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Discurso de posse

Discurso de recepção do acadêmico Antonio Olinto
Discurso de posse do acadêmico Roberto Campos

DISCURSO DE RECEPÇÃO DO ACADÊMICO ANTONIO OLINTO AO ACADÊMICO ROBERTO CAMPOS

A afluência dos que hoje acudiram ao chamado feito pela Casa de Machado de Assis para vossa posse, Senhor Roberto Campos, atesta o plano de influência que vossa lucidez suscitou nos brasileiros deste século. No momento em que entrais para a Academia Brasileira de Letras, faltam poucos meses para o término dos Novecentos. Fim-começo, começo-fim é hora de um exame de consciência. É também hora de mudança. Para as transformações por que passou o pensamento brasileiro nas últimas décadas muito contribuistes, e é delas que me parece mister fale o que vos saúda nesta recepção, Senhor acadêmico Roberto Campos. Chamo-vos agora assim para, como romancista e narrador, contar a vossa história.

Corria a segunda década do século quando nascestes, em pleno centro geográfico da América do Sul, na cidade de Cuiabá, de família que residira perto dali, no distrito de Livramento, terra dos índios Terena. Da região terena foi também Rondon, brasileiro por excelência. Aos cinco anos de vossa idade, perdestes o pai, o professor Waldomiro Campos. Vossa mãe, Honorina de Campos, alojou-se na fazenda de parentes em Mato Grosso, perto de Corumbá, onde fizestes o curso primário mas, não desejando viver como a parte pobre da família, D. Honorina pegou os dois filhos, vós e vossa irmã Catarina - que até hoje chamais de Catitinha - e fez uma longa viagem que durava mais de quinze dias, da fazenda no interior matogrossense até São Paulo. Eram três dias de carro de boi, cinco de vapor, uma semana de trenzinho Maria Fumaça, até Bauru, e, num trem melhor, daí até a cidade de São Paulo, onde D. Honorina estudou numa academia de corte e costura e, com essa profissão, emigrou para Guaxupé, no Sul de Minas. Veja-se a época. Era 1927, Guaxupé estava no auge da cultura do café. No mesmo ano, saí eu de Ubá para Juiz de Fora, onde meu pai, que trabalhava na distribuição de filmes para cinemas do interior, procurava uma nova atividade em sua profissão de contador.

Veio a crise de 1929, que abalou a vida de todo o mundo, principalmente a da classe intermediária. Com a crise, o problema era: como estudar? Estudo tinha preço alto. D. Honorina fez o mesmo que minha mãe Áurea: colocou-vos no seminário. Seguindo uma tradição que vinha do Império, jovens brasileiros da classe média-média costumavam ser encaminhados pelos pais a seminários católicos, nem sempre em busca do sacerdócio, mais por causa da gratuidade dos estudos. Assim foi que vós, no Sul de Minas Gerais, e este que vos recebe, em Campos, Norte do Estado do Rio, nos vimos fazendo o Seminário Menor e tendo aulas diárias de Latim, ouvindo missas todas as manhãs e fazendo sermões para os fiéis da redondeza, o que pode ter-nos ajudado a criar um espírito de disciplina, difícil de se adquirir em colégios comuns. No seminário da Gameleira, em Belo Horizonte, estudamos juntos, vós, Teologia, e este que vos fala, Filosofia, num período em que parecíamos prestes a reconquistar tempos democráticos, mas, reclusos e com os minutos inteiramente tomados por estudos e orações, nem sempre atentávamos para o que ocorria no corpo do Brasil. De lá fostes, sem batina, para Batatais, onde conhecestes e namorastes Stella Ferrari Tambellini. Pouco depois, chegáveis ao Rio de Janeiro e aqui nos encontramos, como professores, no Colégio Santa Cecília e no curso Mattos. Fizestes então o concurso direto para o Itamaraty e lá estive, para assistir a vossa posse, num grupo que Oswaldo Aranha, então Ministro das Relações Exteriores, chamou de "os 18 do Forte".

Já com um status diplomático resolvido, viajastes para Batatais, de onde voltastes casado com Stella, que vos acompanha desde então. Era em 1939.

Estávamos sob o domínio do Estado Novo, a guerra viria ampliar o tempo de Getúlio Vargas no poder, já que os Aliados precisavam de apoio fora dos campos do conflito, na Europa e na Ásia, mas isso não evitou que o fim da guerra derrubasse a ditadura Vargas. Foi o tempo de uma nova poesia no Brasil quando João Cabral de Melo Neto compôs seus primeiros poemas e a "Geração de 45" aguçava seus instrumentos. Guimarães Rosa escreveria os contos de "Sagarana" em 1940, só vindo a publicá-los em 1946. Enquanto isso, estáveis em Washington, como Terceiro Secretário, e ali vos formastes em economia para fazer, em seguida, cursos de pós-graduação na Universidade de Columbia. Com os estudos humanísticos de colégios católicos, especializações em Filosofia e Teologia, acrescentastes a esses conhecimentos um novo patamar cultural, erguendo assim um edifício que vos preparava para um trabalho que o Brasil exigiria de vós já no começo do segundo pós-guerra do século. Foi então a época das grandes reuniões que mudariam o mundo. Estivestes em Bretton Woods. Ali conhecestes Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões, cujas idéias combinavam, nos pontos principais, com as vossas, na luta para encontrar os caminhos que levassem o Brasil a uma posição de prover o essencial para a grande maioria de seu povo. Pois então vossa filosofia de vida já se havia desenvolvido, na base de uma lucidez de pensamento rara no Brasil. Como definir vossa filosofia? Vejo-a como adepta do pensamento crítico.

Aponta-nos Karl Popper a necessidade - básica para quem pensa - de termos consciência das diferenças entre o pensamento crítico e o pensamento dogmático. O pensamento dogmático - dono da verdade e do futuro - já causou perseguições, torturas, assassínios. Ao contrário do estímulo à violência, o pensamento crítico está mais afeito às duras tarefas de esclarecer, mostrar defeitos, melhorar, enfim mudar sem matar. Em casos concretos, mostra Popper "a atitude dogmática" de pensadores e líderes de nosso tempo, inclusive as de Marx, Freud e Adler, diversas da posição aberta de "experimentos cruciais" de Einstein, de quem cita a frase: "Não pode haver melhor destino para uma teoria física do que abrir caminho para uma teoria mais simples, na qual sobreviva, como caso-limite".

Daí o descobrirmos que só o pensamento crítico aprende. O dogmático recusa-se a aprender e repele o novo, principalmente se nele vê perigo para sua inamovível postura. Essa recusa vai até o momento em que a realidade derruba o dogma, tal como às vezes derruba muros. Ao invés de implantar slogans no pensamento das pessoas, o pensamento crítico, porque aprende, também ensina, e o ensino propõe, não impõe, mudanças de rumos, idéias e ações. Estará o Brasil, no limiar do ano 2000, suficientemente provido desse necessário ingrediente social e pessoal que é o pensamento livre? Se eu tivesse de escolher alguém que haja trabalhado, incessantemente, com lucidez e alegria, inteligência e imaginação, para convencer e propor a seus patrícios - isto é, os que têm a mesma pátria - de que fora da liberdade não há saída - e de que o pensamento livre é a base da liberdade - eu optaria pelo vosso nome, acadêmico Roberto Campos. Em artigos e discursos, aulas e conferências, livros e declarações muitas, em conversas tanto como em ações, tende-vos empenhado em exorcizar os preconceitos de uma cultura que tem o hábito de se entusiasmar pelo discurso vazio. Ninguém tentou mudar o discurso vazio do país, mais do que vós, numa atividade constante, empreendida sob a égide da mudança. Voltando à minha narração, acabada a guerra e terminados os planos destinados a por de novo o mundo em bases seguras, inclusive o Plano Marshall, que salvou a Europa, passastes a integrar a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos que viria a publicar 17 preciosos volumes de análise, avaliação e planejamento da economia brasileira. Esse trabalho levou-nos à criação do BNDE, de que fostes sucessivamente superintendente e presidente. O relatório da Comissão Mista serviria também de base ao Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que elaborastes juntamente com Lucas Lopes. Não havíeis chegado ainda então aos 40 anos, e vosso nome já se tornara o símbolo de uma linha de ação. Tornara-se também um símbolo de inteligência autodepreciativa, com uma boa dose de humildade, virtude que deve ter-vos sido inculcada nos tempos de seminário e que nenhum mal faz aos que a mantêm e cultivam. Vossos artigos e livros, tanto quanto vossa atuação em postos de direção, revelam que a inteligência é, em vós, aguçada por uma dose justa de imaginação, misturada a uma visão concentrada de problemas objetivos, e sabemos que sem imaginação muitas qualidades de análise e previsão deixam de funcionar.

Finda a era Juscelino Kubitschek, fostes enviado por Jânio Quadros para negociar a dívida externa brasileira na Europa e, logo em seguida, assumistes o posto de Embaixador do Brasil em Washington, onde havíeis, no começo dos anos 40, iniciado vossa vida diplomática no exterior. Com as mudanças de 1964, Castelo Branco assumiu a Presidência da República e vos convocou para organizar um ministério novo na administração brasileira, o do Planejamento. Nele criastes o Banco Central, o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), o Banco da Habitação, a Caderneta de Poupança, elaborastes o Estatuto da Terra e reduzistes, em menos de três anos, a inflação brasileira de 100% a 25% ao ano. Governo provocado por um movimento de revolta, e não por eleição popular, como haviam sido os cinco anteriores, de Gaspar Dutra a João Goulart, teve dificuldades de relacionamento com políticos ligados ao espírito democrático anterior, e optou pelo sistema de cassações dos direitos políticos de muitos deles. Foi então que vos recusastes a assinar o documento de cassação de Juscelino Kubitschek, com quem havíeis trabalhado na elaboração e redação do Plano de Metas e na condução do BNDE. Dissestes então a Castelo Branco: "Não posso assinar. Se o Presidente faz questão de unanimidade, entrego em suas mãos o meu cargo de Ministro do Planejamento." Ao que o Presidente Castelo Branco retrucou: "Vote com a sua consciência, Roberto. E por favor continue ministro." Entendo ter sido, aquele, um momento de grandeza nos difíceis dias que todos enfrentávamos.

Foi então que também colaborastes, com vossa autoridade e assinatura, para a concessão, pelo Presidente Castelo Branco, do terreno adjunto ao Petit Trianon, ato que permitiu a expansão das atividades da Academia Brasileira de Letras.

O perigo de sociedade fechada nos cercava por todos os lados, fosse o da situação, fosse o da oposição, violenta ou moderada, ao governo forte da época. O livro de Karl R. Popper, "A sociedade aberta e seus inimigos", teria servido de alerta, já que, tendo escrito uma história do historicismo, de Platão a Hegel e Marx, Popper se colocava na posição de que a sociedade fechada era essencialmente inimiga da liberdade e partidária de um controle, quase sempre absoluto, do governo sobre a sociedade inteira.

Quase sozinho, lutastes pela sociedade aberta e ficastes por isso marcado, como se crime fosse desejar a liberdade, primeiro item do tríptico da Revolução Francesa, básico para que se chegue ao segundo, igualdade, e ao terceiro, fraternidade. Depois de sete anos, sete meses e sete dias como embaixador do Brasil em Londres (não creio haja a menor explicação racional para esse número) ingressastes em nova fase de vossa vida: a de congressista. Passastes 16 anos no Parlamento, os primeiros oito como Senador por Mato Grosso e as duas legislaturas seguintes como deputado federal pelo Rio de Janeiro. Em vosso discurso de estréia no Senado Federal fizestes uma análise precisa da situação brasileira, com toques de humor e de ironia. Era o ano de 1983, no último período do regime iniciado em 1964, e vossas palavras começaram com a citação de excertos de antigos discursos, os de Cunha Matos e Evaristo da Veiga, em acalorado debate sobre a "Moratória", na Câmara dos Deputados da Regência Trina Permanente, no Rio de Janeiro, em 30 de junho de 1831, precisamente 152 anos antes do discurso que pronunciáveis naquele instante. A frase antiga dizia: "A nossa situação atual é crítica. Não digo que não possamos sair da má posição em que estamos; podemos, tendo economia e juízo; mas é um fato que isto não pode acontecer senão com o tempo." As mesmas palavras podiam ser repetidas em 1983, ou agora. Usastes também as palavras do filósofo francês: "Nada suponho; nada proponho; exponho". Expusestes as vossas idéias sobre a situação brasileira e, relendo-as agora, reconheço que são ainda atuais neste fim de milênio.

Esse vasto panorama de vossa vida se completaria com a mais inesperada tarefa em que vos empenhastes. Trata-se de uma parte de vossa atividade que foi tranqüilamente patrulhada, não se devia falar muito no assunto, como se não tivesse acontecido. Saíram, é verdade, algumas notícias na mídia, mas poucas e incompletas. Na luta contra o jugo do dogmatismo, Deng se utilizou de chineses ligados ao mundo ocidental a fim de com eles construir uma ponte que ajudasse o país a vencer as crises dos anos 60 e parte dos 70. Assim foi que o empresário e executivo chinês, diretor da China Investment and Trade International Corporation, Sr. Rong Yren, vos convidou para várias visitas à China, a fim de analisar e debater medidas que se integrassem nos planos de Deng Xiaoping. Era uma política de "portas abertas", que possibilitasse o "salto adiante" e tinha por base um "Programa das Quatro Modernizações" (da agricultura, indústria, tecnologia e defesa). O slogan proposto pelo grupo de Deng Xiaoping era "a cada um de acordo com o seu trabalho" e visava chegasse o país a uma "prosperidade comum". Com o tempo, a filosofia de Xiaoping pregou a adoção de uma "abertura internacional", inclusive através da contribuição de economistas e técnicos de várias partes do mundo. Nas vossas viagens à China conhecestes o socialismo à moda chinesa que vós classificastes de "o mais excitante experimento de engenharia social de nosso tempo". Assim explicastes, em vosso livro "Ensaios imprudentes", o revisionismo de Deng: "consiste na substituição do dogmatismo marxista por um pragmatismo seletivo, que admite inclusive o uso de certos "instrumentos" capitalistas no interesse da modernização chinesa."

A par desse esforço levantou-se na China uma luta em prol da educação, problema que também nos aflige. Ocorreu há não muito, na pequena cidade alemã de Tombach, perto da fronteira com a França, no Estado de Bade-Würtemberg, uma reunião quase secreta, de executivos e intelectuais europeus, para discutir a violência do desafio científico, assunto que também vos tem preocupado, Senhor Roberto Campos, em artigos e conferências. Essa reunião deu o mote: "As máquinas são decisivas, mas não tanto. Importantes são homens e mulheres educados ao mais alto nível". Um país com tendência para o surrealismo, precisa de lutadores como vós, em todas as frentes, precisa da tranqüilidade com que aceitais a missão de sugerir a adoção do pensamento crítico a uma sociedade que sofre a tentação do pensamento errático.

Há que destacar a característica talvez maior de vosso talento: a visão geral das coisas. Há décadas vínheis dizendo o que poderia acontecer aqui e ali, caso uma situação dada continuasse a se desenvolver numa linha determinada. Agistes como profeta em prever o que aconteceria, ainda antes do fim do milênio, em diversas partes do mundo. Tem-se a impressão de que dispondes de uma visão da realidade e dos possíveis caminhos que sairiam de um tempo daqui e de agora. Sois avesso ao wishful thinking, expressão que se poderia traduzir por "pensamento desejoso", isto é, de se acreditar que acontecerá exatamente aquilo que está no desejo de quem pensa. Daí, a clareza de vossos escritos, que vem da "claritas" de Santo Tomás de Aquino, que foi o vosso chão inicial. Por causa desse chão, o aprendizado de economia, posterior e seus tempos de seminário católico, pousou em terreno lavrado pelo exercício da Lógica e pelo vezo do pensamento aberto. No seminário começastes a escrever, na certeza de que seríeis principalmente escritor, como o sois agora. Lembro-me de, em 1935, me haverdes dado a ler poema vosso, creio que chamado "O amor materno", quando opinei: "É o seu melhor" (eu vos tratava na terceira pessoa e não com o "vós" desta saudação). Respondestes: "O melhor e o último". Explicastes: "Em poesia, ou gênio ou nada. E eu já descobri que em poesia eu não sou gênio". Sabemos hoje que sois um mestre da prosa. Tendo percorrido todos os estilos de ensaio e chegado a um primoroso relato autobiográfico, conquistastes um estilo próprio, de severo dominador da palavra. Em "Guia para os perplexos", revelastes vossa admiração por Maimônedes, o filósofo e médico judeu que morou no Cairo no Século XII da era cristã. Resolvestes apresentá-lo como o racional por excelência ao tentar imprimir racionalidade à teologia e à ética judaicas. Queria libertar o pensamento judaico do irracionalismo da Cabala. Comentastes: "Maimônedes desconfiava do entusiasmo e pregava a moderação. Acreditava que o progresso viria através de um lento e despretencioso avanço da razão".

Versado em Santo Tomás de Aquino, vistes no filósofo judeu um companheiro do santo católico, no seu apego à razão. Dizia Maimônedes que a construção da boa sociedade pressupõe não fórmulas messiânicas, mas simplesmente o império da lei. Transcrevestes: "A lei como um todo objetiva duas coisas - o bem-estar da alma e o bem-estar do corpo. O primeiro consiste no desenvolvimento do intelecto humano; o segundo, no melhoramento das relações políticas dos homens entre si". Admirais todos os autores que aceitam o primado irreversível da razão. Entre eles o que mais alto sobe na vossa admiração é Friedrich von Hayek, "o homem de idéias que mais bravamente lutou, ao longo de duas gerações atormentadas, pela liberdade do indivíduo contra todas modas totalitárias, do soviético ao nazismo." Repito que, em vossos livros, vindes mostrando um estilo que vos coloca na primeira linha da ensaística brasileira. Todos eles - "Antologia do bom senso", "Guia para os perplexos", "Ensaios de história Econômica e Sociologia", "O Século esquisito", "Ensaios imprudentes", "Reflexões do crepúsculo", "A técnica e o riso", "Do outro lado da Cerca", "Ensaios contra a maré", "O mundo que vejo e não desejo", "Na virada do milênio" e last but not least "Lanterna na popa" - impuseram um estilo novo às análises sociais e econômicas escritas no Brasil, ao mesmo tempo em que revelavam uma excelência literária que, no caso de vossa autobiografia "Lanterna na popa", ganhou o Prêmio Ermírio de Morais, concedido por esta Academia que ora vos recebe.

Ao longo de todos esses livros há uma pregação, numa série de análises claras e lúcidas sobre o nosso tempo, sua gente e suas opções. De que maneira classificar vosso estilo? Talvez num misto de Samuel Pepys e Montaigne. De Pepys tendes o gosto pela precisão da palavra e pela curteza das afirmações, contidas numa técnica literária cujas descrições, mesmo as aparentemente não-opinativas, na verdade insuflam e propõem opiniões. Opinativo sois, pois, com a liberdade de vosso pensamento, poucos são os que revelam no Brasil tanta coragem de pensar a realidade e dizer, bem e com propriedade, o que pensam.

De Montaigne tendes o espírito humanístico e a sabedoria de concentrar, num ensaio curto, um universo completo de pensamento. A isso, acrescentais uma ironia que assume diversas capas, a ironia direta, a leve, a que se exprime por jeux de mots, a que se vale de largas referências a uma cultura ecumênica.

Vosso lado polêmico se assemelha ao de Chesterton, que parece ter, com a realidade, um pacto, com palavras que se juntam para realçar paradoxos e convencer através de duplos sentidos.

O uso que fazeis da palavra é de estrema sabedoria. Há uma perfeita adequação entre o pensamento que defendeis e o modo como o colocais em vocábulos. Exatamente porque o mais difícil dos estilos é o estilo argumentativo, o que usa elementos da Lógica para dar transparência a um argumento, foi que o aprendizado humanístico do seminário se transformou, em vossa linguagem de escritor, numa arma tão poderosa. Junto com a clareza tomista , vós vos adestrastes na direiteza e simplicidade de Descartes. Durante muitos anos, estivestes presente a debates, acordos, contratos, pactos, na tese de que nenhuma sociedade pode sobreviver sem um contrato, e nem foi por outro motivo que Rousseau acabou por se tornar o homem-chave de todo um movimento que é hoje tá forte como no conturbado final do "Ancien Regime". Nesses contatos e contratos, fostes muitas vezes de extrema severidade, devido à segunda das duas palavras que vos definem: a lucidez e a coerência. A elas eu juntaria outra: a equanimidade. Se tendes o hábito de escolher a Lógica por base, sabeis também que a realidade pode mostrar outra - e oculta - lógica, surgiu Pascal para realçar a importância de "esprit de finesse" em contraposição ao "esprit de géometrie", ou talvez não em oposição mas em companhia de. Porque revelastes "finesse" em vossos escritos, ao mesmo tempo em que dizeis, neles e nos debates verbais, exatamente o que julgais certo, sem fantasias nem sombras. Vós mesmo vos definis como um "pregador de idéias", imbuído talvez demais da "índole da controvérsia" e sem grande "capacidade de acomodação". Sendo, porém, a controvérsia um elemento eminentemente democratizante, isto vos coloca num spectrum político de invejável tolerância.

A vossa obra-prima, "Lanterna na popa", jogou no pensamento brasileiro todos os conflitos e perplexidades da nossa história neste século. São páginas de memórias, são análises de gentes e acontecimentos, de atos e omissões, de tempo perdido e às vezes reconquistado. É livro que recupera um período agitado da vida brasileira (quais os que não o foram?), mas que, por sua proximidade e por havermos muitos de nós passado por ele, com maior ou menor consciência do que estivesse acontecendo, sentimo-lo como se fosse a nossa própria história.

Falando/escrevendo por vós, falais/escreveis também por nós, e este é o fascínio de vossa narração. De rara beleza são as páginas sobre vossa infância em Mato Grosso, com as descrições da Nhecolândia, suas figuras desenhadas contra o fundo estranho e belo do Pantanal. Dizeis: "Na minha ótica de primeira infância, o Pantanal me parecia mais perigoso do que belo". Havia as cobras (a jararaca, a cascavel e a sucuri), as onças (parda e pintada), as piranhas. O pacu era o peixe democrático, fácil de pescar, as bebidas eram o guaraná ralado e o chimarrão. Afirmais que só viestes a perceber a beleza do Pantanal trinta anos mais tarde - a bela alternância das salinas, lagoas salobras, com praias branca, as lagoas doces, com vegetação nas margens, e a belíssima revoada das garças, dos tuiuiús e baguaris. Vosso primo e companheiro de quarto no começo de vossa vivência carioca, Manoel de Barros - "o único poeta da família", dizeis - que vivia em fazenda próxima daquela em que estáveis, assim verseja sobre o vosso ambiente infantil: "me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios..." Ao longo das 1.417 páginas de vossas memórias, louve-se a vossa narrativa, que é primorosamente executada. Os personagens - Oswaldo Aranha, Octácio Gouvêa de Bulhões, Eugênio Gudin, Castelo Branco, Margareth Thatcher, John Kennedy, Lord Keynes, Friedrich von Hayet, brasileiros, ingleses, americanos, árabes, indianos, chineses, gente de um sem-número de países, a todos mostrais com a nitidez do bom narrador. Podeis estar certo, acadêmico Roberto Campos, que "Lanterna na popa" ficará na literatura brasileira - chamemo-lo de literatura porque literatura é - como um de seus livros decisivos, cuja leitura se tornará obrigatória para o entendimento deste país e deste tempo.

Em vossas múltiplas atividades, demonstrastes ser esta coisa difícil em qualquer época ou lugar: um estadista. Falando, escrevendo, agindo, pensando, dialogando com os mais diversos setores da inteligência de nosso tempo, tendes sido de inteira coerência, de fidelidade à vossas idéias, na linha do lema de Shakespeare: "Be faithful to thyself". O ser fiel a si mesmo pode, naturalmente, incomodar uma quantidade ponderável de pessoas e de grupos. Daí talvez a explicação das turbulências que vos têm cercado nos últimos sessenta anos, a partir do momento em que, havendo ingressado no Itamaraty, passastes a ter uma presença inarredável nos assuntos deste século.

Senhor acadêmico Roberto Campos, a Academia Brasileira de Letras vos recebe de braços abertos. Há algum tempo já que ela vos esperava. Sabia a Casa de Machado de Assis que vossa participação em nossas atividades daria realce à luta que empreendemos em favor da cultura brasileira e em defesa do idioma português, que nos une e nos distingue.

Aqui chegais agora, e é como se um destino, previsto e esperado, se cumprisse. Neste momento de alegria para vós e para nós, presto minha homenagem a Stella de Oliveira Campos (née Ferrari Tambellini), com quem estais casado há sessenta anos, aos filhos do casal - Sandra, Roberto Campos Jr e Luís Fernando - e a D. Catarina, vossa irmã .

Acima de tudo, Senhor acadêmico, endereço minha homenagem à memória de Honorina de Campos que, viúva pobre, educou seus dois filhos, a partir dos cinco anos do menino e dos três da menina, aprendendo e em seguida exercendo a profissão de costureira, para educar Roberto e Catarina. Honorina de Campos morreu aos 97 anos de sua idade. Quando estava com 92, conversando com o filho disse: "Estou com muito medo". Roberto quis saber de quê. Resposta: "Tenho medo de não morrer jamais". Pois na verdade ela não morreu. Criou e educou seu filho para servir ao Brasil, com a inteligência que, sem ela, poderia não se ter desenvolvido.

Muito obrigado, D. Honorina.
Muito obrigado a todos.

DISCURSO DO ACADÊMICO ROBERTO CAMPOS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS EM 26.10.99

Tristes são as pessoas e as coisas consideradas sem ênfase. Assim versejou o grande Carlos Drummond de Andrade. A julgar pelo tumulto ideológico que suscitou minha campanha para este calmo sodalício, não sou uma pessoa considerado sem ênfase. Chego à Academia em idade crepuscular, o que tem a vantagem de permitir-me saborear melhor um dos poucos prazeres - a cultura - que sobrevivem à desconstrução da juventude.

Refocilando a memória, verifico que a primeira pessoa que fez perpassar um sopro de ambição acadêmica em minha mente, até então entupida pelas miudezas do pragmatismo econômico, foi Rachel de Queiroz.

Lá se vai mais de um decênio. Visitei-a. Falávamos generalidades sobre o Brasil e sobre a trágica morte de um comum amigo, o presidente Castello Branco, cuja ascensão ao poder foi um acidente benigno de liderança, e cujo desaparecimento um acidente maligno da história. Se vivo, talvez influenciasse para encurtar o período de excepcionalidade militar, que ele, receoso da corrupção do poder, queria breve, suficiente apenas para evitar um autoritarismo de esquerda.

Subitamente, numa guinada reflexiva, Rachel me perguntou:

- Você já pensou em candidatar-se à Academia de Letras?

- Não, respondi-lhe. Não acredito que tenha obra suficiente e careço de outros requisitos.

- Da obra - disse-me ela - não cabe a você julgar, e sim aos acadêmicos. Os requisitos são dois. Providenciar um cadáver e não ser uma personalidade muito controvertida.

Não passo neste vestibular, respondi-lhe. Providenciar um cadáver depende do Criador, e não desejo que ele se apresse. Não ser personalidade controvertida depende dos outros.

- Lembre-se, acrescentei, do que dizia nosso amigo, o presidente Castello: "Não é verdade que eu seja teimoso; teimoso é quem teima comigo". O mesmo digo eu: "Não sou controvertido. Controvertido é quem controverte comigo".

Anos depois, em 1991, o Criador fez sua tarefa em momento errado e em relação à pessoa errada. As Parcas roubaram de nosso convívio, aos 49 anos, José Guilherme Merquior, um gênio do "liberismo" - expressão que ele preferia ao liberalismo, para demonstrar que não era liberal apenas na política, mas também na economia. Convivi muito com dois grandes liberistas de minha geração - Merquior e Mário Henrique Simonsen. Com o desaparecimento de ambos, em plena produtividade, também morri um pouco.

Merquior, ocupante da cadeira 12 desta Academia, tinha sido meu conselheiro diplomático, quando exerci a função de embaixador em Londres, posto que deixei em 1982, para candidatar-me ao Senado Federal por Mato Grosso.

Tive o bom senso de dispensá-lo da rotina da embaixada, encorajando-o a fazer seu doutorado em Sociologia e Política na London School of Economics.

- Sua tese doutoral contribuirá mais para a cultura brasileira, disse-lhe eu, que os relatórios diplomáticos que dormirão o sono dos justos nos arquivos do Itamaraty.

Previ corretamente. A tese de Merquior - "Rousseau and Weber - Two Studies in the Theory of Legitimacy" - escrita em inglês erudito, que humilhava os nativos monoglotas, se tornou parte da bibliografia básica em várias universidades européias.

Encorajado por sua viúva Hilda e por acadêmicos amigos, e rompendo inibições que me tornam antipático para disfarçar timidez, candidatei-me a esta Academia na vaga de Merquior. Ninguém foi eleito na primeira rodada em abril de 1991 e eu desisti da luta, reconhecendo a preferência da Casa pelo meu amigo João de Scantinburgo, filósofo e historiador, cuja "História do Liberalismo no Brasil" se tornou referência para os estudiosos das idéias liberais. Um ano depois, cometi a imprudência de candidatar-me à Cadeira 13, quando deveria estar me aplicando mais às campanhas políticas. Tinha sido encorajado por esse benevolente promotor de ambições acadêmicas, que é Jorge Amado, de quem me fiz amigo em Londres, quando, indiferente à bagatela de Picadilly Circus, escrevia, hospedado na casa de Antonio Olinto, o romance "Tieta do Agreste". Mas tanto Jorge, por benevolência, como eu, por imodéstia, sobreestimávamos meus méritos. Foi a Academia que ganhou com a recepção de um novo talento, Sérgio Rouanet, filósofo iluminista, opção, aliás, racional num país que de tantas luzes carece. Minha mulher Stella, que com sereno realismo se opusera às minhas ambições acadêmicas, passou-me um pito, usando uma expressão "academiabilidade", que ouvira de Gilberto Amado: "Entre os seus vários dotes, meu caro, não se inclui o da "academiabilidade", sussurrou-me ela.

Relato essas peripécias para demonstrar que nas porfias acadêmicas não fui um "cão de açougue". Manuel Bandeira, conta-nos Ledo Ivo, assim chamava os "candidatos ao vosso convívio, antecipadamente vitoriosos". Esses não deixam para os rivais nem ossos nem esperanças...

Transcorreu depois um longo intervalo em que me dediquei a ganhar eleições para a Câmara Federal. Tarefa mais fácil, sem dúvida, pois como dizia Napoleão Bonaparte, "em política, a estupidez não é um handicap". Até porque, segundo Krushev, os políticos podem prometer pontes onde não há rios.

Sobre a dura porfia de ingressar neste cenáculo, não há autoridade maior que Juscelino Kubitschek. Tendo vencido por centenas de milhares de votos eleições para governador de Minas e para presidente da República, perdeu por um sufrágio sua eleição para a Cadeira nº 1 deste sodalício.

Passaram-se os anos mas não passou de todo a tentação. Ela foi ressuscitada por três amigos que eu chamarei de "os três mosqueteiros" - Antonio Olinto, Tarcísio Padilha e Murilo Melo Filho - sob a neutralidade simpática do presidente Arnaldo Niskier. Esmeraram-se eles em demonstrar-me que os tempos tinham mudado. Muitas das minhas teses heréticas ficaram consensuais e meu grau de "academiabilidade" melhorara a ponto de não inspirar cuidados.

Havia, entretanto, um veto doméstico. Faríamos, Stella e eu, este ano, 60 anos de casados, o que, nesta era de rotatividade matrimonial, é um feito portentoso, que rouba, entretanto, ao marido a qualidade de macho dominador. Stella tinha sua autoridade reforçada por desmentirmos brilhantemente o sarcasmo de Nelson Rodrigues, que numa rodada de uísque vespertino comigo e meu cunhado, o saudoso cineasta Flávio Tambellini, respondeu indignado a um cliente em mesa vizinha que lhe entregou um convite para uma festa de Bodas de Ouro: "Viver com a mesma mulher durante meio século é cinismo ou falta de imaginação".

Vendo-me prestes a sucumbir à tentação de buscar a imortalidade acadêmica, Stella protestou:

- Só pode ser ambição senil. E desnecessária, pois você vive dizendo que a generosa Constituição de 1988, em seu Artigo 230, tornou imortais todos os idosos brasileiros, garantindo-lhes "o direito à vida".

Respondi-lhe ter a imortalidade literária um sabor especial, por ser um julgamento histórico, superior às vulgaridades constitucionais que frequentemente não "pegam". Não haveria, aliás, perigo de vaidade senil, pois nunca me esquecera da resposta de Olavo Bilac, um dos fundadores da Academia, a quem lhe perguntou se não era insólita arrogância dos acadêmicos inscreverem em seu brasão "AD IMMORTALITATEM":

- Não - disse Bilac - os acadêmicos são imortais porque não têm onde cair mortos …

Existiram, certamente, cenáculos de apelação menos pretensiosa, como fez notar Afrânio Peixoto em sua introdução aos volumes que compendiam vossos discursos acadêmicos. Relata-nos ele que em Portugal surgiu, em 1647, a Academia dos "Generosos", seguida pela dos "Singulares" em 1663. "Confiados" se chamavam os acadêmicos de Pavia; "Declarados", os de Sena; "Elevados", os de Ferrara; "Inflamados" os de Pádua; "Unidos", os de Veneza. Em 1724, criou-se na Bahia a "Academia Brasílica dos Esquecidos", ressuscitada depois sob o nome de "Academia Brasílica dos Renascidos". No Rio de Janeiro, em 1736, se instalaria a "Academia dos Felizes"; e em 1751, a dos "Seletos". A mais bizarra de todas foi a dos "Rebeldes", uma aventura juvenil de Jorge Amado, criada em Salvador, para rebater o formalismo e suposto elitismo da Academia Brasileira de Letras. Teve precária existência, de 1928 a 1930, reunindo-se numa sala de sessões espíritas, sob os eflúvios de Alan Kardec. Jorge Amado depois criou juízo, sendo eleito "imortal" nesta Academia, em 1961, da qual é membro querido e respeitado. Durante certo tempo, foi chique entre os intelectuais de esquerda desdenharem o venerando grêmio de Machado de Assis, mas vários sucumbiram ao seu encantamento, como Antonio Callado, Antonio Houaiss, Darcy Ribeiro e Dias Gomes.

Minha paz familiar foi restaurada graças a um telefonema de Rachel de Queiroz, que estava então pastoreando rebanhos em sua fazenda no Ceará. Com sua infinita e doce persuasão, induziu-nos todos a crer que minha candidatura a esta Academia deixara de ser uma idéia fora do lugar.

Para minha surpresa, que me rejuvenesceu, pois ser jovem é apenas a capacidade de ter surpresa, deflagrou-se, anunciada minha pretensão à vaga de Dias Gomes, uma ridícula batalha ideológica, que, magnificada pela mídia, me transformaria numa ameaça à paz e a elegância deste cenáculo.

Velho e cansado de brigas, visitei então o presidente Niskier e os membros da Diretoria, para ofertar-lhes minha renúncia à candidatura. Encontrei pronta reação dos ilustres confrades:

- A Academia Brasileira de Letras - disseram-me - nasceu ecumênica e assim continuará. Não aceitamos vetos de nenhuma ideologia e não há reserva de mercado para nenhuma seita política. A Academia é um templo de comunhão cultural e não uma arena de gladiadores políticos.

E lembraram-me que, em seu nascimento, esta Casa fundiu numa comunhão de interesses culturais, dois grupos políticos radicalmente opostos - os republicanos e os monarquistas - sem que houvesse jamais desrespeito ao congraçamento cultural. Republicanos eram Rui Barbosa, Lucio Mendonça, Medeiros de Albuquerque e Graça Aranha. Monarquistas eram Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Carlos de Laet e Afonso Celso. Conviveram depois em plena tranqüilidade "florianistas", como Artur de Azevedo e Coelho Neto, e "anti florianistas", como Rui Barbosa , Olavo Bilac e José do Patrocínio.

- Aliás - acrescentou o presidente Niskier - essa tradição de abertura ecumênica é tão forte que se criou a liturgia de incineração de votos, convencionando-se que o candidato vitorioso foi eleito por unanimidade. Verifiquei depois, lendo a interessante auto-biografia de Dias Gomes, que ele também sofrera impugnações ideológicas, quando sucedeu a Adonias Filho, por estar no lado oposto do espectro político. Multiplicaram-se cartas à Academia, protestando contra a sua eleição.

No meu caso, a querela foi muito mais estridente. Aliás, como alvo de personalismos injuriosos, ganhei todos os campeonatos desta pátria amada, sofrendo patrulhamentos e recebendo xingamentos tanto da esquerda radical como dos nacionalistas de direita. O mais inteligente dos críticos à minha política econômica, quando Ministro do Planejamento, foi, sem dúvida, Carlos Lacerda. Esse esmagador polemista disse uma vez, provocando "suspense" na audiência: "Tenho a maior admiração pelo Dr. Campos… pela sua absoluta imparcialidade: mata imparcialmente os ricos, de raiva, e os pobres, de fome". Não pude excogitar de imediato outra resposta, senão dizer que a "fúria da seta dignificava o alvo".

Mas o argumento fundamental que me fez desistir da desistência foi o da rotatividade da cadeira 21. Tanto Álvaro Moreyra como Adonias Filho e Dias Gomes, em seus discursos de posse, rotularam-na de "cadeira de liberdade". Poder-se-ia chamá-la também de "cadeira do ecletismo". Seu membro fundador foi José do Patrocínio, um liberal abolicionista. Escolheu para patrono Joaquim Serra, também um abolicionista que cultivava a filosofia platônica e se declarava positivista. O segundo ocupante foi Mario de Alencar, tão recluso em seus pendores, que se poderia chamar de neutralista. O terceiro foi Olegário Mariano, um conservador getulista. O quarto foi Álvaro Moreyra, o primeiro a se declarar comunista. O quinto foi Adonias Filho, um ex-integralista, partidário da Revolução de 1964. Sucedeu-lhe Dias Gomes, que se inscrevera no Partido Comunista no final da II Guerra.

Mantido o precedente da alternância, seria a hora e vez de um conservador ou de um liberal. Diferem os dois em que o conservador quer preservar o "status quo", enquanto o liberal aceita mudanças, desde que emanadas do mercado competitivo ou provindas do voto democrático. Defino-me como um "liberista" que vê no governo um mal necessário. Às vezes, absolutamente necessário.

Descobri algumas afinidades com Dias Gomes. Ambos tivemos educação religiosa, ele num colégio marista, enquanto eu completei dez anos em seminário católico, graduando-me em Filosofia e Teologia. Foram anos de retiro e castidade, durante os quais acumulei um enorme direito de pecar, que nunca pude usar, por falta de cooperação complacente.

Dizia-se, na minha adolescência, que um cavalheiro completo tinha que ter um diploma de bacharel, vestígios de uma doença do sexo e escrever um poema. Enclausurado num mosteiro, desqualifiquei-me nos dois primeiros requisitos, mas cometi alguns poemetos sob a forma de "haikais" que, para bem da Humanidade, consignei à lata de lixo. Só me lembro de um "haikai", de duvidoso gosto, mas não de todo inimaginoso:

- "Lança os teus olhos ao mar pela hora redonda.
E aprende na folha que cai a geometria da queda".

Dias Gomes também cometeu romances juvenis, sobre os quais talvez consentisse em dizer: "esqueçam o que escrevi".

Cometemos, assim, ambos, erros de vocação. Ele estagiou por dois meses numa escola de cadetes, fez curso preparatório para Engenharia e cursou até o 3º ano de Direito, quando, finalmente, descobriu que sua verdadeira vocação era a arte teatral. Desdobrar-se-ia depois no rádio e na televisão, com igual brilhantismo e incrível produtividade.

Eu, de teólogo, tratando como diz Anatole France "avec une minutieuse exactitude del'Inconnaissable", passei à Economia, que dizem ser a "ciência de alcançar a miséria com o auxílio da estatística".

Dias Gomes e eu tivemos a mesma votação nesta Academia, indicando que os acadêmicos são tão maus profetas quanto os economistas, pois nossos respectivos aliados nos prediziam vitórias consagradoras. Isso me faz lembrar uma estória contada por um querido amigo, o pediatra Rinaldo de Lamare, sobre a Academia Nacional de Medicina, veneranda instituição que já completou 172 anos. Revoltado por sucessivos repúdios à sua pretensão de figurar entre os 100 acadêmicos, assim se pronunciou um esculápio frustrado: - A Academia é um grupo de médicos de indiscutível valor profissional, de justificada vaidade profissional e de incompreensível falsidade eleitoral.

Nossas percepções do mundo, sempre antagônicas, se adoçaram nas refregas do mundo real. Dias Gomes, que se considerava um subversivo vocacional, aderiu ao Comunismo em 1945, e, sem ser um ativista ou fanático, nele permaneceu até 1971, desviando-se da linha do partido ao protestar em 1966 contra o mau tratamento dado aos escritores soviéticos. Custou a aceitar a morte da "ilusão", reconhecendo afinal a incompatibilidade básica entre sua vigorosa luta pela preservação da dignidade do ser humano e contra qualquer forma de intolerância, com as brutalidades do socialismo real e seu arsenal de expurgos, "gulags" e submissão das artes aos dogmas do PCUS. O comunismo se tornou mundialmente uma espécie de religião leiga, tendo o Kremlim, como o Vaticano, o "Das Kapital" por bíblia e a ditadura do proletariado como a "parousia".

Em novembro de 1996, em entrevista dada a Ana Madureira de Pinho, na "Revista de Domingo", do Jornal do Brasil, Dias Gomes declarou:

- Não sou comunista, porque o comunismo é uma utopia, nunca existiu em nenhum país do mundo comunista. Me considero um homem de esquerda, anti dogmático. Uma vez me defini para amigos: um "anarco-marxista-ecumênico-sensual" (esse jogo de palavras me faz lembrar a definição por Eliezer Batista, do sistema político de invasão de poderes criado pela Constituição de 1988: uma "surubocracia anarco-sindical").

E continuou:

- Sou um homem aberto hoje em dia. Muitas idéias foram reformuladas, mas continuo um homem de esquerda. Isso se você considera ser de esquerda somente sonhar com uma sociedade mais justa e mais liberta. Se o comunismo nunca existiu, tem razão o historiador francês ex-comunista Francois Furet, ao escrever seu monumental tratado do arrependimento: "Le passé d'une ilusion". Essa ilusão custou ao mundo quase 100 milhões de vítimas. Das grandes ideologias mundiais não cristãs, o marxismo leninismo foi a mais sangrenta e mais curta - 72 anos. O islamismo está ainda em expansão e durou 14 séculos. O budismo e confucionismo sobrevivem há cerca de 24 ou 25 séculos.

Mas Dias Gomes exagera no seu réquiem do comunismo. No museu de obsoletismos políticos, sobrevivem dois espécimes: Cuba e Coréia do Norte. E curiosamente algumas universidades públicas brasileiras tornaram-se o último refúgio do profetismo e da vulgata marxista.

Dias Gomes, que se auto descreve como um "proibido precoce", teve peças censuradas ou proibidas pelos dois governos Vargas, por vários governos militares e até mesmo por Carlos Lacerda, como Governador da Guanabara. Confessa, entretanto, uma frustração:

- Não ter sido preso é uma falha na minha biografia que me envergonha, uma injusta lacuna. Por tudo que fiz, sem modéstia, eu acho que merecia uma honrosa cadeia (o Dia, 30/4/98).

Eu não tive necessidade de retratação porque nunca cedi a radicalismos nem de direita, nem de esquerda. Minha punição foi não passar de uma carreira pública medíocre, por insistir em dizer a verdade antes do tempo, pecado que a política não perdoa. Quando jovem, no início da II Guerra, parecia inevitável a vitória do Eixo sobre as "democracias decadentes". Mas eu respondia aos que assim profetizavam:

- Hitler é apenas um Napoleão que nasceu falando alemão, com a desvantagem de não ter feito nada comparável ao Código Napoleônico.

Também não me iludi com o totalitarismo de esquerda, por um raciocínio simples. Deus não é socialista. Criou os homens profundamente desiguais. Tudo que se pode fazer é administrar humanamente essa desigualdade, buscando igualar as oportunidades, sem impor resultados. De outra maneira, estaríamos brincando de Deus, ao tentarmos refabricar o homem. É o que tentaram fazer Marx e Lenin, com os resultados conhecidos: despotismo e empobrecimento. Isso me levou, ainda jovem, a acreditar que o sistema político ideal seria o capitalismo democrático, isto é, o casamento da democracia política com a economia de mercado. Parodiando Churchill, pode-se dizer que o capitalismo é o pior dos sistemas econômicos, exceto todos os outros; e a democracia é o pior sistema político, excetuado todos os outros.

Mas se não tive de recitar o "confiteor" por ter optado pelo sistema errado, fui obrigado a fazer retificações de rumo. Em minha juventude, acreditava no Estado planejador e motor do desenvolvimento. Curiosamente, meu desapontamento começou quando, como Ministro do Planejamento, visitei a União Soviética em 1965. Assustei-me com a presunção dos burocratas do Gosplan. Ignorando o consumidor, eles planejavam, com ridícula minúcia, a quantidade e a qualidade dos bens de consumo. Acabavam produzindo o que o consumidor não queria consumir. E verifiquei que o planejamento central já era ridicularizado na sabedoria das anedotas polulares. Chiste corrente em Moscou, originário da rádio Yerevan, da capital da Armênia, dizia que uma professora pedira a um de seus alunos para conjugar o verbo "planejar". Mal começou o aluno a balbuciar "eu planejo, tu planejas, ele planeja …", a professora perguntou-lhe: "Que tempo do verbo é esse?" - Tempo perdido", respondeu o aluno.

Embrenhei-me depois na leitura dos liberais austríacos, como Von Mises e Hayek, convencendo-me de que planos de governo são "sonhos com data marcada". Antes, queria que o governo fosse um engenheiro social, modelando o desenvolvimento. Hoje rezo para que ele seja apenas um jardineiro, adubando o solo, extraindo ervas daninhas e deixando as plantas crescerem … E um samaritano competente, para cuidar do social.

OS PARADOXOS DE KENNEDY

Um dos mais embaraçoso episódios de minha carreira diplomática, quando embaixador em Washington, foram duas inesperadas indagações que me fez o presidente Kennedy, ao fim de uma conversa relativa à implementação do acordo Kennedy-Goulart sobre a transformação, em nacionalizações negociadas, das encampações confiscatórias feitas pelo governador Brizola, de empresas americanas de telefonia e eletricidade. Eliminar-se-ia, assim, uma área de atrito.

Ao me despedir, Kennedy dardejou-me duas instigantes perguntas:

- "Por que , disse ele, no Brasil e na América Latina, há um viés favorável, entre estudantes, escritores e artistas, ao modelo soviético, maquilado de "socialismo real"? Deveria ser o contrário. Os estudantes adoram mudanças e a sociedade mais experimental do mundo são os Estados Unidos, com sua multiplicidade de raças e religiões, pluralismo político e abertura a inovações. Quanto aos escritores e artistas … presume-se que desejem liberdade criadora de pensamento e expressão. É precisamente isso que inexiste na União Soviética, onde a doutrina do "realismo socialista" condena o individualismo criador e transforma artes e artistas em instrumentos de propaganda partidária, sob pena de patrulhamento, gulags, exílios e privação dos direitos civis?

Confesso que fiquei embaraçado, sem resposta direta àquilo que chamei de "paradoxos de Kennedy".

- Quanto aos jovens, balbuciei, parece que a rebeldia natural da idade se transforma em preconceito contra o mais forte e o mais poderoso. Os mais poderosos só podem aspirar a ser respeitados, nunca amados. A juventude tem encanto por utopias e o capitalismo é rico na produção de mercadorias, porém não na produção de mitos. Para os jovens, a fórmula do dinamite é mais fácil que a do cimento armado. E acrescentei que talvez Bernard Shaw tivesse razão ao dizer que a juventude é uma coisa maravilhosa, sendo pena desperdiçá-la nas crianças.

Mais difícil, acrescentei, é explicar a abundância de intelectuais de esquerda. E, bancando o erudito, citei a teoria de Raymond Aron, cujo livro "L'opium des intellectuels" eu conhecia bem, por ter prefaciado a edição brasileira. Diz Aron que o surgimento do "socialismo real" criou mitos substitutivos dos velhos deuses do Iluminismo: o Progresso, a Razão e o Povo. O novos deuses seriam: o mito da Esquerda, o da Revolução e o do Proletariado. Os intelectuais se seduziram por uma espécie de romantismo revolucionário, considerando as reformas "enfadonhas e prosaicas" e a revolução "excitante e poética". O culto marxista da revolução violenta virou uma espécie de refúgio do pensamento utópico.

Para um político pragmático como Kennedy, interessado na melhora imediata da imagem de seu país entre os latino americanos, minhas divagações eram um lance errado. Ele queria respostas e eu desovava perplexidades. Há um outro paradoxo que Kennedy não mencionou. É que os socialistas, que tanto falam nas massas, não foram os criadores nem do consumo de massa, nem da cultura de massa. Essas massificações equalizantes foram produzidas pela cultura individualista americana. Hollywood foi uma criação de judeus provindos em grande parte dos guetos da Europa Oriental, vítimas de pobreza e discriminação e por isso obcecados com a idéia de criar fábricas de sonhos. O cinema, originado no Ocidente, talvez tenha sido a primeira "cultura de massa" do mundo, agora ampliada pela televisão e pela Internet, também em criações capitalistas.

Meditei muito ao longo de vários anos e até hoje não tenho respostas. Como explicar a mansa aceitação entre nós da cultura americana do jazz, do rock, do fast food, do cinema, acoplada a uma rejeição zangada da cultura do capitalismo democrático que lhes deu origem?

Como explicar que intelectuais de esquerda, que em seu país lutaram pela liberdade criadora e pela dignidade da pessoa humana, tivessem simpatizado, ao longo de vários anos de guerra fria, com um sistema que institucionalizava a delação, a censura, os expurgos e os gulags. Um sistema tão repressivo que levou ao suicídio grandes poetas como Mayakovsky e Ossip Mandelstan; que submeteu à censura política óperas de Shostakovich e obrigou filósofos como George Lukcás a humilhantes retratações.

É uma espécie de esquizofrenia ideológica, que se traduziu em mutilação de corpos e almas em nome da utopia. É por isso que não gosto das utopias. Como disse o politólogo Ralf Dahrendorf: "Nada mais anti-liberal que a utopia, que não deixa lugar para o erro nem para a correção".

A CADEIRA DA LIBERDADE
O fundador da "cadeira da liberdade" foi José do Patrocínio, jornalista, panfletário, romancista e sobretudo formidável orador. Na tribuna, chamavam-no de "Tigre". O título que mais prezava era o de "Herói da Abolição". Contribuíra tanto ou mais que Nabuco ou Rui Barbsoa para a liberação de 1,6 milhão de escravos em 1888. Era capaz de incendiar multidões quando descrevia o sofrimento dos escravos, a mutilação de suas vidas e a desumanidade da opressão. Ao ouvi-lo, Euclydes da Cunha o descrevia como um "tumulto feito homem". Melhor orador e jornalista que romancista, legou-nos quatro romances, dois dos quais são uma mistura de grito de angústia e panfleto social. O primeiro, "Motta Coqueiro", é um libelo contra a pena de morte. O segundo é um pungente relato do sofrimento imposto pela grande seca do Nordeste em 1877. Uma coisa interessante é a denúncia por Patrocínio da corrupção das "comissões de socorro", que intermediavam as verbas entre o "Retirante" e o "Estado". Eram um sorvedouro, fazendo com que os assistentes ficassem melhor que os assistidos. Hoje, 122 anos depois, continuamos despreparados para as secas e ainda se fala na "indústria da seca", pois há enorme vazamento de recursos em benefício de intermediários, burocratas e políticos. Isso testemunha que nossa capacidade de indignação é muito maior que nossa capacidade de organização.

José do Patrocínio morreu de tuberculose, cirrose e, porque não dizê-lo, também de pobreza. Esgotara-se sua grande tarefa salvacionista, e com ela murchou seu poder de mobilização. Vivia num casebre e sobrevivia de biscates jornalísticos. Daí, como relata seu filho, uma tragédia irônica. Ao morrer, em 1905, redescobriu-se o "Grande Homem". Providenciaram-se funerais de estado, coches de gala, crepes nos lampiões, cavalos cobertos de pluma negra e seu corpo embalsamado ficou exposto numa igreja por 15 dias. Mas no oitavo dia após a morte, sua família teve de deixar o casebre em que vivia, sob mandato de despejo.

José do Patrocínio escolheu para patrono Joaquim Serra, poeta, jornalista e dramaturgo (pois foi um dos fundadores do Teatro de Revista) mas sobretudo um colega de combate nas lutas em favor da Abolição. Segundo André Rebouças, foi o político que mais escreveu contra os escravocratas. Era um filósofo platônico, que se seduziu pelo positivismo de Augusto Comte. Se outros títulos lhe faltassem, bastaria lembrar que a legenda republicana "Ordem e Progresso" foi título do jornal de província que fundara em 1862.

Mário de Alencar foi o segundo ocupante da cadeira. Tímido e recluso, ofuscado pela imagem do pai, José de Alencar. Eram dois momentos do Brasil. O pai trouxe-nos a imagística do Brasil primitivo e bravio com caciques, lutas na selva e cachoeiras selvagens. Mário de Alencar, de outro lado, fazia do culto da beleza moral seu estilo de vida. Seu modelo era Sócrates, sábio em vida para ser corajoso na morte. Versava, com um toque de pessimismo que o aproximava de Machado de Assis, temas da vida urbana na poesia e na ensaística. Curiosamente, tendo publicado seus primeiros versos - "Lágrimas" - aos 15 anos, por timidez e excessiva auto-crítica, publicou muito menos do que escreveu. Coube a seus filhos promover a edição do romance "Sombra", além dos poemas "Goethe" e "Prometeu". Como disse Álvaro de Almeyda, detestava oradores e jornalistas e metia-se na solidão para ser livre.

O terceiro ocupante foi Olegário Mariano, poeta vocacional. Dizia - "Não pretendo ser mais que um poeta, bastando-me pouco para conseguir tudo". Essa posição é corajosa, pois os poetas, como nada nesse mundo, não têm aceitação unânime. Lembra-nos Gustavo Barroso: "Platão queria banir de sua república ideal os poetas como inimigos da verdade. E Santo Agostinho propunha infamá-los - como aos comediantes". Olegário foi talvez o último dos parnasianos. Ainda aprisionado pelo culto das formas, sem o verso solto do modernismo que surgiria com Manuel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade.

Ao contrário de seu antecessor, que tinha uma visão pessimista da peripécia humana, Olegário era essencialmente um lírico otimista, de bem com a vida. Foi o poeta das cigarras, dos pássaros, dos cães de rua, dos nomes femininos e dos rios solenes, que moldam as cidades. Releio-o com nostalgia e um certo grau de manso desconforto, pois sempre preferi a diligência das formigas à displicência da cigarras. Alguns dos seus versos são dos mais belos que já vi, como no diálogo das duas sombras no "Água Corrente":

"Eu nasci de uma lágrima. Sou flama
Do teu incêndio que devora.
Vivo dos olhos tristes de quem ama,
Para os olhos nevoentos de quem chora"

Personalidade curiosa foi o quarto ocupante, Alvaro Moreyra, jornalista, poeta e teatrólogo que, transposta a fase boêmia da juventude, seduziu-se pela utopia social da Revolução de Outubro de 1917. Declarava-se comunista, mas era mais pose que convicção, pois não tinha suficiente capacidade de odiar para se engajar na luta de classes. Pedia bênção à Deus todos os dias e tinha intimidade com os santos, particularmente São Francisco de Assis, que ele chamava de "Chiquinho". O franciscano, amante dos pobres, dos pássaros e da "Soror Acqua", foi uma espécie de ecologista medieval, pois assim cantou no "Cantico del Sole":

"Laudato sia il mio signore per suora acqua,
La quale é molto utile et humile et pretiosa et casta".

Poeta e depois prosador, Álvaro fabricou alguns dos mais belos poemetos que conheci, como por exemplo no seu livro "A lenda das Rosas":

"Pobre cega, porque choram tanto assim estes teus olhos?

Não, os meus olhos não choram
são as lágrimas que choram
Com saudade dos meus olhos"

Alvaro era um poderoso fazedor de aforismos, como esse:

- O meu maior prazer é mudar de opinião. Com esse prazer vou evitando a velhice. E confirmou isso. Depois da poesia e do jornalismo, dedicou-se, a partir de 1927, à criação teatral, com seu "Teatro de Brinquedo", que tinha uma legenda de Goethe: "A humanidade divide-se em duas espécies: a dos bonecos, que representa um papel aprendido, e a dos naturais, espécie mais numerosa, de entes que vivem e morrem como Deus os fez".

Dias Gomes considera que com "O teatro de brinquedo" Álvaro contribuiu para que o teatro, a única arte que não participara da Semana de Arte Moderna, começasse uma tarefa de renovação que possibilitaria depois a revolução cênica e dramatúrgica dos anos 50 e 60.

O quarto ocupante da cadeira foi Adonias Filho. Pertencia em Salvador à "Ação Integralista", sem que isso embaraçasse sua amizade com Jorge Amado, que labutava na "Juventude Comunista". Quando ingressou nesta Academia, já um dos próceres importantes da Revolução de 1964, insistiu em ser recepcionado por Jorge Amado, que então era considerado, em alguns círculos militares, como "subversivo pornógrafo".

Adonias pertencia à geração literariamente fecunda da região dos cacaueiros. Foi um romancista anti-romântico, como dizia Jorge Amado, num mundo de espanto e de terror, onde "os seres não são de bondade e ternura, mas sobreviventes que podem virar algozes". Sua significação especial é que marcou uma espécie de "divisor de águas". Ao contrário da literatura dos anos 30, em que a natureza bela e seivosa parecia mais importante que o homem, na literatura de Adonias prevalece o bicho homem, sem doçura e esperança, face a taboleiros árduos e vazios, onde a enxada tinha sempre como alternativa o punhal.

Adonias procurou dar dimensão universal ao regionalismo. Rachel de Queiroz nele descobre traços dostoiewskianos diferentemente infletidos. No mestre russo, os elementos dramáticos são impregnados de conflitos religiosos e morais - pecados que levam à danação - enquanto que as personagens de Adonias são ligadas a códigos de instinto, na disputa pela terra, sob as agressões do desemprego, desesperança e vingança. Alguns, como nota Dias Gomes, consideram sua prosa enxuta e sincopada, comparável à de Machado de Assis, Graciliano e Guimarães Rosa, sem ter jamais alcançado prestígio remotamente parecido. Talvez tenha havido uma censura recôndita por causa do seu passado integralista, absurdamente considerado como um desengajamento das questões sociais.

Seus primeiros romances, os da zona cacaueira, como "Corpo Vivo", e "Memórias de Lázaro" são romances de vingança e desesperança. Há depois romances da raça negra, da saga de liberação frustrada e finalmente uma terceira fase, a do romance "O forte", passado em Salvador, e já impregnado de paixão, misticismo e rendição à esperança.

À parte o mérito literário de seu estilo de tragédia grega, Adonias sempre conseguiu superar disputas ideológicas de personalismo injurioso ou censura à criação cultural. Como disse Dias Gomes: - Saltando o largo fosso das ideologias, mas distinguindo amigos e inimigos, usou seu prestígio para reparar injustiças, defender perseguidos, evitar crueldades.

Inclusive, conta-nos Jorge Amado, sustando processos de alguns intelectuais de esquerda que o haviam maltratado e deles se vingariam se chegasse ao poder…"

O CASAL DE DRAMATURGOS

Dizia Langston Hughes, grande poeta negro americano, que "a boa canção é aquela que fica zumbindo teimosamente nos nossos ouvidos". Grande peça teatral é aquela que consegue transformar figuras do palco em presenças do nosso quotidiano e peças do nosso folclore. Sob esse aspecto, Dias Gomes é um grande dramaturgo. Suas criaturas no teatro, e depois no cinema e televisão, - "Zé do burro", "Branca Dias", "Odorico o Bem Amado", "Roque santeiro" e a "Viúva Porcina", são hoje inquilinos de nossa paisagem. É impossível analisar a vida e a obra de Dias Gomes sem mencionar Janete Emmer, sua esposa por 33 anos, que adotou o sobrenome artístico de Clair, apaixonada que era pelo "Clair de Lune", de Debussy. Se Dias Gomes foi um inovador como dramaturgo, Janete foi pioneira nas telenovelas, com sucessos inesquecíveis tais como "Irmãos Coragem", "Selva de Pedra", "O Astro" e "Pecado Capital". Esta foi escrita apressadamente para a TV Globo, a fim de substituir a peça "Roque Santeiro", de seu marido, que ficou suspensa por dez anos, no período mais obscurantista da censura militar. Depois de 1985, "Roque Santeiro" tornou-se um grande sucesso televisivo.

Dias Gomes se descreve, em sua interessante e provocante autobiografia, como "Um perseguido precoce". Escreveu sua primeira peça a "Comédia dos moralistas", aos 15 anos e a peça "Pé-de-Cabra", aos 18 anos. Esta fora encomendada por Jaime Costa por antagonismo a Procópio Ferreira, e ironicamente acabou por este próprio encenada, quando Dias Gomes não passava dos 20 anos. Não sem castração pela censura, de dez páginas, incidente que ensinou Dias Gomes a driblar os censores de vários governos, todos de saudável burrice na prática do métier. A peça foi considerada "marxista" numa época em que Dias Gomes nem sequer lera Marx.

É difícil escolher, na vasta produção do dramaturgo as melhores obras. Diga-se de início que, apesar de sua versatilidade, escrevendo tanto para o teatro como para o rádio e televisão, Dias sempre considerou o teatro sua principal vocação. Dizia que o teatro é a única arte que usa como expressão "a criatura viva, sensível e mortal". Outras artes como o cinema, a pintura, a escultura, refletem a criatura humana através de imagens captadas, mas não a apresentam viva. Acrescentava que à televisão faltava "poder de conscientização" e "perenidade", enquanto "o teatro respira eternidade". Inconscientemente, Dias Gomes incide num elitismo subliminar. É verdade que o teatro foi originalmente uma arte comunal e, portanto, "popular", como nos anfiteatros gregos. Mas gradualmente se tornou uma arte intimista frequentada pela elite burguesa. A democratização da mensagem viria com a televisão, e hoje a Internet, ambas invenções capitalistas. Jorge Amado escolheu dez peças como sendo o núcleo central da obra de Dias:- "O Pagador de Promessas", "A Revolução dos Beatos", "O Bem Amado", "O Berço do Herói", "A Invasão", "O Túnel", "Os Campeões do Mundo", "Amor em Campo Minado" e "Meu Reino por um Cavalo".

Leon Liday, o teatrólogo que mais conhece e admira a obra de Dias Gomes, elege como suas preferidas "O Pagador de Promessas", "O Berço do Herói" e "Vargas".

"O Pagador" seria nitidamente realista, o "Berço do Herói" e "O Santo Inquérito" nitidamente expressionistas. Aquela uma sátira mordaz e a segunda um drama histórico-lendário altamente surrealista. "Vargas" é também um drama histórico-lendário, porém musicalizado sob a forma de um samba de enredo. Minhas preferências são pelo tríptico - "O Pagador de Promessas", "O Santo Inquérito" e "A Revolução dos Beatos". As duas primeiras são chamadas por Anatol Rosenfeld, o grande crítico teatral, de "misticismo popular".

- "O pagador", esclarece Dias Gomes, em resposta a alguns críticos, não é uma peça anti-clerical. É uma peça contra a ignorância e o fanatismo, uma fábula sobre a liberdade de escolha". Versa três conflitos. O primeiro é o do catolicismo com o sincretismo, advindo da mistura dos símbolos cristãos (Santa Bárbara) com o candomblé (Iansan); o segundo é o do conflito entre o simplismo sincero do sertanejo e o formalismo inflexível do clérigo, o terceiro é o choque psicológico e moral resultante da incapacidade de comunicação entre a ingenuidade cabocla e a malta de jornalistas, rufiões e prostitutas da cidade. Esses exploram o exoticismo arcaico da pobreza do "Zé doBurro"de caminhar 43 quilômetros, dilacerando seus ombros sob cruz pesada, para cumprir promessa feita a Santa Bárbara (ou Iansan) por ter salvo o burro Nicolau. Há um toque rousseaunista no contraste entre o camponês puro e a cidade perversa. O burro humaniza o homem e os homens emburrecidos sacrificam "Zé", o pagador de promessa. A cena do "Zé do Burro", que só cumpriu seu rígido voto depois de morto, quando a multidão arromba as portas da igreja, é de grande pungência.

Isso explica o enorme sucesso da peça aqui e no exterior. Desde sua estréia em 1960, foi traduzida para mais de dez línguas e exibida pelo menos seis vezes nos Estados Unidos, e em numerosos outros países dos dois lados da guerra fria. Ganhou em 1962 o prêmio "Palma de Ouro" do Festival de Cannes, numa versão cinematográfica dirigida por Anselmo Duarte. Isso atesta que Dias Gomes conseguiu transformar um drama regional num apelo universal contra a intolerância.

A segunda peça de minha preferência é "O Santo Inquérito". A Inquisição não é peculiaridade católica, pois os puritanos de Massachusets queimaram as bruxas de Salem, em 1692, evento recordado pelo grande dramaturgo americano, Arthur Miller, em sua peça "Crucible".

"O Santo Inquérito" versa um tema diferente: a colisão entre o sexo e a religião. A bela Branca Dias, que foi vista banhando-se nua à luz do luar, cometeu dois erros: aprendeu a ler, o que lhe facultava leituras proibidas, e beijou na boca o padre Bernardo para livrá-lo do afogamento. Esse piedoso ato de salvação é visto como concupiscência. Branca acaba perdendo as pessoas que mais amava por causa da obsessão de padre Bernardo, que por ela desenvolveu desejos pecaminosos. Oficial do Santo Ofício, procurou induzi-la no processo a retratar-se de faltas que não praticara, como se a confissão do próximo fosse uma auto purificação do pecador.

A terceira peça de minha triologia é "A Revolução dos Beatos". Se "O Pagador' é um libelo trágico contra o misticismo fanático, "A Revolução dos Beatos" é um libelo satírico contra a manipulação política do fanatismo religioso. Dessa arma satírica Dias Gomes depois se utilizaria habilmente em peças como "Odorico bem amado" e "Roque Santeiro".

Curioso truque de Dias Gomes é a "animalização da bondade". No "Pagador" é o burro Nicolau que tem "alma de gente", e na "Revolução dos Beatos" é o Boi Santo, presenteado pelo político Flório ao Padre Cícero, que fazia milagres. Atendendo, inclusive, à safada súplica de Bastião para induzir Zabelinha a se enrabichar por ele. O último texto que eu gostaria de comentar é a auto-biografia de Dias Gomes, uma mistura deliciosa de humor, história familiar e engajamento político literário.

O TEXTO SEM CONTEXTO

Comentei com maravilhamento alguns textos de Dias Gomes. Falta falar sobre o contexto histórico dos anos da guerra fria, que ele e eu vivenciamos, fazendo ambos apostas divergentes sobre o curso da história. Tanto em seu discurso de posse nesta Academia como em sua auto-biografia, Dias Gomes desfolha um libelo contra os chamados "anos de chumbo" do período militar, com seus excessos repressivos e mutilação das liberdades, esquecendo-se de interpretar a peripécia brasileira no contexto da guerra fria. Não se menciona sequer minimamente alguns aspectos construtivos, como o fato de o Brasil nesses anos ter passado da retaguarda incaracterística dos emergentes para a posição de oitava potência industrial do mundo. E tudo se passa como se o autoritarismo no Brasil fosse uma exótica perversão somente acontecida no Trópico do Capricórnio.

Um mínimo de análise histórica comparativa teria levado Dias Gomes a fazer um balanço mais benígno. Samuel Huntington, o famoso politólogo de Harvard, defendeu a tese das ondas e refluxos periódicos da democratização no mundo. Na década dos 60 e começo dos 70 teria havido uma guinada autoritária mundial, de tal forma que um terço das sociais democracias que funcionavam no pós-guerra acabassem interrompendo seus processos democráticos.

Na América Latina surgiram vários regimes, que O'Donnell e Huntington chamam de "autoritarismos burocráticos". No Brasil e Bolívia, em 1964; na Argentina em 1966; no Peru em 1968; no Equador em 1972; no Uruguai em 1973. Houve golpes militares na Coréia do Sul em 1961; na Indonésia em 1965; na Grécia em 1966. Em 1975, foi imposta a lei marcial nas Filipinas e Indira Gandhi declarava um regime de emergência na Índia. A rigor, o pioneirismo da guinada autoritária, desta vez em favor da esquerda, foi o de Fidel Castro em Cuba, o qual ascendeu ao poder em 1959, aderiu ao comunismo pouco depois e aparentemente não tem planos para deixar o poder.

É paradisíaca a visão até hoje mantida por vários intelectuais de esquerda que o Brasil em 1964 tinha uma opção tranqüila entre a liberal democracia e a social democracia. A real opção era entre um autoritarismo de esquerda e um autoritarismo de centro direita, que se dizia transicional. No Brasil, tivemos um autoritarismo encabulado, que se sabia biodegradável, que admitia o pluripartidarismo, que mantinha, ainda que manipuladas, instituições democráticas, que postulava a restauração democrática como objetivo último da evolução social. Isso é diferente dos autoritarismos totalitários, ideologicamente rígidos, sanguinários quanto a dissidentes, e convictos de que o determinismo histórico asseguraria a ditadura da classe eleita - o proletariado.

Melancólicas veramente eram nossas alternativas nos primeiros anos da década dos 60, quando a guerra fria atingia seu apogeu:- ou anos de chumbo ou anos de aço. Alhures, os anos de aço duraram 72 anos na União Soviética, quase meio século na Cortina de Ferro e ainda há espécimes ditatoriais sobreviventes.

Dias Gomes tem razão em verberar, a posteriori, a idiotice da censura, o sofrimento de idealistas torturados, o amargor dos exilados. Que esses dilaceramentos do tecido social não se repitam mais.

Mas os anos de chumbo tiveram derretimentos que jamais ocorreriam se tivéssemos "anos de aço". Um "derretedor de chumbo" já citado, foi Adonias Filho que combatia as ideologias mas respeitava os ideólogos. Outro foi nosso ilustre confrade Roberto Marinho. As "Organizações Globo", tidas como bastião do capitalismo reacionário, deram, no interregno autoritário, guarida a vários intelectuais e artistas de esquerda, que receberam sustento sem exigência de conformismo esterilizante.

Desde 1969 foi lá que se abrigaram Dias Gomes e Janete, por quase três décadas, para produzir obras que serão o encanto de várias gerações. Não sofreram constrangimentos ideológicos, como reconhece o próprio Dias. E os profissionais da organização o ajudaram-no muitas vezes a driblar a censura e a preservar, sob pseudônimos, a mensagem fundamental do dramaturgo.

Uma vez, conversando com o nosso ilustre confrade Roberto Marinho, apontei-lhe contradições entre o tom conservador dos editoriais, de um lado, e os cabeçalhos e noticiários enviezados, de outro, que desmereciam a classe empresarial e as idéias liberais.

Definitivamente, nosso confiável confrade nem sempre dá conselhos confiáveis. Quando lhe pedi que partilhasse comigo o segredo de sua fecunda longevidade, respondeu-me: saltar a cavalo e fazer pesca submarina. - Logo eu... que não gosto de cavalos e detesto o cheiro de peixe.

Digo estas coisas para acentuar o contraste entre a repressão dos "anos de chumbo" e o que seria a repressão dos "anos de aço", que teríamos de atravessar se vitoriosa a aposta de muitos de nossos intelectuais na opção comunista. Consideremos o diferencial de sofrimento.

Dois dos maiores nomes da literatura mundial - Boris Pasternak e Solzhenitsyn - ganharam o prêmio Nobel em 1958 e 1975, respectivamente, durante os anos de aço. E experimentaram incríveis perseguições. Foram ambos expulsos da União dos Escritores Soviéticos, o que naquele regime fechado significa desemprego e morte civil. Solzhenitsyn foi preso em 1974, acusado de traição pela publicação, no exterior de sua grande obra "O Arquipélago Gulag". Na Rússia somente 25 anos depois foi autorizada sua publicação na revista literária "Novy Mir". Foi exilado da União Soviética, passando a viver nos Estados Unidos e só então poude ter acesso ao seu Prêmio Nobel.

Pasternak teve de renunciar ao Prêmio Nobel. Sua obra prima - Dr. Zhivago - que chegara ao exterior em 1957, através de manuscritos contrabandeados, só foi autorizada na Rússia em 1985, 28 anos depois! Consta que só escapou dos expurgos de Stalin, nos anos 30, porque havia traduzido para o russo poemas de poetas georgeanos, compatriotas de Stalin.

Dolorosa foi a carreira de Ana Akhmatova, talvez a maior poetisa russa desde Puskhin. Seu marido foi executado em 1921 e seu filho preso e exilado para a Sibéria em 1949, ambos por "não conformistas". O Comitê Central do Partido Comunista condenou sua obra poética em 1946 por seu "eroticismo, misticismo e indiferença política". Foi também expulsa da União dos Escritores Soviéticos e por três anos proibida de escrever qualquer coisa. Sua mais longa obra, "Poema Sem Herói", escrita entre 1940 e 1962, só teve sua publicação autorizada 14 anos depois.

Outra grande figura da física nuclear, Sakharov, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1975, foi em 1980 despojado de todos os seus títulos e vantagens como grande cientista, e exilado para a cidade fechada de Gorki. Só em 1986, após a "glasnost" de Gorbachev foi autorizado a retornar a Moscou.

Definitivamente os "anos de aço" foram mais brutais que os "anos de chumbo".

Nem adianta dizer que a utopia socialista não se realizou na Rússia, mas realizar-se-ia alhures. Há uma brutalidade ínsita no marxismo-leninismo, que se manifestou tanto no socialismo louro da Europa Oriental, como no socialismo moreno do Caribe, no socialismo negro dos africanos e no socialismo amarelo da China e do Vietnam. A violência é da natureza da besta...

CONVITE TRISTE

Agora que conheço bem a obra de Dias Gomes, lamento não tê-lo conhecido em pessoa. Minha paisagem humana e cultural ficou com isto muito mais pobre. Se o encontrasse, seduzi-lo-ia para um encontro de fim de tarde, recitando-lhe o "Convite triste", de Carlos Drummond de Andrade.

"Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.

Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira...
Vamos, beber uísque, vamos...

Eu lhe prometeria que não seria uísque nacional e que falaríamos mal do Governo, qualquer Governo. Pois, como dizia Milton Campos, "falar mal do Governo é uma coisa tão gostosa que não pode ser privilégio da oposição".

Certo estou que ao fim de algumas rodadas, talvez na curva do conhaque, estaríamos do mesmo lado da cerca, concordando com as seguintes premissas:

- "Todas as revoluções passam e, como nos alertou Franz Kafka, "só fica o lodo de uma nova burocracia";

- Só há uma coisa errada com a palavra revolução. É a letra R;

- Há gente demais levantando muros e gente de menos construindo pontes.

Que pena, não ter tido um "papo cabeça" com Dias Gomes. Que pena, m,eu Deus…

NA VIRADA DO MILÊNIO

Espera-se de um economista que diga algo sobre perspectivas econômicas. Hesito em fazê-lo, não só porque é perigoso profetizar (especialmente sobre o futuro), como porque minha profissão não está em odor de santidade. Diz o populacho que nossos prognósticos são ainda menos confiáveis que as previsões meteorológicas do INPE e que quem acredita nos planejadores econômicos deveria olhar para o camelo: "é um cavalo desenhado por um comitê de economistas". Chego a esta Academia em fim de século e começo de milênio.

Este século foi o pior dos séculos. Este século foi o melhor dos séculos… Foi o pior dos séculos porque, em duas guerras mundiais e em conflitos ideológicos, religiosos, raciais e tribais, estima-se que pereceram cerca de 170 milhões de pessoas. Mais que o total de mortos em guerras, desastes e pestes desde o começo da história humana. E foi também o melhor dos séculos, porque nele houve coisas milagrosas:

- A descoberta do segredo do átomo (para o bem ou para o mal);

- A descoberta do segredo da vida (a dupla hélice);

- A morte da distância e o encurtamento do tempo;

- A escapulida de nossa prisão orbital, para bolinarmos outros planetas e, quiçá, estrelas;

- O rompimento, por centenas de milhões de pessoas, dos grilhões da pobreza ancestral.

A pobreza deixou de ser uma fatalidade, para se tornar o subproduto de opções erradas e os desvios de comportamento. Conhece-se, hoje, a grande síntese do crescimento: estabilidade de preços na macroeconomia; competição na microeconomia; abertura internacional; e investimentos massiços no capital humano. "De nada valem a torre nem a nave", dizia Sófocles, "sem o homem".

A sociedade do próximo milênio será uma sociedade globalizada e digitalizada. Ignorar essas coisas seria auto-mutilação. Nossa linguagem girará em termos de bits, muito mais que de "átomos". Na era digital, até os "literatos" terão de virar "digeratos".

A primeira coisa a fazer-se no Brasil é abandonarmos a chupeta das utopias em favor da bigorna do realismo. É tempo de balanço e autocrítica. E, sobretudo, de ginástica institucional, a fim de nos prepararmos para a quarta onda de crescimento do pós-guerra, que provavelmente advirá na primeira década do milênio, apoiada em três revoluções tecnológicas:

- A revolução da Internet, que eliminará vários constrangimentos de tempo e espaço;

- A revolução da engenharia genética, que depois do facasso da engenharia social em reformar o homem moral, pode ter sucesso na reformatação do homem físico;

- A revolução da nano-tecnologia que, pela miniaturização, substituirá nos produtos, cada vez mais o insumo físico pelo insumo cognitivo.

Para a minha geração, confiante em que o Brasil chegaria ao ano 2000 não como país emergente e sim como grande potência, forte e justa, este fim de século é melancólico. Estamos ainda longe demais da riqueza atingível, e perto demais da pobreza corrigível. Minha geração falhou. Confiteor.

Agradeço aos benévolos confrades terem aceito em sua grei uma personalidade controvertida. Prometo-vos, em verdade vos prometo, agir como os mulçumanos que descalçam suas sandálias na porta da mesquita, para não contaminá-la com a poeira, o barro e o estrume das ruas. Descalçarei minhas botas ideológicas nos umbrais desta Casa. E aqui obedecerei fielmente à regra de Joaquim Nabuco, em seu discurso inaugural de secretário geral, na sessão de 20 de julho de 1897:

"Eu confio, disse ele, que sentiremos todos o prazer de concordar em discordar; essa desinteligência essencial é a condição da nossa utilidade, o que nos preservará da uniformidade acadêmica. Mas o desacordo tem também o seu limite, sem o que começaríamos logo por uma dissidência".

Interpreto meu ingresso nesta Academia, menos como uma sóbria avaliação de meus méritos pessoais, do que como uma homenagem ao meu estado natal - Mato Grosso - que nos 102 anos de vida deste sodalício só teve um representante, Dom Aquino Correia, arcebispo de Cuiabá, falecido em 1956. Era filósofo, escritor e poeta, capaz de versejar com igual aisance em latim e em português. Personalidade eminente e pacificadora, foi também presidente do Estado, em situação emergencial, unindo assim o poder espiritual do arcebispado com o poder temporal da governança. Essa fusão dos dois poderes era privilégio dos papas antigos. Certamente não espero repetir tal façanha, mas espero não desmerecer da presença culta de Dom Aquino neste sodalício, nem apequenar a representação de meu Estado.

Agradeço a presença do governador em exercício de Mato Gosso, José Rogério Salles, e do eminente presidente da Academia Matogrossense de Letras, João Alberto Gomes Novis Monteiro, da qual me honro de ser membro.

Tenho também uma cidade-pátria adotiva, o Rio de Janeiro. Seu ilustre prefeito aqui presente, Luiz Paulo Conde, urbanista de reputação que já transpôs nossas fronteiras, costuma honrar-me dizendo que sou senador pelo Rio de Janeiro, pois ganhei eleições aqui na metrópole, perdendo no resto do Estado porque nem todo o mundo tem o bom gosto dos cariocas…

Agradeço ao excelentíssimo senhor presidente da República ter enviado como seu representante o ilustre ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, meu dileto amigo, com quem fiz várias campanhas políticas, de resultados curiosos: eu pedia votos para mim e os votos iam para ele…

Com Fernando Henrique convivi oito anos no Senado Federal e tínhamos férvidos debates sobre capitalismo e liberalismo. Referindo-se ele a um artigo que escrevi sobre liberalismo, disse que, apesar de algumas discordâncias, considerava-o de alto nível. Ao que lhe respondi:- Pudera… escrito no avião, entre Brasília e Rio, a 10.000 mt de altitude, só poderia ser de alto nível…

Agradeço ainda a presença do ilustre senador Antonio Carlos Magalhães, presidente do Congresso, meu velho amigo de andanças e paranças, cujo filho Luiz Eduardo até hoje relembro com dolorida saudade. Agradeço também a presença do presidente da Câmara dos Deputados, Dr. Michael Temer, sob cujas ordens trabalhei. Poderá ele atestar que fui um deputado presente e diligente, e diria até agradável, pois não aborrecia o Plenário com grandes falações.

Agradeço, finalmente à minha família, Stella, Roberto, Sandra e Luiz Fernando, por tolerarem minhas ausências e impaciências ao longo de campanhas políticas e acadêmicas.

Para os que me consideram proprietário de uma visão pessimista da história, não gostaria de terminar o milênio com uma nota melancólica. E usarei uma expressão do grande filósofo liberal Raymond Aron, menos popular que Sartre em seus dias, mas muito mais correto em suas previsões de futuro: "nós perdemos o gosto das profecias, mas não esqueçamos o dever da esperança."