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Elementar, caros leitores

 

Na fala cotidiana, aprendemos a identificar Estado com governo. Para os brasileiros, a confusão é ainda facilitada pelo fato de vivermos, pelo menos nominalmente, numa república federativa, onde os estados-membros são chamados também de estados. Então, quando alguém fala em Estado, a gente pensa em São Paulo, no Rio, no Amazonas, na Bahia e assim por diante.


Desculpo-me perante quem já sabe esse bê-á-bá, mas bem menos gente sabe do que se pensa, pelo menos de acordo com a impressão passada em qualquer bate-papo envolvendo questões políticas.


O Estado não é somente governo. Não conheço a prática atual, mas os calouros de Direito estudavam Teoria Geral do Estado e através dela aprendíamos que o Estado tem três elementos: governo, povo e território. Os estudiosos de ciência política torcem um pouco o nariz para a Teoria Geral do Estado, pois seu enfoque seria excessivamente jurídico e não dá uma idéia clara do funcionamento da sociedade politicamente organizada. Tudo bem, não vou discutir com o pessoal que milita na área. Certo, a ciência política está longe de se esgotar na Teoria Geral do Estado, mas umas pitadas dela talvez nos ajudem a ver os nossos problemas.


Vamos começar pelo fim da enumeração, o território. À primeira vista, temos território. Temos até demais, segundo os que acham que o que hoje é oficialmente território brasileiro teria se dado melhor se fosse vários pequenos Estados. Do tamanho que somos geograficamente, derivamos nossos delírios de grandeza, tão tristemente contestados pelos fatos. Mas o Estado brasileiro exerce mesmo sua soberania sobre este território, cujas dimensões não entram na cabeça de muitos estrangeiros, mesmo que passem voando no espaço aéreo brasileiro, sem sair dele, mais tempo do que levariam para uma ida e volta de um lado da Europa Ocidental ao outro?


Não exerce. Nem falo na Amazônia dita brasileira, porque acho que, pelo andar da carruagem, ela não permanecerá nossa e, mais dia, menos dia, vão armar - segundo muitos, já estão armando - esquemas para tirá-la de nossas mãos irresponsáveis. Minha tendência é acreditar nisso, mas dou de lambuja que não vai acontecer. Contudo, que grande parte da Amazônia brasileira já é terra de ninguém e tem índio que fala inglês e não português me parece inegável, embora não precisemos ir tão longe. Na cidade do Rio de Janeiro, este baluarte de resistência que consegue manter sua beleza, sedução e personalidade, a despeito de tudo o que é feito para destruí-la, o Estado manda?


Não, não manda. De vez em quando, alguém aqui resolve que não irá dar importância ao Estado e o território é controlado por, digamos, particulares. É uma espécie de poliarquia (governo de muitos), ou uma espécie de neofeudalismo, como se queira. Nessas áreas, bem sabemos, o Estado brasileiro não manda, a não ser que determine o bombardeio e extermínio de todas as chamadas populações carentes, faveladas ou enquistadas nos morros. Do contrário, o Estado não chega lá. As autoridades têm de pedir permissão aos chefes locais para entrar em certas partes da cidade. E isso vale para todo mundo, desde concessionárias de serviços públicos, como a Light, a Telemar e outras, até ministros de Estado. Ninguém parece se envergonhar, mas eu me envergonho do episódio em que o ministro Gil e o ministro Berzoini foram informados de que só se permitiria o ingresso deles numa dessas áreas se abdicassem do pessoal de sua segurança pessoal e se submetessem à guarda da segurança dos senhores do território.


Por conseguinte, o nosso Estado tem território, sim, mas com essas e outras limitações. Deus me livre, tanto quanto os ministros, de contrariar ou desagradar nenhum senhor dessas áreas, porque algum deles pode se aborrecer comigo e creio que meu plano de saúde cancelaria meu contrato, se soubesse que eu havia cometido tal insensatez. “O Estado brasileiro tem soberania sobre todo o seu território?” - pergunta-se. “Médio”, respondemos, como o personagem de Chico Anísio. “Não”, responde um morador das áreas feudais, que não é maluco de desobedecer aos chefes locais, desde a observação de feriados decretados por eles ao voto nas eleições.


Bem, se sofremos essas restrições quanto ao território, pelo menos temos povo. Temos povo, sim, mas a riqueza está na mão de pouquíssimos, os serviços básicos que qualquer Estado tem por obrigação prestar, como saúde, educação e segurança, não são prestados, ou são prestados precariamente. E o povo não apita em nada. Paga impostos, escuta lero-leros e vai tocando a vida como pode, usando a renomada criatividade nacional e aguardando o Salvador da Pátria, pois persistimos, quer admitamos ou não, em esperar pela volta de d. Sebastião, que nos redimirá para sempre. Só que até mesmo o mais crédulo entre nós já não bota fé em d. Sebastião nenhum e vai se dando por satisfeito se garantir a xepa da semana. Desdentado, deseducado, enfermiço e submisso, não somos um povo que deva ser levado lá muito em conta.


Resta o governo. Temos governo? Sim, temos, principalmente na hora de custeá-lo. Mas, somente esta semana, já li um artigo acusando o presidente da República de descaramento e outro em que ele é chamado de “frouxo”. Eu nunca usei esses termos, mas não é chato ver que muita gente boa, com suas razões e todo o direito, acha necessário empregá-los? Quem governa realmente o nosso Estado? Há dúvidas. Portanto, elementar, como se diz que Sherlock Holmes dizia. O Brasil é um país sem Estado, a não ser na hora de pagar impostos. Pronto, matei a charada. Depois que a gente tiver um Estado mesmo, eles, quem lá sejam, vão ver.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 20/11/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 20/11/2005