo nos leva a considerar a terra e seus espetáculos como um vislumbre, uma “correspondência” do céu. A sede insaciável de tudo o que está além do que a vida revela constitui a mais viva prova da nossa imortalidade. É, ao mesmo tempo, pela Poesia e através da Poesia, pela Música e através da Música, que a alma entrevê os esplendores do além-túmulo; e, quando um poema magnífico nos traz lágrimas aos olhos, elas não são o sinal de um excesso de alegria, mas antes o testemunho de uma melancolia irritada, de uma postulação dos nervos, de uma natureza exilada no imperfeito e que desejaria apoderar-se imediatamente, ainda aqui na terra, de um paraíso revelado.
La beauté boîte, dizia Jean Cocteau, ao comparar, como já lembramos, o artista com Jacó, a quem a luta com o anjo deixa manco.
O artista, e sobretudo o poeta, esse artista dos artistas, não pode parar, sempre à procura, peregrino do absoluto, do ideal jamais atingido, o que torna impossível, mesmo como obra póstuma, a edição de Poesias Completas. Se Lêdo Ivo ou Teseu do Carmo (este nome ecumênico, pagão e cristão) consentiu em reunir em O Sinal Semafórico, em 1974, As Imaginações, Ode e Elegia, Acontecimento do Soneto, Ode ao Crepúsculo, A Jaula, Ode à Noite, Cântico, Ode Equatorial, Linguagem, Um Brasileiro em Paris, O Rei da Europa, Magias, Os Amantes Sonoros e Estação Central, não considerou tudo isto Poesias completas. Pois Finis non coronat opus; a obra permanece sempre aberta, sempre incompleta. Em Arte, repetimos convosco, “a última palavra não existe”.
Aliás, Sr. Lêdo Ivo, não recusais apenas os limites do tempo. Recusais também os de Escola, os de estilo, os de influências. Várias vezes, vos irritais contra os entrevistadores que querem saber, além do vosso número de colarinho e sapato, as influências que sofrestes, julgando que a noite dos vossos poemas seja a mesma do meu amado Charles Péguy, que o vosso Ninho de Cobras tenha alguma coisa a ver com o Le Noeud de Vipères, de François Mauriac, outro autor que amamos juntos. Como se não tivésseis a vossa própria noite (Chaque Homme dans sa Nuit é um título de Julien Green), atravessada pelo farol que encheu a vossa infância em Alagoas antes mesmo de saberdes as letras de “Ivo viu a uva”. Como se vossas personagens não fossem também as da cidade natal, inteiramente recriadas e transfiguradas pela vossa fantasia e inspiração. Bem tendes razão em detestar – são palavras vossas – “esse empenho didático em só enxergar influências livrescas, como se um autor não passasse de um boneco de papel e tinta, um calhamaço andante, a só se nutrir de letra!”
Sempre vos guardastes das influências, dos críticos que vos pretendessem mostrar o vosso caminho e guiar a vossa mão na hora da escrita. Não consentistes em ser etiquetado, amarrado a um estilo, em renegar vossa veia barroca, a vossa própria pessoa, para enfileirar-vos na esteira desses poemas herméticos que deparamos por toda parte e que parecem todos escritos pelo mesmo autor.
Mas que sofrestes influências, bem que sofrestes, embora numa época em que nem sabíeis que elas existiam, e que apenas vos davam o gosto pela vida interior, pelo reino dos sonhos, pela partida numa chalupa, como as de Emílio Salgari, cheirando a sal do mar e a emoção dos ventos. Não se tratava então de influências literárias, de receitas de estilo, de modelos a seguir.
Entrevistastes, em 1948, o meu saudoso amigo Cornélio Penna, como recordáveis recentemente, quando vos falei pelo telefone da morte de Maria Odília. Dissera-vos ele: “Devemos deixar os corpos dos nossos autores apodrecer em paz.” Isto é, não devemos esmiuçar-lhes a vida, mas, sim, a dos personagens que inventaram e onde os encontraremos de modo mais profundo. Gostaria, no entanto, de convocar neste momento, pelo menos, um parente vosso que citais expressamente em vossas Confissões.
Minha tia mais velha, Sr. Lêdo Ivo, sobrinha, aliás, de Lúcio de Mendonça, o verdadeiro fundador desta Casa de Machado de Assis, minha tia mais velha foi por algum tempo, na cidade mineira em que nasci e para onde o tio e tutor a levara em busca de melhores climas, “a dona do correio”. Dona do correio, eu supunha – a ponto de ter ficado surpreso ao verificar que também precisávamos comprar selos para as nossas cartas. Vós tivestes um tio carteiro. Mais que vosso pai, que nutria uma certa desconfiança pelos intelectuais, terá ele contribuído para que tomásseis gosto pelas letras e assento, hoje, nesta Casa. Passemos a palavra ao sobrinho, pois o crime do tio, agora prescrito, teve as melhores consequências. Assim nos contais em vossas Confissões:
Carteiro, Tio Zeca portava sempre um saco cheio de envelopes e impressos. Quando comecei a me interessar por livros, e minha avó, diante dos meus êxitos escolares, garantia que eu haveria de ser um novo Rui Barbosa, tive nele fiel fornecedor. Mergulhava a mão na sacola e dizia, os óculos escorregando pelo nariz: “Vou ver se tenho alguma coisa para você.” Com a maior desenvoltura, extraia um pacote, rasgava a embalagem e me entregava um volume qualquer. Certa ocasião fui contemplado com uma obra de Allan Kardec, decerto encomendada por algum espírita. Tio Zeca formava um péssimo conceito da comunidade alagoana. Asserções desabridas saltavam de sua boca a serviço da verdade e da justiça. Assim, sonegando livros e revistas aos seus destinatários e confiando-os ao sobrinho, ávido de leitura, esse alagoano de boa lei corrigia injustiças e desacertos da má organização do mundo, e escolhia o leitor certo para a obra incerta, romance ou almanaque.
Referindo-vos ao vosso Álbum de Família, vós dizíeis, mostrando que a vida vos causou mais influências que a Literatura:
Eu, menino, sorvia a beberagem forte e vinagrosa de suas palavras. A variedade do elemento humano me atraía e deliciava; diante de tão vasta galeria de destinos e temperamentos, não haveria de sentir tédio pela vida inteira. Os meus semelhantes fariam de minha existência uma festa incessante, para meu exemplo e divertimento. Era como se todos fossem personagens de romances, à espera da minha longínqua mas inevitável maturidade literária.
Curioso que, como também me acontecia e, sem dúvida, a todas as crianças, os aleijados e miseráveis, que víeis, sem dúvida, em maior quantidade que eu, não afetavam ou perturbavam o vosso encantamento pelo mundo e pela vida. Parece-nos natural que haja mendigos e doentes, pobres e ricos, como existem flores e bichos, dia e noite, pedra e água. Mesmo quando fostes para o colégio da capital da província, não víeis a miséria barroca que comia o passado faustoso de vossa terra, almoçando anjos bochechudos e os púlpitos de jacarandá.
Só muitos anos depois – escrevestes – longe e já quase estrangeiro, eu veria a miséria da minha terra correr ao meu encontro como um visitante sem palavras na boca desdentada. [...] A dose leonina de ufanismo que nos era servida, em casa e na escola, afastava a miséria, ou a tornava a manifestação imperativa da vontade de um Deus que, em sua imensa sabedoria, resolvera dividir o mundo entre os ricos, os remediados (classe a que presumíamos pertencer) e os pobres e miseráveis.
Já começáveis a sentir o mistério da obscuridade e da miséria humana pousado em vosso ombro como um pássaro. Só muito depois, escreveríeis a “Primeira lição”:
Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.
Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.
E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.
Um dia no muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.
E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?
Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo...
Também em relação à Igreja, uma grande parte do clero acha que só hoje a Igreja viu o pobre, a Igreja viu o povo. Na sua ignorância, não sabem que São Bento foi que ensinou a Agricultura aos bárbaros, sendo considerado, como Virgílio, o pai do Ocidente, como esquecem também as missões no Novo Mundo, onde só veem falhas, considerando os selvagens sob a ótica de Rousseau.
Um dia perguntastes à vossa mãe se vosso pai era rico, ao que ela respondeu, enigmática: “Rico de filhos!” O que tanto podia significar que éreis demasiados (onze!) para o orçamento de um guarda-livros que só bem tarde se formaria em Direito, como também dizer, à semelhança da mãe dos Gracos, que éreis vós as suas joias. E, no entanto, coisa inconcebível hoje, tínheis em casa três empregadas...
Casado mais tarde com uma mineira de Montes Claros, uma das coisas que mais a impressionaram em vossa terra foi o rito familiar da mesa farta, onde o almoço, começado pouco depois do meio-dia, prolongava-se por várias horas. Mas nem sempre terá sido assim, quando éreis muitas fomes para a bolsa de um guarda-livros. Em todo caso, ficamos sabendo que a galinha, em suas partes, não era optativa. Vosso pai ficava com o sobre (a que dáveis um nome mais completo e que também se poderia chamar supremo ou mitra, segundo uma inspiração jurídica ou eclesiástica). A tia Flora ficava com o fígado de um amarelo-esverdeado. E todas as outras partes tinham, sem dúvida, os donos respectivos. Daí a vossa surpresa em Washington quando, querendo juntar galinha ao leite e à torta da vossa bandeja, perguntou-vos a garçonete: “Coxa ou peito?” Belo mundo em que se podia escolher!
Mas esse dia vos reservava uma surpresa maior. Sobrando-vos tempo, subistes as escadarias da Biblioteca do Congresso. Um guia imaginário assegurou-vos que havia ali 41 milhões de livros, opúsculos, jornais, microfilmes. Um anjo irônico induziu-vos a procurar o vosso nome no catálogo geral. Aceitando o desafio, abristes resolutamente a gavetinha com vossas iniciais. Dez obras vossas, em prosa, em verso, e também aquelas em que Prosa e Verso se guerreavam num campo de letras, ali se encontravam numa das 270 mil prateleiras, quando, talvez, não houvesse uma só delas em vossa cidade natal. Tomastes a vossa esferográfica e anotastes o número da classificação esotérica: PQ 9697.
Aquele dia fostes mordido, mais que de costume, pelo demônio do orgulho. Pois, na cama do hotel, tivestes um sonho: alguém vinha ao vosso encontro com uma terrina, que destampava, perguntando: “Coxa ou peito?” Só que esse garçom irrepreensível era nada mais nada menos que o presidente dos Estados Unidos... E agora compreendo melhor a vossa decepção, quando, ao descrever-me recentemente um almoço, capaz de fazer inveja a um monge na Quaresma, declarastes que o cardápio não fora muito além de uma “pálida asa de frango”! Não era apenas o alagoano amante da boa mesa, mas, também, o poeta que escolhera tão acertadamente o adjetivo: “pálida asa de frango.”
Mas não façamos a injustiça de supor-vos sobretudo preocupado com as generosas cozinhas amazônica ou alagoana, contrastando com a austera mesa dos mineiros. Vossa preocupação é, sobretudo, a palavra, a ponto de lamentardes que os horóscopos tenham tomado nos jornais os espaços outrora ocupados por aqueles que, através do inferno amarelo das polêmicas, encontravam o paraíso da Linguagem. Contudo, os horóscopos não vos metem medo, pois escreveis no “Pacto ao cair da noite”:
As taciturnas potestades
já traçaram nossos destinos:
morreremos ambos à noite.
Amanhã seremos divinos.
Porém, antes mesmo desse amanhã em que seremos divinos, já conviveis com os vossos mortos que hoje vos cercam invisíveis. Pois, também, escrevestes:
Mortos continuam
vivos quando amados.
Viver é guardá-los.
Fechado o ataúde,
seguras as alças,
o morto se evade.
Em verdade um morto
nunca é enterrado.
Volta com os vivos.
Por isso acordamos
nas noites escuras
cercados de mortos.
O pai morto dá
conselhos miúdos
ao seu filho aflito.
E a mãe morta vem
embalar, na noite,
o filho barbado.
Sê fiel, meu filho,
à tua prosápia.
Pratica teus mortos
(como o marinheiro
respira a onda nua
na entrada da barra).
Enquanto viveres
cubra-te a caliça
de todos os mortos.
Ouve o que te digo:
está morto o vivo
que esquece os seus mortos.
Esta evocação dos mortos nos traz à lembrança um conto de Carlos Drummond de Andrade. Certa moça, morando perto do cemitério São João Batista, costumava passear à tarde entre os túmulos. Um dia, distraidamente, apanhou uma florzinha que brotara num deles e que, se bem me lembro, logo jogou fora. Daí a sua surpresa quando, ao atender em casa ao telefone, uma vozinha lhe disse: “Quero a minha flor!” A princípio, pensou que fosse um trote, mas a voz voltava todos os dias. Em vão, mandou rezar missas, em vão cobriu de flores um túmulo que, talvez, fosse o do morto exigente. Mas a alma não se deixou subornar. Tirou o telefone da casa, mas continuava a ouvir a reclamação insistente: “Quero a minha flor!” Começou a emagrecer, não sorria, não comia e acabou morrendo...
Sr. Lêdo Ivo, escrevestes que um dos atos essenciais do ofício de escritor é dar título a um livro. E denominastes um dos vossos Ladrão de Flor. Porém, as flores que roubastes não vos conduziram à morte, como a inditosa moça do conto, mas à imortalidade acadêmica.
Vós mesmo vos confessais ladrão de flor. Não das flores de retórica dos vossos colegas de ofício, mas das vislumbradas na vossa infância pobre das Alagoas (“a flor d’água, a flor”) ou numa rua de Paris, ou numa tarde de Nova Iorque. Roubastes visões e vivências que transformastes em Poesia. Mas, nesta Casa só recebemos pessoas honestas. Proponho-vos, por isso, um advogado.
Explicais, nas vossas Confissões, que não sois descendente do escritor português Pedro Ivo, que era apenas pseudônimo de Carlos Lopes; mas fostes encontrar na Arcádia Ulissiponense um Miguel Tibério Piedegache Brandão Ivo, do qual teria vindo vossa vocação poética, vosso amor “pelas formas clássicas da Língua, como o Soneto, a Balada, a Ode e a Elegia”. E declarais expressamente:
Por um momento me sinto vivo e completo, fruto consumado do Arcadismo Português com a antropofagia dos caetés alagoanos que, ao comerem o bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, na verdade queriam assimilar toda a Europa.
O advogado que convoco a defender-vos não pode ser considerado suspeito, pois não consta que tenha nas veias o mesmo sangue. Se tem o nome de Ivo, o tem como nome de batismo e não de família. Nascido na Bretanha e vivendo em Paris, no século XIII, quando Tomás de Aquino ensinava na famosa universidade, e o rei São Luís fazia justiça debaixo de um carvalho, daria origem ao epigrama que honrava o santo mas condenava uma classe: Sanctus Yvo erat Brito (da Bretanha); Advocatus et non latro, / Res miranda populo. [Santo Ivo era bretão, / Advogado e não ladrão, / Coisa que o povo admira.]
Porém, o santo advogado acabou juiz in utroque jure, isto é, tanto no tribunal dos homens como no Tribunal de Deus, onde o réu é, ao mesmo tempo, o acusador e a testemunha, e o juiz sempre absolve. Certa vez, veio a Santo Ivo um padeiro arrastando um pobre mendigo, a quem acusava ter passado toda a manhã aspirando o bom cheiro dos pães do seu forno. Ivo tomou ao mendigo todo o dinheiro que recolhera de esmola. Em seguida, foi atirando, uma a uma, as moedas sobre a mesa. Porém, quando o padeiro estendeu o braço para arrecadá-las, como se constituíssem o pagamento reclamado, o Santo pronunciou a sentença: “Para pagar o cheiro do pão quente, basta o tinido das moedas...” E devolveu-as ao mendigo.
Também a vós, Sr. Lêdo Ivo, ladrão de flor, para saldar vossos roubos, bastarão os vossos versos, caindo, um por um, das páginas dos vossos livros, no ouvido e no coração dos leitores.
Vosso nome é um adjetivo que significa alegre e tem feminino e plural; Lêdo, Lêda e Lêdos. Hoje, Lêdo e Lêda, estais ledos por partilhardes a mesma vitória: o poeta e a musa.
Não nadastes em vão, Sr. Lêdo Ivo.
À flor d’água, a flor.
E porque a quiseram
vai o nadador
também à flor d’água
em busca da flor.
A flor não sumiu como no poema. Eis que o nadador a tem agora entre as mãos. Só lhe resta colocá-la, como um troféu, no colo de Lêda.
Se excetuarmos as duas acadêmicas e alguns intrusos que ultimamente ameaçam transformar esta Casa num jardim de infância, somos, para usar uma expressão vossa, embora vos referindo a outro grupo, “homens de Letras bastante servidos em idade”. Isto não nos impede de acolher-vos, satisfazendo a vossa última vaidade, como amigos de infância. Ainda mais que acabais de tomar posse da Cadeira de Orígenes Lessa, o escritor das crianças, criança também ele, por seu encanto e bondade.
O menino Orígenes. O menino Lêdo. Enquanto líeis a Coleção Terramarear, estáveis vós mesmo na confluência desses três elementos que constituem vossas barrentas Alagoas, elementos aos quais juntastes o Fogo da vossa Poesia, para a celebração do Universo. Ave, poeta maior, um poeta menor vos recebe em nome da Casa que vos acolhe!
Por isso, esquecendo o costume atribuído aos trapistas de se saudarem um ao outro com o memento mori e dos gladiadores romanos antes de entrar em combate, o Ave Caesar, morituri te salutant, “Ave, César, os que vão morrer te saúdam”, dizemos agora:
Ave, Ivo, os imortais te saúdam!
7/4/1987