Adeus a Josué Montello
Contemplo Josué e recuso-me a aceitar sua finitude. Diante do inevitável, depois de tanto sofrimento, o adentrar de Josué na terra desconhecida ainda parece, tudo, incompreensível para nós, os seus companheiros. Não nos acostumamos à idéia da ausência do grande escritor devotado desde a juventude ao ofício das letras com ardor de um crente. O enorme talento, suficiente para consagrá-lo como um dos maiores romancistas do nosso tempo, multiplicava-se e se enriquecia, por servir a um tenaz trabalhador literário, homem íntegro, inteiro, incansável, diuturno. Um homem de caráter.
Lembro Montaigne, num dos seus prediletos, em Filosofia é aprender a morrer. Montaigne, dizendo que toda a filosofia é aprender a morrer, advertindo-nos de que pouco a pouco vamos percebendo que a aventura da vida não termina na morte. A vida daqueles que cuidamos e que desaparecem se prolonga em nossas vidas. Levamos até o fim as recordações dos que conosco morreram e, deste modo, continuam vivos.
Todos os dias, às cinco da manhã, quando a madrugada exige ainda luzes acesas no interior do escritório, Josué se encontrava diante de uma escrivaninha com seus instrumentos de trabalho, a criar as urdiduras dos seus romances, contos e novelas, ou então a preparar, com a erudição haurida na leitura dos clássicos, tomos de história literária, biografias, ensaios e artigos para jornal. Duas horas depois, os manuscritos prontos eram passados à sua querida e devotada Yvonne, e ela se ocupava de datilografá-los; só depois de terminada a primeira tarefa do dia, o casal tomava o seu café da manhã.
Às oito horas, Josué iniciava a segunda fase dos seus trabalhos, as leituras, os estudos, as pesquisas sempre à procura do ainda ignorado para as devidas incorporações. Depois do almoço, um terceiro tempo dedicado às atividades de administrador cultural em várias esferas do governo: Conselho Federal de Cultura, Biblioteca Nacional, Museus, Universidade, cátedra, reitoria, deveres diplomáticos. E, acima de tudo, a dedicação a esta Academia, onde chegou com o divino calibre de moço e com a qual manteve espécie de relação orgânica - seu corpo, sua pele, se alongando no corpo da Casa.
O vigoroso coração de Josué insistiu o quanto pôde no objetivo de torná-lo, assim como é sua vasta obra literária, fisicamente imortal, busca de imortalidade. Sei, sabemos os que acreditam na permanência do espírito, que seu repouso final não representa a vitória da morte. Poderíamos perguntar até neste momento, diante de Josué, repetindo Paulo na Epístola aos Coríntios: Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?
Seus livros de repercussão internacional, uma verdadeira brasiliana escrita por um só homem, jamais escondem a influência das suas raízes maranhenses. Ele destacava com carinho especial os romances, alguns deles a exemplo de Tambores de São Luís ou Noite sobre Alcântara - dos mais belos escritos em língua portuguesa - como, nestes livros, está o ensinamento de que ninguém será grande sem negar suas raízes.
Na Escritura está muito claro que Vita mutatur, non tollitur, a vida é mudada, mas não tolhida.
É num claustro de paz que Josué se encontra agora e donde virá sempre para junto dos seus confrades, pois é verdade o que ele me ensinou, vinte anos atrás: a nossa vida são os nossos mortos.
Enquanto não nos convertemos em verdade, Josué, sentiremos saudade de você.