Essa publicação faz parte da coleção Revista Brasileira
Editorial
Rosiska Darcy de Oliveira
Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras.
Quando o chão nos foge debaixo dos pés, a pergunta recorrente é: que mundo é este? A perplexidade gira em todas as cabeças.
A resposta não se sabe, mas deveríamos esperar algo surpreendente e desconcertante. Afinal, nenhuma outra geração viu a chegada de uma nova era, todos conectados, juntos e sozinhos, cada um assistindo na sua tela um mundo em comum. Cada um na sua, diz o vulgo, sem saber que anuncia a epidemia de solidão e ansiedade que relata Joel Birman.
Uso generalizado da Internet e celulares, máquinas cada vez mais sofisticadas que concorrem conosco na solução rápida de problemas trouxeram também uma temporalidade inédita, acelerada, um ritmo em que tudo se passa ao mesmo tempo e as nossas exíguas vinte e quatro horas transbordam no amanhã. E não só isso. Convivendo com a Inteligência Artificial, grassa uma ignorância artificial, na expressão instigante de Eugênio Bucci. Maria Homem teme que nosso imaginário esteja sendo sequestrado.
Nesse mundo que nos assusta e seduz ao mesmo tempo ainda somos os mesmos que escrevemos romances, que compomos poesias e cantamos como Gilberto Gil, lutamos pela liberdade contra a censura, pensamos a ciência na moldura do humanismo de Margareth Dalcolmo e JJ Camargo.
E enquanto acompanhamos o ritmo do presente, cultivamos a memória, traçando o retrato de um Casal Amado por todo o Brasil, aclamado mundo afora.
Ele, Jorge, um “cavaleiro da esperança”. Ela, Zélia, “anarquista, graças a Deus”, vivendo um grande amor na casa do Rio Vermelho, uma vida aventurosa de prisões e exílios, regressos, filhos e netos, afetos, amigos no mundo inteiro, uma obra literária imortal como eles. Gringo Cardia fez dessa casa, que guarda um patrimônio do Brasil, um memorial do casal imortal.
Alice Raillard, jornalista francesa, tradutora de Jorge, morou com eles dois meses e Jorge contou a ela o nascimento de Dona Flor, Tieta e Gabriela, e outros tantos personagens que nos habitam, suas mulheres valentes e homens bonitos, mulheres bonitas e homens valentes. Além de sua própria história que é, talvez, seu melhor romance.
Zélia conta de si. E João Ubaldo com um testemunho em que se misturam o amigo e o crítico fecha o capítulo em grande estilo. Inauguramos nesse número um encarte para melhor abrigar tantas vidas e aventuras.
Quanto mais se impõe o eterno presente, mais é preciso celebrar a memória: na assinatura de Pedro Nava em uma toalha que a arte feminina do bordado preservou; nos discursos dos acadêmicos eleitos que relembram os antecessores, como faz Lilia Schwarcz em seu discurso de posse; na premiação da poesia de Adélia Prado, quase nonagenária enraizada em Divinópolis; na homenagem comovida ao grande artista pernambucanoJ. Borges que se foi, deixando uma obra colorida e sensual gravada no coração dos brasileiros.
Continuamos a bordar uma história da literatura. Carla Madeira revela o que sabe de si, a portas abertas e o coração também, diante de um público que vem aqui encontrar quem fez e faz a literatura brasileira.
Assim se resiste (reexiste, diria José Miguel Wisnik) na Academia Brasileira de Letras. Costurando com o fio civilizatório da Cultura tempos que se desentendem.
O mundo que está aí e que nos interroga – que mundo é este? – é preciso não só vivê-lo, como quem aprende uma nova língua, mas também responder às perguntas que ele suscita. Com o esforço do entendimento e a liberdade da crítica.