Senhor presidente da Academia Brasileira de Letras, Ministro Marcos Vinicios Vilaça.
Ilustres membros da mesa
Senhoras acadêmicas, senhores acadêmicos,
Minhas senhoras, meus senhores
Ao preparar um texto sobre o polêmico discurso pronunciado por Sílvio Romero, em 1906, na recepção de Euclides da Cunha nesta Academia, reli a oração do recipiendário daquela noite, e encontrei este período no qual o autor de Os Sertões define, na forma de uma promessa de trabalho, sua eleição para a ilustre companhia. Disse Euclides:
“Não sendo esta investidura uma consagração, mas um tácito compromisso de altear-se por outros trabalhos até a vossa nobilitadora simpatia, imaginai os meus desalentos diante de uma tal empresa”.
Voltei duas vezes às palavras de Euclides e nelas encontrei a expressão exata do meu sentimento em re1ação à tarefa que recebi das vossas mãos para realizar durante o ano de 2008, ao lado dos ilustres confrades que me deram a honra de compor a diretoria. Ao aceitar a incumbência, embora os desalentos de Euclides também rondem o meu espírito, permaneço, pleno de júbilo agregado à gratidão pela confiança que em mim depositastes, na certeza de que, ao receber os vossos votos, a nova diretoria celebrou convosco um compromisso de trabalho, enobrecedor e honroso, mas também a exigir, na continuidade da gestão de Marcos Vinicios Vilaça, dedicação, responsabilidade, imaginação e empenho, marcas indeléveis dos dois anos de administração do nosso querido confrade.
Quando Euclides da Cunha ingressou nesta Academia, a Casa dava os seus primeiros passos, sob a permanente atenção do presidente Machado de Assis, preocupado em encontrar uma sede no mínimo decorosa para a instituição fundada por insistência de Lúcio de Mendonça e Medeiros e Albuquerque. Um tanto cético, nas primeiras reuniões preparatórias da criação da Academia, assim que eleito para a presidência, compenetrado dos seus novos deveres, Machado revelou-se um administrador atento. Nem D. Casmurro nem Conselheiro Aires, o bruxo alterou sua rotina de vida. Às manhãs passadas no Cosme Velho acordado pelo galo “ruim de vianda”, às leituras e do trabalho literário em casa, a seguir o bonde que o levava à cidade, onde o esperavam as lides no ministério e as conversas com amigos na livraria Garnier, acrescentaram–se-lhe os afazeres acadêmicos. Revela-se então o administrador diligente, como nos conta Josué Montello em O Presidente Machado de Assis. A mais urgente das providências era conseguir um local adequado para as reuniões plenárias e solenes, realizadas nos primeiros tempos nos mais variados locais. Sete anos depois de servir, tal como Jacó, não a Labão, mas à Academia, conseguiu instalações dignas, no prédio construído pelo governo na praia da Lapa, o Silogeu Brasileiro. Iniciava-se assim um novo tempo para a instituição.
Hoje encontramo-nos às vésperas de um ano que exigirá muito de nós, na lembrança do centenário da morte deste grande homem que nasceu neto de escravos, pobre, gago e epilético, e construiu uma obra literária sem par na língua portuguesa e que será celebrado com a, publicação de livros, e realizações de seminários e conferências, no conjunto de iniciativas planejado, pela Comissão Machado de Assis, integrada pelos acadêmicos Eduardo Portella, Sérgio Paulo Rouanet, Alfredo Bosi, Alberto da Costa e Silva, Antonio Carlos Secchin, Antonio Olinto e Domício Proença Filho, projeto que à diretoria caberá executar.Ano rico em efemérides, vamos celebrar também o centenário de nascimento de Guimarães Rosa, e o de morte de Artur de Azevedo, entre outros eventos da nossa história literária.
A tradição de empenho na administração da Academia iniciada por Machado de Assis prosseguiu, sem interrupção, por cento e dez anos, notadamente na administração de Afrânio Peixoto, que obteve do governo francês, por intermédio do embaixador Conty, esta jóia da arquitetura francesa, o Petit Trianon, onde hoje nos encontramos. A iconografia dos presidentes pode ser visitada na sala de reuniões inaugurada na gestão de Marcos Vinicios Vilaça, no espaço Josué Montello, no edifício ao lado. Entre eles encontra-se Austregésilo de Athayde, líder de uma geração de acadêmicos que construiu, no local onde encontraram as ruínas do pavilhão inglês na exposição de 1922, o palácio que hoje leva o seu nome, base indispensável ao bom funcionamento desta Casa.
Esta base permite à Academia cumprir plenamente a cláusula pétrea estabelecida pelos fundadores, na defesa da língua e da literatura nacional. A sabedoria desse múnus, desse pacto e obrigação, transcende as tarefas do gramático e do filólogo, da imaginação do escritor e da inspiração do poeta, ou do texto do cientista. Trata-se da primeira linha da defesa dos princípios fundamentais da unidade, da integração da identidade e até da segurança nacional. O português falado, escrito e lido no país, por quase 200 milhões de utentes — na expressão do nosso saudoso Antônio Houaiss —, não importam as formas dialetais, os sotaques, e até os idioletos, constitui a argamassa indispensável para moldar a existência de uma nação forte e estruturada. Cultuar o idioma insere-se em amplo projeto nacional de formação do brasileiro, para permitir o seu pleno crescimento como ser humano por intermédio da leitura, e torná-lo um cidadão com amplo horizonte cultural e profissional. O acesso gratuito de todos às fontes do idioma e ao aprendizado da língua pátria faz parte de um programa de justiça social. Por isso batemo-nos pela volta do ensino da literatura nos currículos escolares de ensino médio.
Entre os presidentes que se seguiram a Athayde, encontramos outros dedicados acadêmicos a exemplo de Josué Montello o reformador do Petit Trianon, de Antônio Houaiss querido amigo que, infelizmente, não pôde concluir seu primeiro ano de mandato, de Nélida Piñon amiga desde juventude quando ambos freqüentávamos o curso de jornalismo na PUC, ela precoce e eu tardio, hoje escritora de projeção internacional, a nossa princesa das Astúrias, que presidiu exemplarmente as comemorações do centenário da fundação da Academia. Seguiram-se Arnaldo Niskier, companheiro das lides da Manchete, D. Quixote a anunciar o apocalipse da educação; Tarcísio Padilha, admiração antiga e amizade consolidada nos anos de convívio acadêmico, quando dele aprendi lições da ética do cotidiano; Alberto da Costa e Silva poeta, historiador e africanólogo, cujo único equívoco foi, nos idos dos anos 50, premiar um poema deste que vos fala, publicado na revista Cigarra. Ivan Junqueira, companheiro incansável na direção da revista Piracema, inventada por Ferreira Gullar, que me distinguiu ao convidar-me para integrar sua chapa na posição de Tesoureiro, mal havia chegado a esta Casa. Todos, com seus companheiros de diretoria, contribuíram para o acontecer da profecia de Austregésilo de Athayde, ao inaugurar o prédio que hoje leva o seu nome: “O sonho é maior do que a realidade”.
As senhoras e os senhores haveis de reparar que, no parágrafo da lista das atividades culturais de 2008, omiti a celebração em torno dos quatrocentos anos de nascimento do padre Antônio Vieira, mas a Academia vai, sim comemorar de forma digna a importante efeméride. E não poderia ser de outra forma. Freqüentador assíduo da obra de Vieira o presidente Vilaça certamente encontrou na leitura dos Sermões um conselho para toda vida, no Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na capela Real, em 1650, no qual o padre assim exorta os fiéis:
“Sabei, cristãos, sabei, príncipes, sabei, ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos”.
Marcos Vinicios Vilaça fez, mas não está entre aqueles que se hão de condenar, porque fez, fez muito e fez bem. Jamais hesitou diante do que deveria ser feito, mesmo quando os recursos prometidos não chegavam a tempo e à hora. Não se omitiu. [( Vieira)]
Secretário geral de sua administração, pude admirar de perto o dinamismo do pensador revelado, eficiente executivo da área cultural e vislumbrei nele algo parecido com o dom da ubiqüidade. Em certo dia, no correr de vinte e quatro horas, Vilaça passou a manhã em Brasília, ao meio-dia desembarcou no Rio de Janeiro, seguiu às cinco da tarde para o seu Recife e antes da meia noite embarcou para Lisboa. Não posso dizer. como o poeta, meninos, eu vi, pois não seguia os seus passos nem o conseguiria, se assim quisesse; mas pude acompanhá-lo pelo celular. Por sinal, o celular merece um capítulo à parte. No primeiro dia de trabalho da nossa administração, o presidente exigiu que o secretário-geral fosse equipado com um celular de último modelo. Eu resistira até então ao uso deste meio de comunicação, hoje indispensável a milhões de brasileiros, a tal ponto que parece uma extensão do corpo humano, ligada ao ouvido. Mas não poderia recusar-me a adotar aquela ferramenta de trabalho e recebi de suas mãos um aparelho com instruções de uso descritas em dois volumes. Não passou um dia sem que, de uma forma ou de outra, nas reuniões, nas discussões, pelo celular ou pelo telefone normal mesmo, não estivéssemos em contato. E assim, de Brasília, do Recife, da Europa, França, Bahia, e literalmente para lá de Marrakesh, no Marrocos, nos comunicávamos para colocar em dia as nossas agendas e os trabalhos administrativos culturais da Casa.
Seu gabinete de trabalho, de onde expedia ordens, faxes e usava ad abundantia o correio eletrônico, poderia ser o do Tribunal de Contas, ou da modesta sala do presidente da Academia, ampliada em seu primeiro ano de gestão. Também despachava ordens de sua casa no Recife ou da poltrona de um Boeing, de onde enfrentou a crise aérea dos últimos meses, incomodado, é certo, mas com a tranqüilidade e o otimismo do doutor Pangloss.
A administração de Marcos Vinicios Vilaça deixa um legado de realizações já elencadas no relatório da diretoria. Continuamos, na expressão de Machado de Assis, numa torre de marfim, um pólo de saber que se renova todos os dias, mas, passados um século e um decênio desde a sua fundação, a torre adaptou-se ao tempo. O trabalho diuturno pela cultura brasileira, na defesa da língua e da literatura nacional, agora se espalha como a luz de um grande farol, levando para todos a cultura que aqui se produz, seja pela internet, ou pelas freqüentes viagens dos acadêmicos aos mais longínquos pontos do Brasil ou em colóquios internacionais, onde estamos sempre presentes.
A administração de Marcos Vinicios Vilaça também foi marcada pela presença suave e amorosa de Maria do Carmo, a baronesa do Limoeiro, titulo nobiliárquico que recebeu de Odilo Costa, filho, em belíssimo soneto. Maria do Carmo agregou, com sua açucarada pernambucanidade, um componente de ternura ao relacionamento da família acadêmica, extensivo ao funcionalismo da casa. Personalidade forte, mas meiga, atenciosa e sensível, o afeto que se encerra em seu coração foi sempre distribuído de forma generosa entre os que têm ou tiveram a honra de com ela conviver.
Senhoras e senhores,
Recentemente, ouvimos de João Ubaldo Ribeiro, nesta Academia, um inesquecível depoimento da sua vida de escritor, no qual confessou a grande tristeza de não ter tempo para aprender grego e ler as odes pindáricas no original. Nesta queixa, o grande romancista expressava todo o desespero do ser humano ávido por expandir o conhecimento, diante do oceano de saber ignorado. O desespero, portanto, diante da própria ignorância. O autêntico ignorante é aquele que sabe quão vasto é o campo de tudo o que ele ignora. O ignorante que não se reconhece como tal, ignora tão completamente que ignora até que nada sabe, infelizmente – se me permitem uma paráfrase de Pessoa.
Confesso: ignorante, para mim o grego também é grego e só reconheço os prefixos que nos ficaram de algumas palavras. Mas na tradução de um texto de Platão recolhi o seu seguinte conselho: “Devemos aprender durante toda a vida, sem imaginar que a sabedoria vem com a velhice”.
Tentei seguir a primeira parte do conselho de Platão, mas sei que os longos anos que passam velozes, do verso de Casimiro, pouca sabedoria agregaram à minha ignorância. No entanto, nos últimos quatro anos de convivência com confreiras e confrades, enquanto envelheço, aprendi muito nesta casa, por estar ao lado de amigos e amigas que me ensinaram e me apoiaram. Entre eles, e são todos, peço vênia para citar meus colegas de diretoria. Tive a felicidade e a honra de receber o apoio de Evanildo Bechara, que sabe grego, e é capaz de traduzir um verso de uma ode pindárica. De Ivan Junqueira, de Alberto da Costa e Silva, e de Nelson Pereira dos Santos, cujas imagens, ao refletir o Brasil, correm mundo, premiadas em todas as partes.
Retomo a palavra de Machado de Assis para lembrar que a nossa obra no âmbito da Academia exige principalmente a constância. Esta constância procurarei manter no ano de 2008, mas, como sabeis as senhoras e os senhores, agora tenho compromisso com duas constâncias. A do conselho de Machado e a da Laura Constância.
Companheira de meio século, esposa, mãe e avó, recebi dela apoio permanente e colaboração constante, compreensão para os meus defeitos, para os momentos de desalento, desânimo e irritação, que também os tenho. Sem este apoio, jamais estaria aqui. Costumo dizer que Laura Constância, a Piba, como para as amigas de juventude, é a pessoa mais otimista do mundo. Mais até que Marcos Vinicios Vilaça. Afinal, ao lado de Vilaça só passei os dois últimos anos e já nos separamos. E com Laura Constância estou casado há meio século.
Senhoras e senhores,
Recorro a Guimarães Rosa, um bom guia quando se trata de caminhadas, para entender que, tal e qual nas caminhadas pelas veredas do grande sertão, o real, não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio do caminho. No meio do caminho, já nos ensinou outro mineiro, encontra-se uma pedra. Mas as pedras rolam, e assim, os obstáculos pretendo superá-los com o apoio dos companheiros de diretoria, com a compreensão da ilustre companhia e com a colaboração e os esforços do eficiente corpo de funcionários desta casa, sempre atentos e diferentes, os quais homenageio na figura exemplar de Maria Carmen de Oliveira.
Minhas senhoras e meus senhores,
Assumo esta presidência pensando em frase encontrada em monumental escultura de Francisco Brennand na sua vasta oficina no Recife. A frase, do hoje injustamente esquecido escritor italiano Carlo Lévi diz o seguinte: “O futuro tem um coração antigo”.
O futuro da Academia Brasileira de Letras de nada valerá se o coração desta Casa de Machado de Assis não bater no compasso herdado dos antigos, dos nossos patronos, fundadores e antecessores. É nesse ritmo, e nesse rito, na seqüência dos exemplos que recebemos dos que zelaram pela Casa, que se construirá um futuro do qual as gerações sucessoras poderão se orgulhar do que fizemos, da mesma forma que hoje, no presente, nos orgulhamos do passado. Os antigos deixaram uma herança preciosa de trabalho por esta Casa, servindo-a sem dela nada exigir, a não ser o conforto do convívio da ilustre companhia. Assim continuamos e continuaremos, com o coração forte, voltado para o alto, coração antigo e, à moda antiga, brando com os brandos, mas duro com os duros, para continuar escrevendo as páginas da mais bela história da cultura brasileira.
Muito obrigado.