Aqui estou com mais sonhos do que em 2005 − para sonhar não há limites − porém, e sobretudo, com os acrescidos calos da vida. Sonho como Bandeira: “Com que sonho? Não sei não./ Talvez com me bastar, feliz / − Ah feliz, como jamais fui”.
A volta enseja caminhar sem demasiadas surpresas. A gente conhece melhor armadilhas e atalhos. Deus, como fez no passado, haverá de me guiar e meus confrades não me deixarão sozinho.
Não volto para reforçar currículo ou servir à biografia. Não faria isso.
Volto para os fazeres do bem, dos bem-fazeres.
A exemplo de Machado de Assis, dirijo-me desde logo aos confrades, repetindo-o:
“Reinvestido-me no cargo de presidente, agora, vos agradeço a escolha, digo-vos que buscarei na medida do possível corresponder à vossa confiança.”
Não me soando bem a palavra volta, prefiro servir-me de um toque arcaico que melhor pode se ajustar ao sotaque pernambucano (que no meu caso talvez seja discreto) e digo:
Obrigado por me darem este momento de retornança.
O tempo encontra o tempo. Outra vez na vida declaro-me pronto para um novo depois.
Tenho alguma vantagem em suceder a Cícero Sandroni. Encontro a Casa absolutamente em ordem, seus anos de serviço à Academia são relevantes mas desafiam na sucessão. Dos seis anos em que foi Diretor da Casa − tesoureiro, secretário-geral, presidente − estivemos muito próximos. Foi bom para mim. Vivi seu amor à Academia, sua disposição de servir às causas da Cultura mas, principalmente, confirmei seu caráter de homem leal e probo. Ninguém dê limites à nossa amizade.
Numa palavra: fizemo-nos amigos. E, para mim, amizade é via de mão dupla.
Tudo farei para ser seu sucessor do jeito que ele foi meu sucessor.
Torna-se fácil perceber que me declaro seu continuador. Machado de Assis, novamente ele − sempre ele − distinguia continuidade de continuismo. Essa clave tinha em mente ao abrir a sessão inaugural de 1897. Breve − como se intuísse a regra do twitter − nosso Fundador conclama os confrades do tempo e os vindouros a se manterem fiéis à tradição e à dinâmica do tempo.
Lutarei para que se ampliem os trajetos no sentido e que a Academia seja ainda mais vista e ouvida.
Todos acompanhamos a geração que parece ter nascido com controle remoto e mouse à mão. Basta um clique e a tela muda. É vital que nos afinemos com os moços.
Examinaremos mais opções na Internet, twitter, e-books, para habituais transeuntes nestas nossas paredes.
A continuar aprendendo com Machado, parodiemos o conceito do Mestre: Nem tudo se faz com o patrimônio dos antigos, nem tudo se faz com os haveres do moderno, mas com os dois constrói-se o começar comum.
A Academia não existe para entesourar cultura, mas para socializá-la.
Mais de um século separa as obras, por exemplo, de um Degas, da era digital. No entanto, em muitos museus estão ambos integrados em perfeita combinação artística. O Kindle faz com que precisemos de pouco espaço para até milhares de livros, não é sem razão que a venda de livros eletrônicos cresceu cerca de 500% neste ano.
Não serão superados os incomparáveis prazeres táteis e cerebrais dos livros de papel, mesmo que o Kindle possa argumentar que o leitor com ele se dispõe a carregar nas mãos cerca de 3500 livros. Claro está que, se não preenche o imaginário da leitura literária, não nos enganemos da força que exercerá no futuro em relação ao livro didático.
Desde a adoção do alfabeto fonético da Grécia antiga, passando pela invenção da imprensa com os tipos móveis no Renascimento, não há nada mais revolucionário que a chegada do digital. É verdade, passamos do imediatismo da oralidade do nheengatu à complexidade da comunicação internáutica.
Especialistas da comunicação temem que o homem esteja a inaugurar uma cultura autodestrutiva – uma cultura da incultura. É possível que haja nisso alguma razão. É também possível que haja algum exagero.
Até ontem, toda plataforma para ler era modulada de forma passiva e indireta pela luz do sol ou da lâmpada.
Agora, o fundo emite luz e nós teclamos sobre o fluxo de luz. O fundo sobre o qual aparecem letras e imagens é fonte de luz ativa.
Senhoras, Senhores
Nada anula a atração de elucidar o alcance dos novos usos.
Uma Academia de Letras também está obrigada, na contemporaneidade, a refletir sobre linguagem e tecnologias, do contrário ficará como sombra, ao perder a fonte de irradiação.
Não é legítimo imobilizar-se na repetição do passado. Perdemos muito no Brasil no retardo em usar Gutemberg. Passaram 320 anos até que estivesse a nosso serviço. No México, já em 1539, e no Peru em 1584, no Brasil, só em 1747. O Brasil é um país a não mais poder perder tempo, nunca mais.
O tempo presente nos põe em alerta sobre o que significam para a Cultura as instantaneidades da comunicação.
É fácil perceber que Cultura não é algo sucessivo, mas simultâneo. A Cultura carece ser entendida em sua forma alargada, algo que começa antes e termina depois. Antes e depois de datas, de arautos, de fronteiras, de movimentos. A Cultura pode ser múltipla, mas sempre será, como mais de uma, obra simultânea em continuação.
Cultura, realidade dinâmica, envolve movimento, tradição e criação.
Cultura é compreender, conviver com o Outro, respeitar diversidades. Diversidade cultural é fator de coesão e não caminho de fragmentação.
Cultura há de ser a unidade dos momentos, o que é bem diferente de ser mera unicidade.
Estabeleçamos aliança com o país que ainda está chegando. Sem esse enlace, no futuro não haverá como preservar a tradição. Seremos pó.
Fazer a ligação fundamental entre a tradição e a modernidade, sem concessões ao modernoso, é ato de bom senso.
O professor Luiz Otávio Cavalcanti fala que o tempo se compõe de duas lâminas, a que corta por fora tem a transparência das cores, a que opera por dentro recupera pelo mergulho nos sentimentos.
A Academia aceita e convive com essas lâminas, também de antenas e raízes. Os meus companheiros de Diretoria são toreutas. A eles compete conduzir o cinzel se o Presidente não souber fazê-lo. Confio nos companheiros e apelo pela ajuda do plenário acadêmico.
Confrades
Administrar é ter um olho no programa e dois olhos no propósito.
A Academia reivindica, por sua representatividade, que nada pode ser decretado pelo governo do País no âmbito da Cultura sem que passe por esta Casa. Dou exemplos: direito autoral é assunto que deveremos afinar; a Internet não pode aparecer como plataforma hostil ao arrepio dos direitos do usuário; a proteção à obra não pode inibir a sua apropriada divulgação no equilíbrio do interesse econômico e do interesse público. Com isto, digo que a base conceitual no campo dos direitos de autor não caberia mais à superada Convenção de Berna, de 1886.
Como presidente da Academia, no que toca à proteção da propriedade intelectual, manifesto solidariedade à Declaração de Hamburgo, de junho último. Os sites poderosos devem compartilhar recursos econômicos obtidos pela publicidade divulgada em suas páginas de notícias, que usem conteúdo produzido por empresas de comunicação. A Internet deve respeitar a lei.
Estimamos que o autor brasileiro tenha viabilizada sua presença em bibliotecas virtuais, mas respeitada a autoria e quebrada essa quase exclusividade que parece reservada aos USA, Canadá, Reino Unido e Austrália.
Senhoras, Senhores
A Academia entende que aos intelectuais compete lutar para que se impeça concentração de poder, com amargo sabor totalitário. Democracia não é só o voto na urna mas, igualmente, o acesso quotidiano à justiça e à repartição dos frutos do crescimento econômico e do desenvolvimento social.
Por isso, a legitimidade do protagonismo da Academia permite, sem coerção alguma, nossa autoridade institucional. Somos uma gente portadora de valores compartidos.
Neste século não há lugar para espectadores que não se sintam atores. A Academia não senta na plateia para se ausentar do palco.
Sem deixarmos de ser gente, queremos ser a Academia. Não permitiríamos a atitude tribal de fechar a Academia. Há muito já fizemos a abertura. Sua claridade tem que estar em movimento. Irreversivelmente.
De outra parte, ninguém imagina que o Presidente viria para ser imobilizado por eventuais concepções arcaizantes, por regras revogadas pelo bom senso. Isso seria no mínimo ilusão de ótica. Não são pedras, são espumas.
Também ninguém desconhece que compreendo a minha função como parte da orquestra. Não posso ser um presidente solista mas não permaneceria presidente para ser um presidente solitário.
Não me arreceio de enfrentar os custos de tratar do futuro, pois já soube o que custou a muitos administradores presos ao passado ficarem estrebuchando diante das novidades. Não me faltarão paciência, resistência e resiliência.
Em 2010, a UNESCO vai se dedicar ao que chamou o “Ano da aproximação das Culturas”. Nada mais aliciante. A indiferença no que toca às diferenças culturais mata a capacidade de compreender. A diversidade é fator de enriquecimento mútuo. Nada de amnésia. A memória alimenta a capacidade criadora. Para a melhoria da compreensão mútua temos que aperfeiçoar a capacidade de nos colocarmos no lugar do Outro. Essa compreensão, esse conhecimento, põe-nos aptos a fazer da Cultura um fator de emancipação, de descobrimento, de justiça e de coesão, ensina mestre Guilherme d’ Oliveira Martins, grande intelectual europeu da atualidade.
Amim Maalouf em seu Mundo sem Raízes, admirável obra deste ano, adverte para o risco de confundir a globalização com a uniformização.
No ano vindouro, “Ano das Aproximações”, teremos instigantes datas a comemorar. Entre outros registros, os centenários de Nabuco, Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda, Carlos Chagas, Miguel Reale. De Tolstói, sócio correspondente. De Tancredo Neves, sócio da Academia de Minas. De Noel Rosa, acadêmico do samba. Os octogenários Afonso Arinos, filho e José Sarney.
Comemorações que faremos, como é do estilo da Casa, sem zumbaias e foguete de lágrima mas com reflexões sérias, intercâmbios, numa vertente de recriação.
Essas comemorações ornamentarão tudo o mais a se fazer, como ligação da Academia, com a Cultura e a Língua, a língua certa do povo, que vem na forma gostosa de português do Brasil. No plano de atividades vitais, releva a constatação de que a Academia não carece só de atos de gerência, nestes nossos mandatos tão curtos, mas de todo um novo processo de gestão que somente se viabilizará com necessária e urgente atualização regimental.
Entrego-me de corpo e alma, sem sobras, sem mínguas, às diretrizes da minha Diretoria. Sugeri ao Plenário a composição do corpo dirigente, em ato bifronte, como Janus dos tempos modernos, numa face a fundura do afeto, na outra, a admiração objetiva às qualidades que os fazem tão notáveis. A Academia concordou, em decisão unânime.
Há tanto por fazer. Convoco afetuosamente os confrades, responsáveis pela tarefa que me atribuíram. Apelo aos servidores que amem a Casa a que se dedicam tão orgulhosamente.
Agradeço a Deus por ter me trazido lá das barrancas do Capiberibe, meu rio, “espelho do meu sonhar” até aqui. Agradeço à legião dos amigos que se abraçam comigo nesta hora, apoiantes solidários.
Agradeço, sobretudo, à família que tenho. Mãe, mulher, filhos e netos. Que Carmo não me falte nunca com o poderoso sopro de vida com que me protege e me suporta. Suportar é o tempo mais longo, versejou Sophia de Mello Brayner.
Há tanto por fazer.
Vamos trabalhar.
Temos um presente que resultou de muito trabalho dos Acadêmicos. O curriculum de dignidades desta Casa é o nosso maior tesouro.
É imensa a obra realizada. A nominata dos presidentes que me antecederam em trabalho e dignidade me põe em brios.
Diante do que já foi feito, sinto-me obrigado a repetir: Há tanto por fazer. Não deveremos ficar na espera a comer pétalas de rosa e a beber café como Fermina Daza, do livro de Gabriel Garcia Marques. Vamos trabalhar... Vamos cuidar dos fazeres do bem, dos bem fazeres.
Marcos Vinicios Vilaça
Discurso de Posse na Presidência da Academia Brasileira de Letras
17 de dezembro de 2009