Os Morcegos
Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?
A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
“Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.
Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?
No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz do
[farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda o dia
[ofendido.
ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.
Soneto de Abril
Agora que é abril, e o mar se ausenta,
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.
Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d'água, mas de canto.
Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:
amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.
As Iluminações
Desabo em ti como um bando de pássaros.
E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.
Soma do céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsálício.
Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.
O Caminho Branco
Vou por um caminho branco
Viajo sem levar nada.
Minhas mãos estão vazias.
Minha boca está calada.
Vou só com o meu silêncio
e a minha madrugada.
Não escuto, entre os barrancos,
a voz do galo estridente
que, na treva do terreiro,
anuncia as alvoradas.
Nem mesmo escuto a minha alma:
não sei se ela vai dormindo
ou me acompanha acordada,
se ela é vento ou se ela é cinza
ou nuvem rubra raiante
no dia que se levanta
como vela desdobrada
em nave que corta as vagas.
Não sei nem mesmo se é alma
ou apenas sal de lágrimas.
Vou por um caminho branco
que parece a Via Láctea.
Só sei que vou tão sozinho
que nem sequer me acompanho,
como se eu fosse um caminho
pisado por vulto estranho.
Não sei se é dia ou se é noite
o que surge à minha frente,
se é fantasma do passado
ou vivente do presente.
Não sei se é a torrente clara
da água que corre entre pedras
ou se um gavião me espreita
oculto no nevoeiro,
espantalho prometido
ao meu dia derradeiro.
Atravessando barrancos
e plantações de tomate
e ouvindo o canto escarlate
de airosos galos polacos,
vou por um caminho branco:
brancura de bruma e prata.
Entre tufos de carqueja
há constelações de orvalho
e um clarão de meio-dia
cega a minha madrugada.
Vou como vim, sem saber
a razão da travessia.
Nem sequer levo na boca
o gosto de água salgada
que relembra a minha infância
feita de mar e de mangue.
Nem sequer levo nos olhos
- nos meus olhos de menino -
a mancha rubra de sangue
deixada pelo assassino
que vi certa madrugada.
Vou por um caminho branco
e nada levo nem tenho:
nem ninho de passarinho
nem fogo santo de lenho.
Só vou levando o meu nada.
Foi tudo quanto juntei
para oferecer a Deus
nesta madrugada.
Minha Pátria
Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando
[sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas
[carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos
[e impaludados não param de
[tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
[muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.
As Ferragens
Em Maceió, nas lojas de ferragens,
a noite chega ainda com o sol claro
nas ruas ardentes. Mais uma vez o silêncio
virá incomodar os alagoanos. O escorpião
reclamará um refúgio no mundo desolado.
E o amor se abrirá como se abrem as conchas
nos terraços do mar, entre os sargaços.
Nas prateleiras, os utensílios estremecem
quando as portas se cerram com estridor.
Chaves-de-fenda, porcas, parafusos,
o que fecha e o que abre se reúnem
como uma promessa de constelação. E só então é noite
nas ruas de Maceió.
Poema em Memória de Éber Ivo
Éber
o espírito de Deus pousou em tuas mãos trêmulas e na agonia de teus olhos enevoados
que se entrecerraram porque o ritmo de teu coração morreu e teus sonhos procuraram outros roteiros mais extensos
e tuas paisagens humanas perderam os limites e se indefiniram
nunca mais te contarei histórias nem sentiremos melancolias nas
tímidas noites
bem diziam que eras diferente de todos os teus irmãos
havia um halo de poesia iluminando o bronzeado de teus cabelos
cujos caracóis a morte não desfez
tua testa era límpida porque os pensamentos grandiosos
adormeciam nela
teus olhos sempre se levantavam para o alto ampliando o limite
do panorama
e em teu corpo franzino habitava o sangue dos poetas e dos
músicos
habitava também o sangue dos contadores de histórias
nós guardamos teu retrato de primeira comunhão e o
ampliaremos para que cresças
durante a prolongada ausência.
recolhemos teus livros e teus cadernos de primeiro da aula e
choramos teus dez anos inquietos
outros souberam somente que partiste num esquife branco e teu
último traje terreno foi uma roupa de marinheiro
ó belíssimo menino de olhos sonhadores e cabelos castanhos
mesmo porque fizeste a grande viagem com a indumentária dos
navegantes
teu cruzeiro é bem longo
tão longo que minhas poesias te reconciliarão com os grandes
problemas e
enigmas
vestido de marinheiro como os caminhantes do mar
nunca mais te direi as tristes lendas de violino e conversarei
contigo
tua poesia é tua presença transfigurada após a desaparição
porque teus olhos se transformaram em faróis e sentiste a
permanência do grande poeta que é Deus
antes de sentires a transfiguração poética
peço porém que digas aos poetas que encontrares por aí que o
mundo se afunda em grandes tormentas
os poetas continuam sendo os timoneiros do mundo
não te esqueças das minhas histórias e das minhas paisagens
mesmo porque te tornaste um timoneiro do barco de Cristo
o piano continua mudo para que se prolongue o compasso
readquirido de tuas singelas músicas
mesmo que as estrelas não brilhem nos céus claros estarás
conosco
tão integrado conosco que não te sentiremos ausente.
(As imaginações, 1944.)
Soneto do Poeta Brasileiro
Não sou viril somente nas poesias.
Quero dormir contigo, pois teus pés
amassavam pitangas e trazias
no corpo inteiro a marca das marés.
Disseste que comigo casarias
- amor na cama, beijos, cafunés.
Entre-sombras de carne oferecias
tão navegáveis como igarapés.
Minha morena até dizer que não,
o nosso amor demais me recordava
duas lagoas onde me banhei.
Sou macho e brasileiro, coração:
em teu olhar eu nu e forte estava
e foi assim, morena, que te amei.
Soneto da Mulher e a Nuvem
A João Cabral de Melo Neto
Nuvem no céu do nunca, nem tão branca
- assim era o amor, à minha espreita,
e era a mulher, de nuvens sempre feita
e de véus e pudor que o amor arranca.
Não pude amá-la, pois não era franca
a sua carne que o amor aceita,
nuvem que um céu de amor sempre atravanca
e entre praias e pântanos se deita.
Bruma de carne, em vão céu de tormento,
parindo fogo aos meus dezesseis anos,
assim foi ela, sem deixar seu nome.
Nunca foi minha, e só em pensamento
eu pude dar-lhe o amor de desenganos
que me deixou no corpo espanto e fome.
(As imaginações, 1944.)
Soneto da Conciliação
Que o amor não me iluda, como a bruma
que esconde uma imprevista segurança.
Antes, sustente o chão em que descansa
o que se irá, perdido como a espuma.
Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e sem lembrança
de aproveitar apenas a esquivança
de que o amor não prescinde em parte alguma.
Que também não se alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma oferta,
reunir o acessório e o imprescindível.
Antes, atente a tudo o que se tece
distante do seu dia inconsumível
que dá certeza à noite mais incerta.
Soneto dos Vinte Anos
Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.
Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.
Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.
Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.
Soneto das Alturas
As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar não deságua, nem no rio.
Às mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente é no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.
Meu corpo nada quer, mas a minh'alma
em fogos de amplidão deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.
E embora nada atinja, não se acalma
e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefável e não o vento.
(Acontecimento do soneto, 1948.)
Balada Insolente
Ao amor, como ao banho
deve-se ir nu
levando-se contudo
cálcio e Poesia.
E deve-se exigir
mais que a morte,
a vida; movimentos
livres e respiração.
Que, neste momento,
a Poesia seja
riso e não lágrimas.
Nunca assaz louvada,
que ela esteja sempre
a serviço da vida
sem trair os homens.
Poesia e cálcio.
Ao amor, que tem tudo,
deve-se ir sem nada,
levando-se no entanto
provisões de hormônios
até mesmo no olhar.
Na noite higiênica
o vento balança
grandes flores: cálcio.
(A jaula, em Ode ao silêncio, 1948.)
Os Frutos da Imobilidade
Entre a tarde e a arquitetura,
a oclusão e a consonlância,
canto-me dormido no horizonte
na viagem de olhos cerrados
para as catástrofes do sono.
E meu coração que é sombrio
como um sol visto às avessas
tem canção ininterrupta,
fanal de sino acordado
ou os instantes plantados
no dia do dia seguinte.
Canto o tráfico do que sou
diante da luz da aurora,
a mulher do meu amor
e eu sempre seguro e calmo.
Luz no caminho noturno
que cheira a mato pisado.
O romper do dia sustenta-me
com seus címbalos de mármore.
Não entôo o desencontro
no amor da tarde, ou a cadeia
que nasce de tuas palavras.
Canto a canção que me envolve
com os teus textos cruzados
como o trânsito na chuva
em uma rua chanfrada.
Não me inclino às harmonias
descobertas no tédio, elipses
de vôos incomunicáveis.
No vasto chão do acaso
eu lúcido apanho a rosa.
Ei melodia! e o mar
ao meu lado comparece
com todos os seus navios
inclusive os naufragados
que retornam com seus mastros
aos preâmbulos das nuvens.
Guardando um sol no meu peito,
falo de amor, compareço
aos espelhos dos instantes
onde a vida se reflete
em termos de diamante.
E aos torvelinhos de outubro
- momentos que são pirâmides -
canto a vida em que pereço
entre dois pavimentos.
(Cântico, 1949.)
O Dia
Das profundezas da tarde vem o dia em que se vive eternamente
igual à água múrmura entre os rochedos
onde se ocultam na antemanhã os peixes perseguidos pelos
homens.
Não se percebe o outro dia melodioso lá fora
nas perspectivas dos arranha-céus, nos cinemas e no trânsito.
A hora tem uma espessura de segredo guardado
e as gargantas de onde as sedes emigraram
suplicam apenas o que sobrou do frio e do sono.
As imprecações dormem no ar, com uma resistência de anjos,
e as doçuras se desfiguram numa ilusão de joelhos fendidos
n'água
como se os corpos sentissem que o tempo foi embora.
A vida, liberta dos vocabulários eventuais, festeja-se sem
memória
no espírito acorrentado a um infinito agora
eternamente presente como o oceano nas praias.
(Cântico, 1949.)
Balada do Arraial
Não vim para te amar
mas para descobrir
o que teu corpo tem
e que não posso ver.
No colégio falavam
de tantas coisas tuas!
Neste campo deserto
podemos começar.
Um dia serei poeta
e cantarei este instante
e te chamarei na certa
de minha primeira amante.
Oh! deixa que eu entre para o Amor
com os olhos abertos...
(Cântico, 1949.)
O Coração da Liberdade
Estive, estou e estarei
no coração da realidade,
perto da mulher que dorme,
junto do homem que morre,
próximo à criança que chora.
Para que eu cante, os dias são momentâneos
e o céu é o anúncio de um pássaro.
Não me afastarei daqui,
da vida que é minha pátria,
e passa como as águias no sul
e permanece como os vulcões extintos
que um dia vomitam sono e primavera.
Minha canção é como a veia aberta
ou uma raiz central dentro da terra.
Não me afastarei daqui, não trairei jamais
o centro maduro de todos os meus dias.
Somente aqui os minutos mudam como praias
e o dia é um lugar de encontro, como as praças,
e o cristal pesa como a beleza
no chão que cheira à criação do mundo.
Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.
Bebo a hora que é água; refugio-me na estância
quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,
e estou livre, sinto-me final, definitivo
como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz
e todas as coisas que são o centro, o coração
da realidade que escorre como lágrimas.
(Linguagem, 1951.)