A afluência dos que hoje acudiram ao chamado feito pela Casa de Machado de Assis para vossa posse, Senhor Roberto Campos, atesta o plano de influência que vossa lucidez suscitou nos brasileiros deste século. No momento em que entrais para a Academia Brasileira de Letras, faltam poucos meses para o término dos Novecentos. Fim-começo, começo-fim é hora de um exame de consciência. É também hora de mudança. Para as transformações por que passou o pensamento brasileiro nas últimas décadas muito contribuístes, e é delas que me parece mister fale o que vos saúda nesta recepção, senhor Acadêmico Roberto Campos. Chamo-vos agora assim para, como romancista e narrador, contar a vossa história.
Corria a segunda década do século quando nascestes, em pleno centro geográfico da América do Sul, na cidade de Cuiabá, de família que residira perto dali, no distrito de Livramento, terra dos índios Terena. Da região terena foi também Rondon, brasileiro por excelência. Aos cinco anos de vossa idade, perdestes o pai, o professor Waldomiro Campos. Vossa mãe, Honorina de Campos, alojou-se na fazenda de parentes em Mato Grosso, perto de Corumbá, onde fizestes o curso primário mas, não desejando viver como a parte pobre da família, D. Honorina pegou os dois filhos, vós e vossa irmã Catarina – que até hoje chamais de Catitinha – e fez uma longa viagem que durava mais de quinze dias, da fazenda no interior matogrossense até São Paulo. Eram três dias de carro de boi, cinco de vapor, uma semana de trenzinho Maria Fumaça, até Bauru, e, num trem melhor, daí até a cidade de São Paulo, onde D. Honorina estudou numa academia de corte e costura e, com essa profissão, emigrou para Guaxupé, no sul de Minas. Veja-se a época. Era 1927, Guaxupé estava no auge da cultura do café. No mesmo ano, saí eu de Ubá para Juiz de Fora, onde meu pai, que trabalhava na distribuição de filmes para cinemas do interior, procurava uma nova atividade em sua profissão de contador.
Veio a crise de 1929, que abalou a vida de todo o mundo, principalmente a da classe intermediária. Com a crise, o problema era: como estudar? Estudo tinha preço alto. D. Honorina fez o mesmo que minha mãe Áurea: colocou-vos no seminário. Seguindo uma tradição que vinha do Império, jovens brasileiros da classe média-média costumavam ser encaminhados pelos pais a seminários católicos, nem sempre em busca do sacerdócio, mais por causa da gratuidade dos estudos. Assim foi que vós, no sul de Minas Gerais, e este que vos recebe, em Campos, norte do Estado do Rio, nos vimos fazendo o Seminário Menor e tendo aulas diárias de Latim, ouvindo missas todas as manhãs e fazendo sermões para os fiéis da redondeza, o que pode ter-nos ajudado a criar um espírito de disciplina, difícil de se adquirir em colégios comuns. No seminário da Gameleira, em Belo Horizonte, estudamos juntos, vós, Teologia, e este que vos fala, Filosofia, num período em que parecíamos prestes a reconquistar tempos democráticos, mas, reclusos e com os minutos inteiramente tomados por estudos e orações, nem sempre atentávamos para o que ocorria no corpo do Brasil. De lá fostes, sem batina, para Batatais, onde conhecestes e namorastes Stella Ferrari Tambellini. Pouco depois, chegáveis ao Rio de Janeiro e aqui nos encontramos, como professores, no Colégio Santa Cecília e no curso Mattos. Fizestes então o concurso direto para o Itamaraty e lá estive, para assistir a vossa posse, num grupo que Osvaldo Aranha, então Ministro das Relações Exteriores, chamou de “os 18 do Forte”.
Já com um status diplomático resolvido, viajastes para Batatais, de onde voltastes casado com Stella, que vos acompanha desde então. Era em 1939.
Estávamos sob o domínio do Estado Novo, a guerra viria ampliar o tempo de Getúlio Vargas no poder, já que os Aliados precisavam de apoio fora dos campos do conflito, na Europa e na Ásia, mas isso não evitou que o fim da guerra derrubasse a ditadura Vargas. Foi o tempo de uma nova poesia no Brasil quando João Cabral de Melo Neto compôs seus primeiros poemas e a “Geração de 45” aguçava seus instrumentos. Guimarães Rosa escreveria os contos de Sagarana em 1940, só vindo a publicá-los em 1946. Enquanto isso, estáveis em Washington, como Terceiro Secretário, e ali vos formastes em economia para fazer, em seguida, cursos de pós-graduação na Universidade de Columbia. Com os estudos humanísticos de colégios católicos, especializações em Filosofia e Teologia, acrescentastes a esses conhecimentos um novo patamar cultural, erguendo assim um edifício que vos preparava para um trabalho que o Brasil exigiria de vós já no começo do segundo pós-guerra do século. Foi então a época das grandes reuniões que mudariam o mundo. Estivestes em Bretton Woods. Ali conhecestes Eugênio Gudin e Octavio Gouvêa de Bulhões, cujas idéias combinavam, nos pontos principais, com as vossas, na luta para encontrar os caminhos que levassem o Brasil a uma posição de prover o essencial para a grande maioria de seu povo. Pois então vossa filosofia de vida já se havia desenvolvido, na base de uma lucidez de pensamento rara no Brasil. Como definir vossa filosofia? Vejo-a como adepta do pensamento crítico.
Aponta-nos Karl Popper a necessidade – básica para quem pensa – de termos consciência das diferenças entre o pensamento crítico e o pensamento dogmático. O pensamento dogmático – dono da verdade e do futuro – já causou perseguições, torturas, assassínios. Ao contrário do estímulo à violência, o pensamento crítico está mais afeito às duras tarefas de esclarecer, mostrar defeitos, melhorar, enfim mudar sem matar. Em casos concretos, mostra Popper “a atitude dogmática” de pensadores e líderes de nosso tempo, inclusive as de Marx, Freud e Adler, diversas da posição aberta de “experimentos cruciais” de Einstein, de quem cita a frase: “Não pode haver melhor destino para uma teoria física do que abrir caminho para uma teoria mais simples, na qual sobreviva, como caso-limite.”
Daí o descobrirmos que só o pensamento crítico aprende. O dogmático recusa-se a aprender e repele o novo, principalmente se nele vê perigo para sua inamovível postura. Essa recusa vai até o momento em que a realidade derruba o dogma, tal como às vezes derruba muros. Ao invés de implantar slogans no pensamento das pessoas, o pensamento crítico, porque aprende, também ensina, e o ensino propõe, não impõe, mudanças de rumos, idéias e ações.
Estará o Brasil, no limiar do ano 2000, suficientemente provido desse necessário ingrediente social e pessoal que é o pensamento livre? Se eu tivesse de escolher alguém que haja trabalhado, incessantemente, com lucidez e alegria, inteligência e imaginação, para convencer e propor a seus patrícios – isto é, os que têm a mesma pátria – de que fora da liberdade não há saída – e de que o pensamento livre é a base da liberdade – eu optaria pelo vosso nome, Acadêmico Roberto Campos. Em artigos e discursos, aulas e conferências, livros e declarações muitas, em conversas tanto como em ações, tende-vos empenhado em exorcizar os preconceitos de uma cultura que tem o hábito de se entusiasmar pelo discurso vazio.
Ninguém tentou mudar o discurso vazio do país, mais do que vós, numa atividade constante, empreendida sob a égide da mudança.
Voltando à minha narração, acabada a guerra e terminados os planos destinados a pôr de novo o mundo em bases seguras, inclusive o Plano Marshall, que salvou a Europa, passastes a integrar a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que viria a publicar 17 preciosos volumes de análise, avaliação e planejamento da economia brasileira. Esse trabalho levou-nos à criação do BNDE, de que fostes sucessivamente superintendente e presidente. O relatório da Comissão Mista serviria também de base ao Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que elaborastes juntamente com Lucas Lopes. Não havíeis chegado ainda então aos quarenta anos, e vosso nome já se tornara o símbolo de uma linha de ação. Tornara-se também um símbolo de inteligência autodepreciativa, com uma boa dose de humildade, virtude que deve ter-vos sido inculcada nos tempos de seminário e que nenhum mal faz aos que a mantêm e cultivam. Vossos artigos e livros, tanto quanto vossa atuação em postos de direção, revelam que a inteligência é, em vós, aguçada por uma dose justa de imaginação, misturada a uma visão concentrada de problemas objetivos, e sabemos que sem imaginação muitas qualidades de análise e previsão deixam de funcionar.
Finda a era Juscelino Kubitschek, fostes enviado por Jânio Quadros para negociar a dívida externa brasileira na Europa e, logo em seguida, assumistes o posto de Embaixador do Brasil em Washington, onde havíeis, no começo dos anos 40, iniciado vossa vida diplomática no exterior. Com as mudanças de 1964, Castelo Branco assumiu a Presidência da República e vos convocou para organizar um ministério novo na administração brasileira, o do Planejamento. Nele criastes o Banco Central, o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), o Banco da Habitação, a Caderneta de Poupança, elaborastes o Estatuto da Terra e reduzistes, em menos de três anos, a inflação brasileira de 100% a 25% ao ano. Governo provocado por um movimento de revolta, e não por eleição popular, como haviam sido os cinco anteriores, de Gaspar Dutra a João Goulart, teve dificuldades de relacionamento com políticos ligados ao espírito democrático anterior, e optou pelo sistema de cassações dos direitos políticos de muitos deles. Foi então que vos recusastes a assinar o documento de cassação de Juscelino Kubitschek, com quem havíeis trabalhado na elaboração e redação do Plano de Metas e na condução do BNDE. Dissestes então a Castelo Branco: “Não posso assinar. Se o Presidente faz questão de unanimidade, entrego em suas mãos o meu cargo de Ministro do Planejamento.” Ao que o Presidente Castelo Branco retrucou: “Vote com a sua consciência, Roberto. E, por favor, continue ministro.” Entendo ter sido, aquele, um momento de grandeza nos difíceis dias que todos enfrentávamos.
Foi então que também colaborastes, com vossa autoridade e assinatura, para a concessão, pelo Presidente Castelo Branco, do terreno adjunto ao Petit Trianon, ato que permitiu a expansão das atividades da Academia Brasileira de Letras.
O perigo de sociedade fechada nos cercava por todos os lados, fosse o da situação, fosse o da oposição, violenta ou moderada, ao governo forte da época. O livro de Karl R. Popper, A sociedade aberta e seus inimigos, teria servido de alerta, já que, tendo escrito uma história do historicismo, de Platão a Hegel e Marx, Popper se colocava na posição de que a sociedade fechada era essencialmente inimiga da liberdade e partidária de um controle, quase sempre absoluto, do governo sobre a sociedade inteira.
Quase sozinho, lutastes pela sociedade aberta e ficastes por isso marcado, como se crime fosse desejar a liberdade, primeiro item do tríptico da Revolução Francesa, básico para que se chegue ao segundo, igualdade, e ao terceiro, fraternidade. Depois de sete anos, sete meses e sete dias como embaixador do Brasil em Londres (não creio haja a menor explicação racional para esse número) ingressastes em nova fase de vossa vida: a de congressista. Passastes dezesseis anos no Parlamento, os primeiros oito como senador por Mato Grosso e as duas legislaturas seguintes como deputado federal pelo Rio de Janeiro. Em vosso discurso de estréia no Senado Federal fizestes uma análise precisa da situação brasileira, com toques de humor e de ironia. Era o ano de 1983, no último período do regime iniciado em 1964, e vossas palavras começaram com a citação de excertos de antigos discursos, os de Cunha Matos e Evaristo da Veiga, em acalorado debate sobre a “Moratória”, na Câmara dos Deputados da Regência Trina Permanente, no Rio de Janeiro, em 30 de junho de 1831, precisamente 152 anos antes do discurso que pronunciáveis naquele instante. A frase antiga dizia: “A nossa situação atual é crítica. Não digo que não possamos sair da má posição em que estamos; podemos, tendo economia e juízo; mas é um fato que isto não pode acontecer senão com o tempo.” As mesmas palavras podiam ser repetidas em 1983, ou agora. Usastes também as palavras do filósofo francês: “Nada suponho; nada proponho; exponho.” Expusestes as vossas idéias sobre a situação brasileira e, relendo-as agora, reconheço que são ainda atuais neste fim de milênio.
Esse vasto panorama de vossa vida se completaria com a mais inesperada tarefa em que vos empenhastes. Trata-se de uma parte de vossa atividade que foi tranqüilamente patrulhada, não se devia falar muito no assunto, como se não tivesse acontecido. Saíram, é verdade, algumas notícias na mídia, mas poucas e incompletas. Na luta contra o jugo do dogmatismo, Deng se utilizou de chineses ligados ao mundo ocidental a fim de com eles construir uma ponte que ajudasse o país a vencer as crises dos anos 60 e parte dos 70. Assim foi que o empresário e executivo chinês, diretor da China Investment and Trade International Corporation, Sr. Rong Yren, vos convidou para várias visitas à China, a fim de analisar e debater medidas que se integrassem nos planos de Deng Xiaoping. Era uma política de “portas abertas”, que possibilitasse o “salto adiante” e tinha por base um “Programa das Quatro Modernizações” (da agricultura, indústria, tecnologia e defesa). O slogan proposto pelo grupo de Deng Xiaoping era “a cada um de acordo com o seu trabalho” e visava chegasse o país a uma “prosperidade comum”. Com o tempo, a filosofia de Xiaoping pregou a adoção de uma “abertura internacional”, inclusive através da contribuição de economistas e técnicos de várias partes do mundo. Nas vossas viagens à China conhecestes o socialismo à moda chinesa que vós classificastes de “o mais excitante experimento de engenharia social de nosso tempo”. Assim explicastes, em vosso livro Ensaios imprudentes, o revisionismo de Deng: “consiste na substituição do dogmatismo marxista por um pragmatismo seletivo, que admite inclusive o uso de certos ‘instrumentos’ capitalistas no interesse da modernização chinesa”.
A par desse esforço levantou-se na China uma luta em prol da educação, problema que também nos aflige. Ocorreu há não muito, na pequena cidade alemã de Tombach, perto da fronteira com a França, no Estado de Bade-Würtemberg, uma reunião quase secreta, de executivos e intelectuais europeus, para discutir a violência do desafio científico, assunto que também vos tem preocupado, Senhor Roberto Campos, em artigos e conferências. Essa reunião deu o mote: “As máquinas são decisivas, mas não tanto. Importantes são homens e mulheres educados ao mais alto nível.” Um país com tendência para o surrealismo precisa de lutadores como vós, em todas as frentes, precisa da tranqüilidade com que aceitais a missão de sugerir a adoção do pensamento crítico a uma sociedade que sofre a tentação do pensamento errático.
Há que destacar a característica talvez maior de vosso talento: a visão geral das coisas. Há décadas vínheis dizendo o que poderia acontecer aqui e ali, caso uma situação dada continuasse a se desenvolver numa linha determinada. Agistes como profeta em prever o que aconteceria, ainda antes do fim do milênio, em diversas partes do mundo. Tem-se a impressão de que dispondes de uma visão da realidade e dos possíveis caminhos que sairiam de um tempo daqui e de agora. Sois avesso ao “wishful thinking”, expressão que se poderia traduzir por “pensamento desejoso”, isto é, de se acreditar que acontecerá exatamente aquilo que está no desejo de quem pensa. Daí, a clareza de vossos escritos, que vem da claritas de Santo Tomás de Aquino, que foi o vosso chão inicial.
Por causa desse chão, o aprendizado da Economia, posterior a seus tempos de seminário católico, pousou em terreno lavrado pelo exercício da Lógica e pelo vezo do pensamento aberto. No seminário começastes a escrever, na certeza de que seríeis principalmente escritor, como o sois agora. Lembro-me de, em 1935, me haverdes dado a ler poema vosso, creio que chamado “O amor materno”, quando opinei: “É o seu melhor” (eu vos tratava na terceira pessoa e não com o “vós” desta saudação). Respondestes: “O melhor e o último.” Explicastes: “Em poesia, ou gênio ou nada. E eu já descobri que em poesia eu não sou gênio.” Sabemos hoje que sois um mestre da prosa. Tendo percorrido todos os estilos de ensaio e chegado a um primoroso relato autobiográfico, conquistastes um estilo próprio, de severo dominador da palavra. Em Guia para os perplexos, revelastes vossa admiração por Maimônides, o filósofo e médico judeu que morou no Cairo no século XII da Era Cristã. Resolvestes apresentá-lo como o racional por excelência ao tentar imprimir racionalidade à teologia e à ética judaicas. Queria libertar o pensamento judaico do irracionalismo da Cabala. Comentastes: “Maimônides desconfiava do entusiasmo e pregava a moderação. Acreditava que o progresso viria através de um lento e despretensioso avanço da razão.”
Versado em Santo Tomás de Aquino, vistes no filósofo judeu um companheiro do santo católico, no seu apego à razão. Dizia Maimônides que a construção da boa sociedade pressupõe não fórmulas messiânicas, mas simplesmente o império da lei. Transcrevestes: “A lei como um todo objetiva duas coisas – o bem-estar da alma e o bem-estar do corpo. O primeiro consiste no desenvolvimento do intelecto humano; o segundo, no melhoramento das relações políticas dos homens entre si.”
Admirais todos os autores que aceitam o primado irreversível da razão. Entre eles o que mais alto sobe na vossa admiração é Friedrich von Hayek, “o homem de idéias que mais bravamente lutou, ao longo de duas gerações atormentadas, pela liberdade do indivíduo contra todas as modas totalitárias, do soviético ao nazismo”.
Repito que, em vossos livros, vindes mostrando um estilo que vos coloca na primeira linha da ensaística brasileira. Todos eles – Antologia do bom senso, Guia para os perplexos, Ensaios de história econômica e sociologia, O século esquisito, Ensaios imprudentes, Reflexões do crepúsculo, A técnica e o riso, Do outro lado da cerca, Ensaios contra a maré, O mundo que vejo e não desejo, Na virada do milênio e “last but not least” Lanterna na popa – impuseram um estilo novo às análises sociais e econômicas escritas no Brasil, ao mesmo tempo em que revelavam uma excelência literária que, no caso de vossa autobiografia Lanterna na popa, ganhou o Prêmio Senador José Ermírio de Morais, concedido por esta Academia que ora vos recebe.
Ao longo de todos esses livros há uma pregação, numa série de análises claras e lúcidas sobre o nosso tempo, sua gente e suas opções. De que maneira classificar vosso estilo? Talvez num misto de Samuel Pepys e Montaigne. De Pepys tendes o gosto pela precisão da palavra e pela curteza das afirmações, contidas numa técnica literária cujas descrições, mesmo as aparentemente não-opinativas, na verdade insuflam e propõem opiniões. Opinativo sois, pois, com a liberdade de vosso pensamento, poucos são os que revelam no Brasil tanta coragem de pensar a realidade e dizer, bem e com propriedade, o que pensam.
De Montaigne tendes o espírito humanístico e a sabedoria de concentrar, num ensaio curto, um universo completo de pensamento. A isso, acrescentais uma ironia que assume diversas capas, a ironia direta, a leve, a que se exprime por jeux de mots, a que se vale de largas referências a uma cultura ecumênica.
Vosso lado polêmico se assemelha ao de Chesterton, que parece ter, com a realidade, um pacto, com palavras que se juntam para realçar paradoxos e convencer através de duplos sentidos.
O uso que fazeis da palavra é de extrema sabedoria. Há uma perfeita adequação entre o pensamento que defendeis e o modo como o colocais em vocábulos. Exatamente porque o mais difícil dos estilos é o estilo argumentativo, o que usa elementos da Lógica para dar transparência a um argumento, foi que o aprendizado humanístico do seminário se transformou, em vossa linguagem de escritor, numa arma tão poderosa. Junto com a clareza tomista, vós vos adestrastes na direiteza e simplicidade de Descartes. Durante muitos anos, estivestes presente a debates, acordos, contratos, pactos, na tese de que nenhuma sociedade pode sobreviver sem um contrato, e nem foi por outro motivo que Rousseau acabou por se tornar o homem-chave de todo um movimento que é hoje tão forte como no conturbado final do Ancien Régime. Nesses contatos e contratos, fostes muitas vezes de extrema severidade, devido à segunda das duas palavras que vos definem: a lucidez e a coerência. A elas eu juntaria outra: a equanimidade. Se tendes o hábito de escolher a Lógica por base, sabeis também que a realidade pode mostrar outra – e oculta – lógica, surgiu Pascal para realçar a importância de esprit de finesse em contraposição ao esprit de géométrie, ou talvez não em oposição mas em companhia de. Porque revelastes finesse em vossos escritos, ao mesmo tempo em que dizeis, neles e nos debates verbais, exatamente o que julgais certo, sem fantasias nem sombras. Vós mesmo vos definis como um “pregador de idéias”, imbuído talvez demais da “índole da controvérsia” e sem grande “capacidade de acomodação”. Sendo, porém, a controvérsia um elemento eminentemente democratizante, isto vos coloca num spectrum político de invejável tolerância.
A vossa obra-prima, Lanterna na popa, jogou no pensamento brasileiro todos os conflitos e perplexidades da nossa história neste século. São páginas de memórias, são análises de gentes e acontecimentos, de atos e omissões, de tempo perdido e às vezes reconquistado. É livro que recupera um período agitado da vida brasileira (quais os que não o foram?), mas que, por sua proximidade e por havermos muitos de nós passado por ele, com maior ou menor consciência do que estivesse acontecendo, sentimo-lo como se fosse a nossa própria história. Falando/escrevendo por vós, falais/escreveis também por nós, e este é o fascínio de vossa narração. De rara beleza são as páginas sobre vossa infância em Mato Grosso, com as descrições da Nhecolândia, suas figuras desenhadas contra o fundo estranho e belo do Pantanal. Dizeis: “Na minha ótica de primeira infância, o Pantanal me parecia mais perigoso do que belo.” Havia as cobras (a jararaca, a cascavel e a sucuri), as onças (parda e pintada), as piranhas. O pacu era o peixe democrático, fácil de pescar, as bebidas eram o guaraná ralado e o chimarrão. Afirmais que só viestes a perceber a beleza do Pantanal trinta anos mais tarde – a bela alternância das salinas, lagoas salobras, com praias brancas, as lagoas doces, com vegetação nas margens, e a belíssima revoada das garças, dos tuiuiús e baguaris. Vosso primo e companheiro de quarto no começo de vossa vivência carioca, Manoel de Barros – “o único poeta da família”, dizeis – que vivia em fazenda próxima daquela em que estáveis, assim verseja sobre o vosso ambiente infantil: “me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios...”
Ao longo das 1.417 páginas de vossas memórias, louve-se a vossa narrativa, que é primorosamente executada. Os personagens – Oswaldo Aranha, Octácio Gouvêa de Bulhões, Eugênio Gudin, Castelo Branco, Margareth Thatcher, John Kennedy, Lord Keynes, Friedrich von Hayet, brasileiros, ingleses, americanos, árabes, indianos, chineses, gente de um sem-número de países, a todos mostrais com a nitidez do bom narrador. Podeis estar certo, Acadêmico Roberto Campos, que Lanterna na popa ficará na literatura brasileira – chamemo-lo de literatura porque literatura é – como um de seus livros decisivos, cuja leitura se tornará obrigatória para o entendimento deste país e deste tempo.
Em vossas múltiplas atividades, demonstrastes ser esta coisa difícil em qualquer época ou lugar: um estadista. Falando, escrevendo, agindo, pensando, dialogando com os mais diversos setores da inteligência de nosso tempo, tendes sido de inteira coerência, de fidelidade a vossas idéias, na linha do lema de Shakespeare: “Be faithful to thyself.” O ser fiel a si mesmo pode, naturalmente, incomodar uma quantidade ponderável de pessoas e de grupos. Daí talvez a explicação das turbulências que vos têm cercado nos últimos sessenta anos, a partir do momento em que, havendo ingressado no Itamaraty, passastes a ter uma presença inarredável nos assuntos deste século.
Senhor acadêmico Roberto Campos, a Academia Brasileira de Letras vos recebe de braços abertos. Há algum tempo já que ela vos esperava. Sabia a Casa de Machado de Assis que vossa participação em nossas atividades daria realce à luta que empreendemos em favor da cultura brasileira e em defesa do idioma português, que nos une e nos distingue.
Aqui chegais agora, e é como se um destino, previsto e esperado, se cumprisse. Neste momento de alegria para vós e para nós, presto minha homenagem a Stella de Oliveira Campos (née Ferrari Tambellini), com quem estais casado há sessenta anos, aos filhos do casal – Sandra, Roberto Campos Jr. e Luís Fernando – e a D. Catarina, vossa irmã.
Acima de tudo, senhor Acadêmico, endereço minha homenagem à memória de Honorina de Campos que, viúva pobre, educou seus dois filhos, a partir dos cinco anos do menino e dos três da menina, aprendendo e em seguida exercendo a profissão de costureira, para educar Roberto e Catarina. Honorina de Campos morreu aos 97 anos de idade. Quando estava com 92, conversando com o filho disse: “Estou com muito medo.” Roberto quis saber de quê. Resposta: “Tenho medo de não morrer jamais.” Pois na verdade ela não morreu. Criou e educou seu filho para servir ao Brasil, com a inteligência que, sem ela, poderia não se ter desenvolvido.
Muito obrigado, D. Honorina.
Muito obrigado a todos.