A Academia recebe hoje, em Cícero Sandroni, o jornalista. O do tempo integral, no o do eu dividido entre o pensador, o poeta e o romancista, que comanda a nossa Cultura. Vivemos, no escrever essa transação continuada, entre a menagem da torre de marfim e o nervo da hora. Quantos, ao recado maior, deixaram de adicionar na biografia a ranhura jornalística? A de Machado, também cronista do velho Senado, a das laudas abolicionistas de Nabuco, a das polêmicas de Rui, nesse terçar da relevância do instante, que se desprende da obra mesma e do selo da perenidade.
Pela folha diária, passou, nas suas matrizes, essa cultura coloquial, sem vestígio, descartável, própria da belle époque, do despontar do século, seus pasquins, suas várias, sua virulência sem amanhã. Cícero, o jornalista por inteiro, na sovela do ofício, no castigo de seu nomadismo, remata-os pelo perfil ético assumido, em que continua seus arcanos, Barbosa Lima Sobrinho e Austregésilo de Athayde. Ambos demarcam esse nosso específico mundo interior, que matura no paradoxo: a militância da palavra a calcar-nos o relevo e também o descarte em que o Jornalismo amarrou o espaço cultural brasileiro, a moeda do intelectual e o seu primeiro reconhecimento.
É quase impossível o escape da passagem fundadora de Alencares, Euclides, Pompeias, pela reportagem, pela crônica, pelos sueltos. Penaria, com a mudança de nossa subjetividade coletiva, essa emancipação do escritor, tantas vezes confrontado com a ascese de S. Simeão, o estilita; o à vontade, na antessala do poder, ou nos parlatórios das relações públicas, à espera da efetiva civilização do direito autoral. Mas Cícero permanece, fiandeiro desse cesto só. Os dois livros, de contos e romance, O Diabo Chega ao Meio-Dia ou O Peixe de Amarna, são álibis sabiamente negociados para que não apareçam, sequer, como intermezzos.
Cícero, pertinaz do só mister com que chega à Casa, não precisa de outro papel para as galas ganhas em nosso panteão. Adentra o Petit Trianon, forte da primeira profissão, o Jornalismo, tão devorador em nossas raízes que teimamos em relegá-lo aos bastidores. Invisível como promíscuo, deixado sempre à porta do que entendamos, agora, como o Brasil do cânon e da obra, para além do beletrismo e da proeza, tantas vezes anônima, do dizer da hora.
Nunca fomos, em nossas premissas, uma cultura das universidades, mas sempre da folha como dos grêmios, da garrulagem de povo-menino e prosélito, das Academias – dos Felizes, dos Ansiosos, dos Solitários, dos Renascidos, da Nova Arcádia, da Roma Perene, da Ithaca Brasiliense, dos Ulissiponenses do Recôncavo. Passamos do convescote para o coloquial, em que criamos o cenário interior do Brasil do Império e da Velha República na febre das manchetes; da diatribe; dos a-pedidos e dos “pela justiça”, em que a extraordinária fartura das edições do jornal – matutinos, vespertinos, noturnos – fazia dos cotidianos a ração da impaciência do tempo quase vazio de história.
Essa a colportagem ou a circulação da irrelevância em que Bourdieu reconhece um fruir incessante de eventos mínimos, no pasquim do país do Correio, da Gazeta, da Gazetilha, da Poção, do Grito, do Brado, do Diário, da Tribuna, do Alerta, do Confidente, do Inconfidente, do Crepúsculo, do Confessor, até chegarmos às jornadas encompassadas de A Noite, do Correio de sua manhã, de O Dia ou de A Tarde, das Folhas, do Jornal do Brasil ou, de vez, de O Globo.
Cícero Sandroni fez-se errância determinada, no contraponto entre a utopia exata e o realismo, no mister sem concessões. Na vigília e disciplina do seu entra-e-sai, foi repórter político de O Globo, do Correio da Manhã, do Diário de Notícias, do Jornal do Brasil. Editor da revista Ficção e do Jornal de Debates. Colaborador do Jornal do Commercio e já, num outro desígnio da viagem, seu diretor-adjunto, apartando-se, por uma vez, da ascese visceral do peregrino e da sala de redação. É por uma dialética toda para dentro do mister, gênero dentro do gênero, que nos deu o jornal feito história, no que pode a memória decantada – a de esvair de todo viés no que relata – do entregar-nos de corpo inteiro o fasto de O Dia e, agora, a do próprio Jornal do Commercio.
Quem vem para o lugar de Faoro, ladeado dos presidentes perpétuos da ABL e da ABI? Acolhemos em Cícero, no próprio processo de nossa vida do espírito, o reconhecimento do profissional, para além das atmosferas-cúmplices da porta direta entre as redações e o Catete, cuja conversação definia nosso padrão de cultura das elites – ou dos donos do poder –, a postergar o encontro de um cânon brasileiro exatamente pela míngua e pelo tardio da nossa universidade.
Apartamo-nos de Coimbra, que ainda assegurou, no Segundo Império, a geração do Marquês de Paraná, para o desponte de faculdades escassas, afim do mister do advogado, do médico ou do engenheiro, sem o lavro de suas cabeças. Nada da fábrica do establishment interior, como permite a praça da Sorbonne, o contraponto de Oxford e Cambridge, o Harvard Square, os portais de Salamanca e Barcelona, para os dissensos e contraditas, o debate infinito, em que se plasma, na bateia histórica, uma geração. Ou a arbitragem invisível, vertida à qualidade intrínseca da obra e da criatividade, demarcando um espaço interior de reconhecimento, suas regras de acesso, seu cânon, enfim.
Vivemos, por quase dois séculos, da tertúlia, à guisa de debate, ou da exasperação do instante, e da crítica, trocadas pela facécia. Jornalismo que se fez do consumo boêmio, ou de vitupério; do elo entre os reis do Brasil e as oficinas invadidas e empasteladas – termo-ferrete da Velha República –, como preço de cada sazão eleitoral. Tempos de Floriano, como de Pinheiro Machado, de Edmundo Bittencourt ou de Júlio Mesquita, a preparar, na sua sequência histórica, não menos paradigmática, os condottieres do trânsito maior. Da Folha, do Estado de S. Paulo para os impérios mediáticos de Assis Chateaubriand e, na sua florescência última, de Roberto Marinho.
É do jornalismo que surge o texto brasileiro, da fatura de Euclides nos Sertões, rebentados dos estereótipos por quem toma tento do que vê como revelador e escande um discurso da realidade que nos funda, tal como a capturamos. E só o jornalismo poderia dar-nos o cotidiano das parcas, em que Nelson Rodrigues inaugurou, com a tragédia, o tempo maior do teatro brasileiro.
Barbosa Lima Sobrinho e Austregésilo de Athayde servem como ordenada e abscissa, no traço, na marcação do sentido e no recado do acadêmico desta noite. “Não reedito, não corrijo, não guardo mesmo o que escrevo”, disse-me o presidente da Associação Brasileira de Imprensa. Difícil encontrar-se consciência mais nítida do perecer e do ficar do que naquele artigo do Jornal do Brasil dominical. Ao lado do de Alceu, das sextas-feiras, transformou-se e, especificamente durante o autoritarismo militar, no respiradouro da mensagem que não queria o mármore, mas o evento, para manter a vigília do país de fundo. Era o vergaste contra a rotina dos fatos consumados, seus cálculos de oportunidades ou da venerável prudência de tantos, para sobreviver e voltar à tona.
Nenhuma ilusão, de Barbosa, como de Alceu, sobre a chibata do instante, sua perda e seu perdurar na coluna, sempre a pique do protesto. Nem por acaso, Barbosa Lima via num de seus predecessores na Cadeira, Jaceguai, exatamente esse herói de um só gesto intransitivo – no todo que nele arrisca. Entra para o nosso fasto da Guerra do Paraguai, quando aciona os motores de sua nau capitânia, no impasse do Estreito do Humaitá, e rebenta a corrente a trancar o rio no clarão do espanto que quebra, de vez, as certezas do fortim inexpugnável fiador do êxito final de López.
E o almirante homem que gravita em torno de um só feito. Tal como seu sucessor na Cadeira 6, firma a pena a cada dia, como lance único, consumido na hora, frente ao verniz dos conformismos, das estratégias dos sábios tranquilos da resistência, ou dos golpes de vista para a derrubada do Estado de Exceção. É o contravento que levou Barbosa Lima à anticandidatura com Ulisses ou, ao lado de Evandro, a personificar literalmente o Brasil-cidadão, no opróbrio de Collor. No nível de todo dia, de sua ABI, constituiu o Movimento Tiradentes, legado de sua morte ao Brasil-opção, do nacionalismo, do Estado crítico e do desmonte de vez dos status quo, do país de amanhã e do trabalho ex machina das ideologias.
É Cícero quem está ao seu lado cada instante e em toda conduta, pela qual a Casa da Imprensa organizou o Manifesto dos Mil, documento dos intelectuais que acabou com a censura em 1976, ao seu lado Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles e Hélio Silva. Nosso novel acadêmico vai ao compasso de Alceu Amoroso Lima, na sucessão de abates/rompantes com que o primeiro de nossos leigos transformou-se na primeira resistência dentro do establishment à vocalização do dissenso ao 31 de Março. Nem mês após sua condenação do terrorismo cultural, espanta Castelo Branco. Irrompe a denúncia cabal, a mesma de Barbosa, e é a veemência da indignação, retomada a cada dia, que lhes dá o látego da impaciência, como quem cobra o respiro da vida do espírito, sacando a mortalha do AI-5. Claro que o só jornalista canônico, para sê-lo, nos deixaria o exercício único do conto largo: “O Homem que Fazia Discursos.”
Nas cadeiras ovais, Cícero fitará, a partir de agora, o rosto revolto do sogro, que reparte o muro da glória da Casa, da belle époque machadiana, ao entre-guerras do Petit Trianon, e de Afrânio Peixoto, aos quarenta anos de Austregésilo, a nos dar a torre, e a menagem da sua magistratura perene, no perfil de medalha clássica, em que o fixou a Princesa Bibesco, confidente do Tout Paris do primeiro meio século passado.
Essencialmente homem do lance e da escrita da hora, Athayde, rangido pelo momento que vem, e do Memorial da Primeira Vida, diretor do Jornal do Commercio na partilha do espólio de Assis Chateaubriand, atleta na porfia diária com o chefe, das braçadas, de ponta a ponta, do Leme ao Posto 6, terso no confronto, de adversário exilado de Vargas, ou do discurso princeps, ao lado de René Cassin, na ONU do após-guerra, no estatuto fundador dos direitos do homem, alçados à plataforma universal.
No contraponto à ocupação plenária de cena da Academia, pelo seu presidente, delineava-se, também, a minudência no diário, como borrão das memórias, instintivamente adiadas, no seu remate, pelo orador, seu opulento direito à apóstrofe, ou ao carão e ao alerta. Começaria essa vocação polêmica pelo seminarista e seu latim de briga, e à marca do humanismo, a incitar-lhe a vida toda. É seu, sempre, o mote. “A fé também não prescinde do intelecto.”
A saída exigida do Convento da Prainha confronta-se com outra pedagogia de ruptura com a vocação religiosa, qual a do confrade, também, objeto de desvelo crítico de Cícero, Quase Cony. Não é a militância do intelecto, mas o tédio ou quase a acédia que atinge o autor do Informe ao Crucificado, fascinado, de saída, pela pompa e liturgia de uma fé, mãe, e suntuária, de quem acorresse a seu achego e sua entrega. Diríamos que a instância do seminário é a da sedução última de Cícero, o analista dessa trilha tão significativa para a iniciação da cabeça do Brasil, a querer alargar as suas elites tradicionais, e no vinco que trazem, também, ao contemporâneo da Academia Roberto Campos ou Antonio Olinto.
Devemos ao novo ocupante da Cadeira 6 – e impossível a tarefa sem Laura – a armação, já prospectiva, do Memorial da Primeira Vida, feito Austregésilo de Athayde, o Século de um Liberal, e Prêmio José Ermírio de Moraes 1998. Avança-se na mesma arquitetura do pano de fundo de uma época – a primeira metade do século XX – o painel de Nabuco, da plenitude do establishment monárquico. Dá-nos Cícero, entre tantos cortes, e no apelido da infância do sogro, o “Manoca” do rincão cearense, filho de Constância Adelaide e de José Feliciano, neto do capitão Belarmino, ferido de Canudos e que ameaçava dispersar o povo à bala e à faca de ponta, ajuntado em Caruaru, à Rua do Comércio, para ver o bebê gigante, descomunal, o segundo Belarmino, Austregésilo de Athayde.
O livro premiado supunha o trabalho de Maria José, Jujuca, sua mulher, compondo a panóplia integral, ao lado do documento interrompido de Athayde, da massa de todos os artigos, depoimentos, notícias publicadas pela imprensa, em três quartos de século, sobre ele, e ela, e depois sobre filhos e netos. Não faltarão ao Memorial da Primeira Vida lances dignos do melhor Bernanos do Journal d’un Curé de Campagne, qual o da tragédia do Pe. Telles, suspenso de ordem, a batina desabotoada e preso do álcool – em angústia interior radical – por se achar indigno de permanecer consagrando as espécies eucarísticas.
O Austregésilo da trama de jornalista no proscênio da vida política brasileira vai ao retrato de revelação mais exigente do Brasil das redações do pós-14 – do Café Papagaio, da Galeria Cruzeiro, mas, sobretudo, do Café São Paulo. É na intimidade única junto a Athayde que se desenha o Lima Barreto, na contramão precisa do establishment, do ódio a Coelho Neto; da raiva ao futebol, cuja “introdução tenebrosa” entre nós atribuía ao primeiro de nossos helenos-tupis e à fixação anatoliana da época; do crítico contundente de Machado de Assis, sem negar-lhe todavia “algum talento, sobretudo nos contos”.
Debruçado sobre o torvelinho das impressões do sogro, Cícero surpreende-o, no laivo mais exigente, na construção da persona. Porque ronda o monumental, há que permanecer inacabado. O Século de um Liberal é construção da vida, da notícia, em que o contexto é pseudomoldura para o sfumatto final, ou da suspensão da figura, que só assegura a maestria da evocação do novo ocupante da Cadeira 6.
Dela se desprende, como se demarca – em texto distinto –, o habitat de Athayde, no scherzzo do Cosme Velho, da captura do bairro, lugar interior inegociável da nossa cultura metropolitana. Compõe-no, pela própria persona, do rio Carioca, a corrente que desce do Corcovado, seu emuramento, sua aflição, seu murmúrio sob o asfalto, a pulsação vitimada pela cidade, como a colhe este escritor, que entende de como mexer na paisagem para elencar os seus atores. Sabe que o bairro é Swann e não Guermantes, diante das Laranjeiras.
No Cosme Velho do General Hagendorp, ajudante de campo de Napoleão em Waterloo; de Henry Chamberlain, o Cônsul Geral de Sua Majestade; dos vinte e quatro anos de Machado de Assis; de Taunay; de Ana Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça e Marcos; de Alceu, da Casa Azul; de Austregésilo; de Roberto Marinho; de Francisco Otaviano, que no seu Cosme Velho e antes de entregar-se à política, “essa Messalina impura”, foi “quem passou pela vida em branca nuvem [...], quem passou pela vida e não sofreu [...], só passou pela vida - não viveu”.
O autor de O Século de um Liberal também é protagonista desta outra originalidade do jornalismo, fundador de nossa cultura, deslizando do fato e da circunstância para assentar a própria arquitetura da nossa subjetividade. E o que lhe empresta a distância interior, onde se operam os reconhecimentos coletivos, a fixação da “regra de ouro” da memória, baseada na contemporaneidade-limite entre autor e personagem. Só aí, e por força dessa nova qualidade de tempo, garante-se a intelecção a mais, em que o horizonte da obra se desfecha sobre vultos-chave, cobra um irresgatável, a embalde repontar na mirada póstuma. Esquecemo-nos, como lembra Ricoeur, de que o tempo longo, de Braudel, não se dá conta de que o memento dos homens é, também, o da autofagia, dos cancelamentos instintivos, em que o lembrar é sempre edição de um inconsciente coletivo.
A História imediata trabalha contra esse rapto de sentido, resistindo à convencionalidade dos cânones externos ao verdadeiro discurso histórico. Nele figuram – para a nova emergência da Cultura Brasileira e ao lado de O Século de um Liberal, de Cícero e Laura; – Chatô, o Rei do Brasil, de Fernando Moraes; JK, de Cláudio Bojunga; Nelson Rodrigues ou Garrincha de Ruy Castro. Fundam-se essas obras, como se destinam a um cenário brasileiro; quebram a circulação do imaginário das elites, sempre em atraso sobre os verdadeiros padrões de relevância, num país, ainda, de subjetividade prosélita, tardo na tomada de consciência. Subtraem, das regras sem o cânon, o panteão emergente; assentam-se sobre esse novo figurar-se interior em formação eruptiva, saído da defasagem crônica da nossa representação. Sua verdade não é restaurável pelas fontes nem se corrige por uma decantação, como quer a historiografia da modernidade e ainda da École des Annales.
Esses Austregésilos ou “Chateaus” – colhem um epos à flor nova de um tempo primeiro de reflexão, no enorme planisfério interior que se desprende do país reflexo e da leitura-aprendiz, do que ver e venerar.
Quando teremos, a nos purgar dessa cultura menor ainda, a obra sobre Vargas, no marco da riqueza das figuras ambíguas, ou múltiplas, por excelência, em que se fixa a charneira de um país já de muitos tempos sociais? De assincronias e evanescimentos; de perfis que saltam e capturam, só, numa primeira e muitas vezes fugacíssima rememoração?
Cícero participa da busca dessa pauta de referenciais, como a que nos deu em O Século de um Liberal, enquanto perdemos a transparência inocente de país da consciência ingênua, a que se referia Álvaro Vieira Pinto. Já são tempos de uma hermenêutica na vida do espírito, mais do que uma simples exegese nessa tarefa dos reconhecimentos coletivos que cumprem as academias, especificamente, à espera do nosso cânon.
Este Cícero devorado pela vigília, em tempos de transição de fato, não escaparia à virtù ou à contração do exercício in vitro, ou a seco, do romance. A concessão à trama ou à subjetividade não é incursão à socapa, mas, ainda, paráfrase do dizer de medula, do jornalista sem recreio. Pode enganar-nos até no que esperamos da peripécia, sem transformá-la pelo imaginário. Cícero, tanto em O Diabo Chega ao Meio-dia quanto no Peixe de Amarna, quer a proeza de um raconto, por definição, nada interior, rente ao fato lá fora e, nele, a recolher a história mesma nos lances opulentos dos nossos pródromos civilizatórios, ou de nossos mitos. As ditas novelas são também o relato da gênese do Dr. Fausto, como da empreitada suprema do monoteísmo egípcio de Akenaton.
Ambas as prosas semelham um policial ou um capa e espada, mas com a garantia das cartas marcadas para sua elucidação. O novo, em Cícero, está nessa transleitura que sugere, para além do jogo da simulação da aventura, de traços e vestígios, ou do interpolar-se no devaneio.
Cumpridos, sempre, são os fatos, no que credenciam os tempos transpostos do jornalista, sabedor dos interditos do romance, senhor das ameias de seu dizer – que na obra maior do espírito – como o de fundação de um texto – só tem de fato uma écriture sensible, como nos lembrou Julia Kristeva. Talvez, em Cícero, a da composição sem trégua venha a ser a do cronista crescido dentro do jornal, nada pretextado como divertissement. É o novel acadêmico que nos dará, em semanas, Um Dinossauro no Leblon.
Seu contar amestra a intriga múltipla, mas a quer na virtuose das simples seriações paralelas – como insinuaria O Diabo – ou nos dípticos de vitral do Peixe. Fica à soleira dos tempos de arcano ou dos tempos de aventura. Mais ainda, exacerba-se no atalhar a interveniência de toda subjetividade no relato, na composição regimentada do eu do autor, no tentar revelar-se ou fazer da trama o só pretexto de um discurso enigma.
Opera-se, consumado, um exercício radical da destituição do narrador no autoanular-se, em que se executa em bem do jornalista. Convite a quem o lê é descobrir quando Cícero se solta, até, da paráfrase, e ainda, exímio, só como quem contrafaz. Resulta, justamente, quando a obra não implica a trama; expõe-na. Ambos os textos chegam a essa simulação da réplica, que Baudrillard apreciaria e a que Cícero guarnece de novo tropo. E o que acontece com a reciclagem ou o sutil deslocamento interior dos tipos mais crassos, explorando a sua zoeira na memória. Taras Bulba ou Karloff, ou o embaralhamento entre Charlotte Rampling, Edna Pourviance e Margareth Chapmann, na soleira do torpor, são exercícios da purga da complexidade de uma trama, pelo seu atafulhamento, pela superposição dos estereótipos agudamente recrutados da intriga policial. Ou do diorama de tempos históricos antológicos, como o do arranque do mito de Fausto em Staufen, ou da gesta abortada de Akenaton, na XVIII dinastia.
Estão todos expostos ao film porsuit, às vezes, em quase catatonia, a todas as sintaxes do melhor sonambulismo tecnológico, à escansão infinita da viagem aérea, ou do périplo em Saqquara, ou no Vale dos Reis, em Tebas. São exercícios da purga de uma subjetividade coletiva, na deformação do seu imprint óbvio, e instalação da diferença, e do rasgo da quase leitura.
O jornalista vê, afinal, o diáfano de tudo, ou o mundo dissolvido, de vez, no teatro do virtual, dos “não lugares”, das “salas de espera” dos aeroportos, dos fingers ou dos corredores contráteis, de espaço anulado, ou do dédalo do trânsito. Desse excessivo palácio de espelhos, em que preservou a sua mirada e sempre o compromisso do relevo e do alerta, da cutilada ética para o instante. A Academia recebe quem, pelo recado da bouteille à la mer, da garrafa a esmo na praia, encontrou o gerúndio da senha. Os post-facios dos dois racontos são idênticos no recado – com trinta anos de distância – de que sabem do verdadeiro continuativo da permanência: as histórias não terminaram jamais, pois, enfim, o autor estava escrevendo, como quem sempre se reinaugura e entra nesta Casa.
Ela é vossa, Acadêmico Cícero Sandroni.
24 de novembro de 2003