O governo num boteco do Leblon
- Não, isso eu sei. Nós vivemos numa república democrática e temos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso eu sei.
- Não, isso eu sei. Nós vivemos numa república democrática e temos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso eu sei.
A voz rouca das ruas é fogo. Estou saindo da pastelaria aonde vou neuroticamente toda santa noite e compro uma porcariada que não tem mais tamanho, pego minha sacolinha, uma voz me chama, é uma jovem senhora que decidiu interpelar-me.
O nome acima era afetuosamente usado para designar um conjunto musical que fez breve carreira na Salvador de meu tempo, que os anos não trazem mais. Eram os Independentes do Ritmo porque cada um tocava para um lado. Lembrei-me deles agora, depois de assistir a um nobre deputado cujo nome me escapa passar uma eternidade para fazer uma pergunta ao ministro Palloci, se embaralhando todo, ao ponto de esquecer a pergunta. Fiquei aliviado quando o ministro, que não pode ser levado na conta de burro, disse que não tinha entendido, porque eu também não tinha bispado nada. Aí a bola voltou para o deputado, que fez umas embaixadas e lavrou jóias da oratória pátria, tais como “V. Excia. sabia de que”, amaciou a pelota, deu umas duas cabeçadas, aparou na coxa e perguntou algo ainda difícil de entender mas patentemente anódino, cuja resposta não tive paciência de esperar.
Na fala cotidiana, aprendemos a identificar Estado com governo. Para os brasileiros, a confusão é ainda facilitada pelo fato de vivermos, pelo menos nominalmente, numa república federativa, onde os estados-membros são chamados também de estados. Então, quando alguém fala em Estado, a gente pensa em São Paulo, no Rio, no Amazonas, na Bahia e assim por diante.
Sou craque do passado, como sabem os persistentes e pacientes leitores desta coluna. Hoje em dia nem as posições dos times têm mais nomes fixos e todo dia aparece uma especialidade como, vamos dizer, “ala volante avançado rotativo”, que ninguém sabe o que é. Comecei na ponta direita, mas minha única jogada era dar um chutão para a frente perto da linha lateral e sair correndo atrás da bola (eu corria bem, esse negócio de o capenguinha me pegar no calçadão é porque ele pega qualquer um), para ver se a alcançava e conseguia centrar. Logo me puseram na posição mais ou menos equivalente à de zagueiro hoje em dia. Eu era beque direito no time de Itaparica contra os veranistas, de inesquecível trio defensivo: Nego Tóia, Delegado e Chico Gordo. Delegado era este ex-atleta que lhes fala.
Sobrolho franzido, ar tão grave quanto lhe permitem os bermudões e as sandálias velhas, o escritor abandona de supetão o teclado e resolve descer à rua. Está difícil escrever hoje, nesta primavera londrina que o Rio de Janeiro tem vivido, com o céu sempre carregado e o sol foragido. Paradoxalmente, o que aflige o escritor não é o que, pelo menos de acordo com o folclore do ramo, volta e meia se abate sobre os que escrevem com obrigação e prazo, ou seja, a famosa falta de assunto. É justamente o contrário, é o excesso de assuntos. E, na distante juventude, tempo em que se estudava latim, ele aprendeu que quod abundat non nocet - o que abunda não faz mal. (Carece de suporte linguístico a tradução, corrente nessa época, por “quando a bunda não é nossa”.) Portanto, não teria razão de queixa.
Não dei sorte, porque ainda peguei a fase em que não dar cachação em menino era considerado “pedagogia moderna” e coisa de frescos (que tinham que ser muito machos para encarar a barra que era ser fresco naquela época). Então, como o velho sempre pendeu, apesar de uns passageiros surtos de esquerdismo, para um certo conservadorismo, caí muito no cachação. Tenho vasta experiência, pessoal ou indireta, com a pedagogia antiga. Encarei muita surra de cinturão e palmatória, mas nunca me ajoelharam em milho, é uma falha em minha formação. Sempre havia alguém que tinha ajoelhado em milho, alguns enquanto rezavam um rosário, outros entoavam frases sonoras sobre suas culpas, muitas das quais tão floridas e elaboradas que o castigado nem as entendia, como por exemplo “estulto estou por falta de estudo e estulto não estarei se isto tudo estudar”. Lido assim, pode até parecer moleza, mas imagine isso encostado num canto de parede, uma mão levantada acima de sua cabeça e você tendo de dizer tudo com clareza dezenas de vezes encarreiradas. Essa não era, graças a Deus, do repertório lá de casa, era de um colega meu. Havia narrativas mitológicas sobre o que faziam às crianças que agiam mal. Fiquei, creio eu, mais ou menos na média para minha turma da época, se bem que meu pai era hors-concours , justiça seja feita.
Poucas vezes testemunhei tamanha confusão em relação a um problema de interesse geral como nessa história do Sim ou do Não para um artigo do chamado Estatuto do Desarmamento. Concluí, em visão talvez simplória, que não iam desarmar os bandidos, que iam fomentar toda uma economia delinqüente em torno do tráfico ilegal de armas e munições e que tais circunstâncias me justificariam dizer “não” à diabólica pergunta a que vamos ter de responder. Assisti a discussões de pessoas esclarecidas, que não conseguiam avaliar o significado de um “sim” ou “não” na hora do voto. O que o “sim” significava para uns queria dizer o contrário para outros. Vi gente quase sair no tapa por causa disso e eu mesmo me peguei cheio de incertezas bem na hora em que começava a achar que tinha certeza.
Como é, já resolveu seu voto no plebiscito?- Já, já. Demorou, cara, foi uma discussão braba lá em casa. Muita opinião divergente, sobre se o SIM queria dizer que a gente não queria a proibição ou o contrário, você não imagina a discussão. Acabamos chegando à conclusão de que é o NÃO mesmo. Todo mundo lá vai de NÃO.
Faz quase dois anos escrevi aqui contra a lei que deverá proibir o comércio de armas no Brasil. Fico meio (serei moderno e vou usar essa palavra; todo mundo usa e preciso ser moderno ou perecer) sacaneado, quando me põem no bolo dos “babacas da mídia”, que só defendem direitos humanos para criminosos e trabalham pela aprovação de leis como essa do desarmamento. Nem sei que babacas são esses, eis que babacas há em toda profissão ou condição social, mas escrevi aqui contra o tal desarmamento. Precisava até de mais espaço do que o muito que já me dão, de forma que não é para poupar trabalho que reproduzo três parágrafos daquele texto. É porque iria os repetir, com outras palavras. Escrevi o que vai grifado abaixo:
Reproduzo no título acima, dando o devido crédito, as palavras proferidas pelo ex-deputado Severino, ao mencionar as denúncias de que ele recebia uma gruja do concessionário dos restaurantes (casa de pasto talvez fosse a designação mais adequada a boa parte da freguesia dos estabelecimentos em questão) da Câmara. O homem estava indignado, era sua honra em jogo, era o presidente da Câmara de Deputados, uma das mais altas autoridades do país, sendo falsamente acusado de tomar uma grana comparável à de um bom flanelinha, desses que no Rio às vezes cobram 50 reais pelo direito de usar a rua por três horas. Quer dizer, o flanelinha pode até ganhar mais um pouco e certamente qualquer chefe de quadrilha que explore menores mendigos fatura bem melhor, mas, de qualquer forma, podia sair num jornal estrangeiro e não ficava bem para a nossa imagem. Mentira, mentira, mentira, pois.
Sic transit gloria , assim passa a glória deste mundo e hoje ninguém mais fala em Pittigrilli. Aliás, excetuada a turma dos sessentinha em diante, no mínimo cinqüentinha e tantos, ninguém faz idéia de quem foi Pittigrilli. Era um escritor meio peralta, geralmente publicado aqui em volumes com sobrecapas coloridas e sugestivas (no bom ou no mau sentido, conforme você considere Aquilo bom ou mau) que muita gente tinha de ler escondido, mas que hoje seria água-com-açúcar e considerado conservador e bobinho por qualquer pré-adolescente que leia, ou seja, aí uns 0,7% deles embora, no que depender do incentivo presidencial, devamos bater na marca do 0,5% no próximo ano. Na casa de meu pai, Pittigrilli não chegava a ser proibido, mas, para cada livro dele que me pegava lendo, o velho tacava até o Fausto em cima de mim (ao qual, aliás, até hoje tenho horror; perdão, Alemanha), ou me mandava decorar versos da Divina Comédia em italiano, que ele só entendia lendo e eu nem lendo nem ouvindo, o velho não era mole.
Creio que venho notando claros sinais de que o interesse público pelas CPIs, o mensalão e correlatos tem caído muito, nos últimos dias. Em primeiro lugar, o cheiro de pizza nos envolve as narinas e os que pensavam que iam mudar de cardápio já hesitam sobre se vão querer com calabresa, sem calabresa, ou mista. Não entendo muito de pizza, que costuma saber-me a papelão temperado, mas sei que ela vem aí. Bem verdade que a velocidade das CPIs não é das mais estonteantes, mas no fim vem pizza mesmo, no máximo com um garçom ou dois ficando sem gorjeta por uma semana e um boy de cara para a parede quatro horas. Até o pessoal do boteco, que deu para abandonar as novelas em favor dos canais do governo, está desistindo, não agüenta mais os artistas repetindo as mesmas falas e enrolando o máximo, para continuarem focados pelas câmeras. As cenas de sexo são intensas, é verdade, mas nós estamos sempre ? como direi? - no lado recebente; eu sei que tem quem goste, mas há de cansar um pouco até esses. E ficou clara a necessidade de instituírem, naturalmente que às nossas custas, um curso de artes cênicas para diversos parlamentares. Outro dia, quando uma representanta do povo (eu sei que a palavra não existe dessa forma, mas não convém facilitar, de repente tem uma lei aí que qualifica um casos desses como crime hediondo) passou 15 minutos explicando que ia fazer apenas uma perguntinha e, quando fez a perguntinha, descobriu que ela já tinha sido feita e respondida diversas vezes antes, devo confessar que me decepcionei um pouco com o roteirista.
Acabo de ler os jornais, não tenho por perto ninguém para conversar e pelo telefone até hoje não me ajeito bem, resolvo pensar sozinho mesmo. Já não sou um rapazinho, os neurônios rateiam diante da profusão estonteante de acontecimentos, mudanças de percepção e avaliação.
Manda a honestidade lhes dizer que esta crônica está sendo escrita com indecorosa antecedência. É porque vou passar uma semana fora e meu computador pequeno, acionado a manivela, deu para sofrer convulsões e acessos de asma, de maneira que não posso mais me fiar nele. Mas a Providência acode os desvalidos e, nos dias que correm, já não é tão temerário antecipar colunas. Não vai haver novidades, exceto algum (alegado) ladrão denunciado e mais negativas da parte dos acusados. De resto, imagino que o panorama continuará mais ou menos o mesmo e, no momento em que escrevo, acredito que o presidente Lula se encontra talvez em Acopiara, no Ceará, usando chapéu e gibão de couro, inaugurando uma cacimba participativa ainda sem água (mas amanhã vai ter), anunciando como o governo dele é o maior de todos, fura-bolos, cata-piolho, como está todo mundo empregado e, finalmente, fazendo com que as mais devotas gastem o dinheiro para a próxima feira em velas aos santos de sua devoção, para ele conseguir vencer a tal Elite, que deve ser um nome difícil para Satanás.