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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afonso Celso

RESPOSTA DO SR. AFONSO CELSO

I
SUBSTITUINDO

SENHOR Octavio Mangabeira:

Impediu a fatalidade que a vossa festa inaugural na Academia tivesse oficiante condigno das melhores tradições dela e dos vossos merecimentos.
Estava incumbido de receber-vos Medeiros e Albuquerque, cuja sempre lampejante e sedutora palavra corresponderia à vossa.

Foi-nos ele, porém, arrebatado, simultaneamente com outros padrões de força e prestígio do nosso cenáculo, e a sua ausência, hoje mais do que nunca, nos desola.
Dir-se-ia que rajada funesta invadiu um templo, apagando-lhe altas e fulgurantes luzes do altar, ou que Abaddon, o anjo exterminador apocalíptico, ou anjo do abismo, quis colher, de uma assentada, muitas almas de escol, para levar primoroso ramalhete aos pés do Altíssimo.

Assenti ao convite de substituir Medeiros, porque, conforme vulgar conceito, certas distinções, se ninguém as deve pretender, rejeitá-las, quando oferecidas, descambaria em desprimor.
Monsenhor Raimundo de Brito, glória da parenética brasileira, conheceu, quando exercia o reitorado do Colégio Pedro II, o então ali estudante Medeiros, a quem, seguindo o preceito cristão do amor ao próximo, embora lhe condenando os erros, consagrou grande e correspondido afeto, até morrer.
Arcebispo de Olinda, visitando-o Medeiros, no paço arquiepiscopal, apresentou-o o prelado a outro sacerdote, nestes termos: “Eis aí o único herege entre os meus amigos.”

O mesmo diria eu, que, deplorando-lhe as ostentosas irreverências, evoco-lhe piedoso a interessantíssima figura, no momento de desempenhar a missão que tão bem lhe cabia, para, por mim, e, acredito, pela assembléia, render-lhe preitos de deferência e saudade.
Profundos dissídios políticos e religiosos nos separavam.

Ele sempre propugnou ardoroso o sistema de governo que faz derivarem de pleitos eleitorais todos os poderes do Estado. Admiti-o, outrora, mas, afinal, me convenci de que, assim como não compete aos soldados de um exército elegerem o seu general, nem aos membros de uma família escolherem seus pais, assim também a autoridade social deve ter origem diferente do falível e precário resultado das urnas.

A meu ver, precisa, no presente, a civilização, como tanto, talvez, jamais precisou, de dirigentes fortes, estáveis, independentes, superiores a partidos, corporificando indistintamente a nação integral, sem interesse e ambições particulares, oferecendo a dupla garantia de tradições ancestrais e de continuidade progressista, assegurada por sucessão predeterminada e natural.
Medeiros timbrava em mostrar-se refratário à religião, enquanto para mim está unicamente nos mandamentos daquela em que creio a solução de quaisquer problemas individuais e coletivos, – o refúgio, o consolo, a resignação, a esperança, ministradas pela certeza de reparações, em nova existência, à luz de sabedoria, justiça e misericórdias infinitas.
Manifestava-se ele depreciador implacável do Imperador D. Pedro II, de quem só depois da queda do trono me aproximei.

Entretanto, examinando homens e fatos, não sob prisma sentimental, mas ao critério da observação, experiência e comparação positivas, prezo-me de venerar, em grau ascendente, os talentos e virtudes domésticas ou cívicas do Magnânimo, julgando-o com direito à glorificação, não já do Brasil, porém da humanidade.

Sem embargo de tamanhas divergências fundamentais, muitos modos de pensar e de sentir me acercavam de Medeiros, quais, por exemplo, o patriotismo, o culto das letras, a admiração e respeito de superioridades nacionais e estrangeiras. 

Por isso, Sr. Octavio Mangabeira, inspirastes-nos, a ele e a mim, o mesmo sincero e vivo acatamento, de sorte que ambos vos chamamos para este grêmio, e se a sua saudação, infelizmente malograda, teria superado, de certo, a minha, em engenho e arte, eqüipolente lhe houvera sido em efusiva cordialidade.

E eis significativo atestado de serdes vós quem sois: espíritos antagônicos, prosélitos de doutrinas irreconciliáveis, sentiam-se irmanados, ante a vossa individualidade, e ansiosos aguardavam a vossa lamentavelmente protraída chegada ao nosso convívio, satisfação de que as vicissitudes da política privaram a Medeiros.

II
A ACADEMIA E O MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Com apreço comum, aquilatávamos as vossas credenciais.
Viestes desse viveiro de estadistas homens de letras que tem sido o Ministério das Relações Exteriores, antigo dos Negócios Estrangeiros.

Figurou nele, na quadra colonial, o exímio fidalgo, cientista, poliglota artista, Antônio de Araújo de Azevedo, depois Conde da Barca que, acompanhando a corte portuguesa, nos trouxe as suas opulentas livraria e coleções, incorporadas, após a morte dele, à nossa Biblioteca Nacional. Contribuiu, mais do que ninguém, para a elevação do Brasil à categoria de reino unido; fundou a Academia de Belas Artes: fez vir a famosa missão artística francesa, cujo mais ínclito benefício foi o de nos haver legado os Taunays.

Entre seus sucessores, eis o poeta Américo Elísio, isto é, José Bonifácio, o Patriarca, o ministro dos Estrangeiros da Independência.
Forneceu esse Ministério à Academia dois presidentes: Domício da Gama, ministro, e Rodrigo Octavio, digníssimo de o ser, investido de altos encargos diplomáticos.
Serviram na dita pasta, como ministros: o Barão de Loreto, o Barão do Rio Branco, Lauro Müller, Félix Pacheco e vós, sr. Octavio Mangabeira, o que, com Domício da Gama, eleva a meia dúzia o número de tais serventuários, eleitos membros da Academia.

Pertenceram ao mesmo Ministério, em caráter permanente ou em comissões temporárias, os seguintes acadêmicos, ou patronos de cadeiras acadêmicas: Magalhães de Azeredo, Luís Guimarães Filho, Hélio Lobo, Gustavo Barroso, Ribeiro Couto, felizmente vivos; mortos: Hipólito da Costa, Domingos de Magalhães, Varnhagen, Joaquim Caetano, Gonçalves Dias, Maciel Monteiro, Francisco Otaviano, Visconde do Rio Branco, Pedro Luís, Porto-Alegre, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Graça Aranha, Jaceguai, Oliveira Lima, Salvador de Mendonça, Lafayette, Luís Guimarães Júnior, Aluísio Azevedo, Raimundo Correia.

Alguma omissão involuntária não prejudica a afirmativa dos vínculos entre o nosso Trianon e o Itamaraty.
Ao fato de haverdes vindo de lá juntais a vantagem de possuir um nome de família caro às letras, circunstância não dispicienda, pois na Academia Francesa, modelo da nossa, sempre houve uma bancada em cujo preenchimento se atende mais, às vezes, a linhagem do candidato do que a sua bibliografia.

III
FRANCISCO MANGABEIRA

É vosso irmão o ilustre parlamentar, jurisconsulto e constitucionalista João Mangabeira.
Era-o o admirável Francisco Mangabeira, comoventemente lembrado por vós e que, imolado na juventude, deixou, mais do que efêmeros brilhos meteóricos, obra de duradoura rutilação. Compô-la, no correr de extensas e arriscadas viagens, ou de ocorrências tumultuárias. Vitimou-o uma dessas moléstias rápidas, inesperadas, prematuras, de desfecho semelhante ao de um homicídio.
Terceiranista de Medicina, ofereceu-se ao Governo para servir nos hospitais de sangue da campanha de Canudos, e lá esteve, no meio da hecatombe fratricida, até à destruição do denodado reduto fanático de Antônio Conselheiro.

Formado muito moço, partiu para o Amazonas, onde tomou parte na revolução reivindicadora do Acre, e contraiu a enfermidade que o ceifou, como a Gonçalves Dias, a bordo do navio no qual volvia ao torrão natal.

Entre tão graves perturbações, cultivou sempre a poesia, escrevendo, em toda parte, formosos poemas, e colaborando na imprensa. Inéditos ficaram muitos de seus trabalhos, mas os publicados em prosa e verso bastam a abonar-lhe a fidalguia mental, de par com levantado caráter.
Em Carta a um Morto, dedicada a um amigo sacrificado na luta, explicou que a dedicatória traduzia por si só todo o protesto e toda a piedade que lhe assoberbavam o ânimo, ante aquela carnificina. Falava a um finado, porque os vivos pareciam não apreciar devidamente a desgraça da Pátria, verdadeiro pesadelo, tragédia épica.

Comparte das forças atacantes, admirava tanto os soldados destas como os obcecados adversários, vítimas todos de horrível erro. Pobres tabaréus impertérritos, em natureza árida, abrasada, hostil, a combaterem, com bravura louca, até ao derradeiro alento, sem jamais se curvarem, num gesto de cobardia ou submissão!

Francisco Mangabeira, corroborando Euclides da Cunha, traçou, ao menos, esplêndido epitáfio para o túmulo ignorado de tamanhos heróis desconhecidos!

IV
NOTAS BIOGRÁFICAS

O assim fúlgido nome de Mangabeira ilumina igualmente não poucos lances da vossa biografia.
Enumerastes alguns, com legítimo garbo, mas discretamente calastes outros, de relevo igual, senão maior.

Cumpre-me recordá-los.
Engenheiro civil e bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas, aos 19 anos, com aprovações distintíssimas, quais ninguém ainda as alcançara ou alcançou na Escola Politécnica da Bahia, desde cedo conquistastes nomeada de destro manejador da palavra oral ou escrita.

Doutamente ali lecionastes várias disciplinas; exercestes, com idoneidade, funções profissionais.
Jornalista, formariam volumes os vossos artigos sobre diversas matérias.
Para certos homens de imprensa, observou Carlos de Laet, – o se tornarem autores de numerosos livros depende apenas de encadernação.

De vereador municipal de Salvador, vossa terra natalícia, passastes a deputado federal, aos 25 anos, e o mandato abrangeu cinco legislaturas sucessivas, mesmo em oposição.

Na Câmara, logo vos exalçastes, já na tribuna, já nas tarefas, menos em evidência, porém, porventura, mais profícuas das comissões. Elegeram-vos relator das de marinha, viação e obras públicas, finanças, as duas últimas de máxima responsabilidade.

Citam-se vossos pareceres como valiosas monografias, obras-primas no gênero, quer pela substância, quer pela forma.
Leader, proeminente em quaisquer emergências, ascendestes a 1.° vice-presidente da assembléia, o que, pela antiga Constituição, equivalia a substituto eventual do Presidente da República.
Tamanha autoridade angariastes, sancionada por belas consagrações cívicas, pela vossa operosidade lúcida, serena, íntegra, que recebestes a incumbência de traduzir o pensamento político dominante quando o Sr. Washington Luís leu a sua plataforma.

Ao organizar este o seu ministério, indigitava-se o vosso nome para qualquer das pastas, pois dos negócios de todas havíeis demonstrado amplos e sólidos conhecimentos.

V
MINISTRO DE ESTADO

Na Secretaria cuja direção assumistes, alçastes-vos ao nível dos mais laboriosos, seguros, clarividentes administradores, ministro de Estado e homem de Estado, expressões, muita vez, de duvidosa sinonímia.
Prova-o a introdução ao relatório correspondente ao ano de 1930, resenha dos trabalhos do Ministério das Relações Exteriores, sob vossa gestão, obra de tanto esmero que pode ser considerada uma das justificativas do vosso acesso à Academia.

Compreendestes e praticastes a política internacional do Brasil, desde o Império, que caiu celebrando suntuosas festas em honra do Chile; solvendo o antigo litígio de Missões, com a Argentina, submetido ao arbitramento, de que nos adveio à vitória, e havendo nomeado delegados para a primeira conferência pan-americana de Washington, onde já se encontravam, nesse encargo, os ulteriores acadêmicos Lafayette e Salvador de Mendonça; – política de lealdade e paz para com todos os povos, sobrelevada por solidariedade e cooperação, relativamente aos do Novo Mundo.

Prosseguistes, – conforme dissestes, – no caminho aberto pelos vossos antecessores, que, todos, cada qual o mais que pôde, se esforçaram em conquistar para o país uma tradição que o não deslustra, antes o engrandece.

Mas prosseguistes com firmeza e descortino particulares.
Procurastes, dessa maneira, fixar a definição do território nacional, e, portanto, o mapa do Brasil, “elucidando os limites, o que é contribuir de alguma forma, para desanuviar o futuro”; aparelhastes os serviços do ministério, no sentido de auferir deles, o maior provento possível; reorganizastes e convenientemente instalastes arquivos, biblioteca, mapoteca; incentivastes pesquisas de história pátria e o culto pelo Direito; obtivestes o custeio para visitas recíprocas de intelectuais nossos e uruguaios; atuastes elevadamente em congressos reunidos aqui e no exterior; buscastes decidir definitivamente árduos assuntos.

Dizem que, numa chancelaria européia, existe um armário, contendo invólucros, alguns volumosos, com esta inscrição: Negócios que o tempo resolverá.
Sob a vossa inspeção, bem como sob a do vosso também expedito predecessor, não se conheceu, no Itamaraty, móvel assim.

Prestes a terminar o quadriênio ministerial, fostes, sem concorrente e por unanimidade, eleito para a Cadeira de que é patrono José de Alencar, homem de letras e estadista; criada por Machado de Assis, fino psicólogo e arguto analista da vida social, e, sucessivamente, ocupada por Lafayette, estadista e literato, e por Alfredo Pujol, emérito orador, jurista e letrado, espíritos privilegiados, com os quais o vosso apresenta muitas afinidades.

VI
NA ACADEMIA

A vossa eleição só não foi aprovada e aplaudida pelos detratores profissionais da nossa companhia.
Durante os três séculos de seu prestigioso funcionamento, jamais deixou de os ter a Academia Francesa.

Valentin Conrart, em cuja casa ela se fundou, seu diligente secretário, no correr de quarenta anos, sofreu constantemente epigramas, porque nada publicara.
Boileau satirizou-o no conhecido verso:

“Je garde de Conrart le silence prudent.”
Gracejava-se, assoalhando que as suas obras consistiam apenas nas atas das sessões e nessas mesmas atas o único escrito seu autêntico estava no próprio nome da assinatura...
Académicien – écrivain mis en quarantaine – definiu um dicionário humorístico.
Ainda, recentemente, sous la coupole, reeditou-se antiga anedota. Discutiam-se candidaturas, e mais de um acadêmico pronunciava-se hostil a uma delas. Defendeu-a autorizado colega dos impugnadores, alegando:

– “Pois eu votarei em Fulano, pelas seguintes razões: é simpático, sujeito inofensivo e bem educado, qualidade esta muito necessária na Academia. Só tem contra si uma cousa: os seus trabalhos literários, mas essa cousa é tão pouca cousa que não pesa, não o prejudica.”
Nos discursos de recepção lá proferidos inserem-se, de ordinário, irônicas alfinetadas contra os recém-vindos.

Lembram esses maldizentes sistemáticos da Academia o escravo que, no desfile de triunfo, glorificação máxima, na velha Roma, acompanhava o herói, injuriando-o, no seu próprio carro majestoso, a fim de que ele não olvidasse que era mortal.

Também, em solenes ocasiões da Igreja Católica, admite-se um advogado do espírito que nega, e, simbolicamente, se mostra, ao ser proclamado um novo Soberano Pontífice, a transitoriedade da glória humana.

Segundo um pensador, o deprimir alguém continuamente uma instituição ou uma individualidade significa, afinal, depender dessa individualidade ou dessa instituição, fazer parte dela, como os bacilos do corpo que infestam, mas de que se nutrem.

A agressão veemente e pertinaz implicitamente reconhece e confessa a influência, a superioridade, do agredido sobre o agressor, e “a luta é, não raro, uma colaboração”.

Acresce que os mortos por semelhantes verdugos costumam rigidamente sobreviver-lhes.
Podem, na sua tenuidade – insiste aquele pensador, – o pó, o fumo, a nuvem esconder uma estrela, mas pó, nuvem, fumo passam depressa, enquanto a estrela permanece impassível.
Camadas de lixo sobre um diamante não lhe destroem o brilho e o preço.
A questão é ser estrela ou diamante.

Joaquim Nabuco assinalou quão fácil é a arte de denegrir, ao pronto alcance de qualquer imbecil, mas a única que vale, a arte verdadeira, é a de encarecer e admirar, é a de criar, não a de demolir.

VII
OBRAS LITERÁRIAS DO SR. OCTAVIO MANGABEIRA

Argüiu-se-vos, como a Lauro Müller, Santos Dumont e Gregório Fonseca, a exigüidade da bagagem literária.
Ignorância ou má fé.

Com a carta em que formulastes a candidatura à Academia, oferecestes-lhe cinco obras, algumas em segunda edição: Christus 1mperat; A Nação e os Problemas de Governo; Tradições Navais do Brasil; Pelos Foros do Idiorna; Voto de Saudade.

Cada uma delas preenche os requisitos dos Estatutos: tem reconhecido mérito, perante as letras.
Suscitaram todas elogiosas, fundadas e competentes apreciações, como as dos Srs. Melquíades Picanço e Carlos Pontes, que lhes apontaram a nobreza do pensamento, plasmado com elegante perícia e correção.

Na primeira, Christus 1mperat, afirmastes, destemeroso do respeito humano, a vossa fé religiosa, intensamente católica.

Seguistes o exemplo de Chateaubriand, como vós, ministro das Relações Exteriores, de quem referistes o curioso caso de ser acusado por um de seus secretários, quando, em grave momento político e diplomático, chefiava uma embaixada, de só se ocupar com eles de bailes e mulheres, – increpação que ninguém ousaria irrogar-vos.

Entretanto, o genial apologista de Le Génie du Christianisme, exatamente na hora em que o seu auxiliar lhe atribuía futilidades, cuidava de obra bem séria: – a composição de suas famosas memórias.
Isso prova, ainda uma vez, o erro e injustiça de aparentemente insuspeitas informações, até oficiais.
Afirmou Chateaubriand: “A religião que eu tenho a glória de defender e propor à veneração dos homens é a religião que convém a todas os tempos e lugares, simples com os povos simples, esclarecida com os povos civilizados, inexcedível em sua moral, sempre adequada ao momento, religião de paz, que mais ama perdoar do que punir, que deve a duração às suas vicissitudes, e cujo martírio serve apenas para lhe assegurar a vitória.”

Chegais à conclusão idêntica, professando a salutar filosofia do Evangelho.
Em A Nação e os Problemas de Governo – delineais sagaz e patriótico programa, insistindo na necessidade da defesa da União, “a nossa vida e penhor de nossa glória”.
À complexa questão da coexistência, independente e interdependente, da União dos Estados aplica-se o velho apólogo norte-americano da mão e os dedos.

Desiguais, autônomos, formam, todavia, os dedos, com a palma, um só órgão: a mão.
Tirado algum dedo, a mão fica mutilada; mas, separado, o dedo nada vale, perece.
Concorrem todos os dedos para que a mão execute o seu trabalho.
Empenhem-se, concitastes, todas as unidades que a compõem pelo desenvolvimento material e moral, não só do trecho que territorialmente representem, como pelo do conjunto das mesmas unidades, de modo que a expressão Estados Unidos do Brasil signifique realmente solidariedade, coesão íntima, vinculação indesatável.

Que à palavra política se deixe de ligar, como desgraçada e geralmente hoje acontece, a impressão de conchavos, nos quais aquilo que menos entra costuma ser o interesse público.
Reabilitem-se os políticos pelo acerto das diretrizes e moralidades dos atos.
Eis aí sentenças vossas, próprias a se inscreverem no pórtico dos estabelecimentos governamentais.
Em Tradições Navais do Brasil, descreveis, concisa e substancialmente, o passado de nossa Armada, gloriosa na paz e na guerra, – na guerra, por soberbas vitórias; na paz, por haver, quando menos, mais de uma vez, circunavegado o planeta, desfraldando galharda o nosso pavilhão entre as mais remotas gentes.

Numa dessas viagens levou, como embaixador à China, um futuro acadêmico, o na época, Artur Silveira da Mota, depois almirante Barão de Jaceguai.

Chegou à primazia na América, quando a guerra da secessão aniquilou a dos Estados Unidos.
Hoje, a sua situação se resume em triste lacônica frase: pessoal brilhantíssimo com material imprestável – situação deprimente que urge remediar, sem hesitação, sob pena de se trair o apelo de Nelson e de Barroso diante do inimigo.

País com extensas costas e rios navegáveis, como o nosso, destituído de marinha semelha belo pássaro possante, ansioso por magníficos surtos, e a quem tirassem as asas. Parafraseio nisto eminente estadista.

Em Pelos Foros do Idioma registrais vossos atos e palavras, equivalentes a atos, na defesa do elemento que, com a religião, mantém e fortalece, mais que todos, a coadunação e homogeneidade pátrias.
Vivos aplausos daqui e de além-mar aclamaram essa atuação.
Timbrastes sempre, consoante a frase inicial do vosso discurso, em zelar com carinho tudo o que escreveis e tudo o que proferis.

Com efeito, cultor do vernáculo e do discreto frasear clássico, o vosso senso atilado e progressista, conhecendo a evolução das línguas, sabe que se acha em nítida formação a brasileira, que se há de fatalmente diferençar da lusitana, como esta se diferençou da latina, diferençada também de idiomas anteriores.
Já possuímos prosódia, vocábulos, construções sintáxicas, peculiaridades, modismos, positivamente nossos, e que, de dia a dia, se opulentam.
Virá a independência.

Acertadamente, todavia, procedestes, lidando pela expansão e prestígio do linguajar português, que é o de um dos mais vastos e auspiciosos redutos da latinidade.
Prescrevestes aos vossos agentes diplomáticos o mesmo empenho, por todos os meios idôneos e oportunos.

Defender a preservar a língua nacional, – na vossa judiciosa recomendação, – é uma das mais expressivas formas de preservar e defender a Pátria.
Contra as praxes, falastes em português, abrindo, nesta capital, um congresso, onde quarenta e quatro delegados estrangeiros constituíam considerável maioria.

Obtivestes a inclusão do nosso idioma entre as línguas oficiais de congressos europeus e americanos.
Promovestes a tradução para italiano e francês de produções de autores nossos, estimulando a propaganda da nossa intelectualidade no mundo culto.

Por esses serviços, de ordem literária, fizestes jus ao título de paladino da linguagem que, em memorável oração, conferistes a Carneiro Ribeiro, mestre de Rui Barbosa.

VIII
RUI BARBOSA – OS IDEIAIS DA BAHIA

Voto de Saudade encerra a saudação que erguestes, no Congresso Nacional, a este vosso insigne conterrâneo e particular amigo, seguida do parecer que emitistes sobre o projeto de lei relativo à aquisição, pelo Governo, da casa onde ele residiu, seu mobiliário, biblioteca, arquivo, manuscritos e propriedade intelectual de obras inéditas.

Em ambas essas produções, sustentastes exuberantemente que ele mereceu o epitáfio de sua própria autoria: Estremeceu a Pátria; viveu no Trabalho; não perdeu o Ideal.

No discurso, viu o emérito ex-ministro de Estado e ex-senador federal Dr. Francisco Sá, não só a evocação da figura imortal de Rui, como a ressurreição deslumbrante de sua eloqüência.
E o ex-ministro do Supremo Tribunal, em má hora dele afastado, Dr. Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, continuador ilustre de nomes preclaros na Independência os dos Visconde de Pirajá e de Torre de Garcia d’Ávila, enunciou sobre o mesmo discurso este juízo, no teor das suas luminosas sentenças: “Honrou as tradições da Bahia, provando que ela não perdeu o primado da eloqüência e os generosos ideais, nutridos pelos seus grandes estadistas.”

Realmente, essa e outras orações vossas, constantes dos Anais, convencem, como a de hoje, de que subsiste aquela primazia.

Quanto às tradições e ideais baianos, nenhum bom brasileiro os poderá esquecer nem preterir.
Foi na Bahia que se estabeleceu o primeiro Governo Geral da colônia, destinado, na frase do ato régio que o instituiu, a conservar e enobrecer o Brasil.

Ali aportaram essas altas, puras, construtoras, abençoadas figuras dos nossos fastos, – os Jesuítas.
Ali, os moradores briosamente lutaram contra a invasão holandesa inicial.
Ali, obedecendo ao verbo inflamado de Antônio Vieira, repeliram os assaltos dirigidos em pessoa por Maurício de Nassau, inflingindo-lhe o primeiro revés.

Ali, o sangue de martírio da mulher brasileira, na pessoa de Joana Angélica, ungiu a bandeira libertadora.
Ali, como registrastes, se organizou a primeira esquadrilha nacional, comandada pelo lendário almirante improvisado João das Botas.

Ali, encetou o seu, sob múltiplas faces, benemérito governo em o Novo Mundo o Príncipe Regente, depois D. João VI.
Ali, ocorreram dois acontecimentos mais decisivos para a Independência do que o de 7 de Setembro: a abertura dos portos e o 2 de Julho.
Ali, funcionou a capital do país, durante mais de 200 anos, fecundos em obras de arte que dão direito à cidade, como a Ouro Preto, ao brasão de monumento nacional.

Ali, surdiu a trindade augusta, constelação, a que se agrupam outros astros, suficiente por si só para iluminar os nossos horizontes e nortear os nossos rumos: Cairu, Castro Alves, Rui Barbosa.
Batizou Tomé de Sousa a povoação nascente com o nome de Salvador e lhe outorgou, por armas, em campo azul, uma pomba, tendo no bico um ramo de oliveira, e a divisa – Sic illa ad arcam reversa est.
Nome, campo azul, armas, divisa simbolizam: salvação, reflorescimento, confiança, não obstante quaisquer catástrofes.

Eis os ideais da Bahia e do Brasil, eis-lhes a superna missão.

IX
OUTRAS OBRAS

As cinco composições que, sucintamente, acabo de apreciar, estimaram-nas (e o subscrevo) abalizados julgadores como atestados da alta consciência literária, a serviço das boas letras, cujos tesouros aumentaram.

Depois da solução de continuidade imposta pela revolução à vossa carreira pública, produzistes outras, também credoras de caloroso apreço, pelo polimento do estilo, exatidão de fatos narrados e pureza moral.

Pertencem a esta série as cartas abertas que endereçastes ao emérito embaixador Raul Fernandes e ao modelar magistrado Hermenegildo de Barros.

Há ainda as dirigidas aos eminentes Srs. Getúlio Vargas e Assis Brasil, infelizmente indivulgadas.
Com a epígrafe – Um pregador da Paixão: Padre Elpídio Tapiranga, escrevestes um primor de colorido descritivo, e comoção, tão delicada quão vibrante.
Pintais a procissão, na Bahia, do enterro do Senhor, “um dos atos mais tocantes que ainda, em nossos dias, se celebram em toda a Cristandade”.

Comparais-la com a de Sevilha, de antiga e universal notoriedade, e hoje interrompida pela intolerância que levou ao excesso de se dispararem tiros, no derradeiro préstito, contra a imagem da Virgem.
Desenhais, à maneira de Pierre Loti, a capital da Andaluzia, – ruas estreitas, pátios ornados de laranjeiras, jardins por onde vagou Murillo, a catedral, insigníssimo monumento da Fé.
Na procissão da Bahia, a população inteira corrobora a sua fidelidade à cruz chantada em seu solo pela frota cabralina. Carregam o pálio altos personagens: os presidentes da Província, no Império, os governadores do Estado, sob a República.

Não sei se os interventores, na recém-finda Ditadura.
A nota culminante do imponente espetáculo está no sermão. Pregou-o, durante anos consecutivos, o vosso amigo Padre Elpídio Tapiranga, de humildade evangélica e irradiante simpatia.
Relatais uma de suas prédicas, singelas e empolgantes, sobre o centurião romano que, no Calvário, se converteu, como o bom ladrão, e apregoou intrépido a divindade de quem, entretanto, expirava supliciado pela justiça dos homens.

Delineais finamente o perfil de outro centurião de César, o de Cafarnaum, aquele que julgou a sua morada indigna da visita de Jesus, ao qual bastaria uma só palavra para curar-lhe o escravo enfermo, e cujo – Domine, non sum dignus – o celebrante da missa três vezes repete, antes da comunhão.
O procedimento destes dois militantes ensina quão salutar pode ser a ação das forças armadas, em angustiosas situações.

A propósito do Padre Tapiranga que, com méritos superiores, jamais quis passar de simples sacerdote, exaltais a sublimidade deste ministério, feito de renúncias e sacrifícios.
E confrontais o destino de dois célebres eclesiásticos, no começo do século XVII. Um, nobre, rico, amigo do soberano, bispo aos 22 anos, cardeal, aos 37, poderoso ministro da Coroa. Outro, capelão obscuro, plebeu, pobre, combatendo os abusos do clero e os vícios da sociedade de seu tempo. Aquele, no pináculo das grandezas, este nas ínfimas camadas sociais, conquistaram ambos a veneração da posteridade.

Chamava-se o primeiro Armand Du Plessis, e o segundo Vincent, a que acrescentou De Paul ou Depaul, proveniente do lugarejo, onde nascera.

Não obstante os grandiosos empreendimentos do primeiro, entre os quais avulta o da fundação da Academia Francesa, sobrepujou-lhe o segundo a glória, com o correr dos séculos.
Enquanto vários gestos de Richelieu incidiram e incidem até hoje em censura e condenação, todos os de São Vicente de Paulo, inspiram, cada vez mais, unânimes aplausos, bênçãos, reconhecimento, por parte da imensa maioria humana, – dos desamparados, dos sofredores.
Qual dos dois o maior? – inquiris.

Na época em que viveram, ninguém hesitaria em pronunciar-se pelo Cardeal.
Hoje, prevalece e de futuro prevalecerá aquele que a Igreja erigiu aos altares e a quem a Convenção Francesa quis levantar um monumento, um dos maiores apóstolos típicos da caridade militante.
Percorríeis a Côte d’Azur, cujas belezas naturais vos avivaram recordações das da Bahia, talvez superiores, quando soubestes que partira, de certo para a bem-aventurança, o Padre Elpídio Tapiranga, fiel e valente soldado de Cristo, como São Vicente de Paulo, embora de somenos realce.
Pedira ele que o inumassem em cova rasa e proibira a usual oblação de flores, “as da ostentação”.
Atirastes-lhe, porém, de longe, essas da sinceridade, que não murcham e conservam perene olor, traduzindo compungida ternura, em termos inefáveis, que imperfeitamente acabo de resumir.

X
A QUEDA DE UM REGIME

Deploro também só me ser dado fazer pálido extrato de outro trabalho vosso, apropriado, como aquele, a preciosas seletas.

Refiro-me à narrativa – “As últimas horas da legalidade” – redigida, a 16 de novembro de 1930, no quartel do 1.° Regimento de Cavalaria, onde estáveis preso, e estampada em folhas de  São Paulo e desta capital, sem a menor retificação.

Não compartíeis a tranqüilidade do Sr. Washington Luís quanto ao desenlace da revolução.
Começastes a arrumar os papéis do vosso gabinete, sentindo que o governo caminhava de encontro a um rochedo que o despedaçaria.

Pareceu-vos inútil e contraproducente a convocação dos reservistas.
Às primeiras horas de 24 de outubro, mal recebestes do Guanabara aviso telefônico alarmante, correstes para o lado do Presidente, dispostos para um drama.
Fostes o primeiro dos ministros a chegar e teríeis sido o último a sair, de noite, se lá não houvesse ficado preso, o da guerra, General Sezefredo Passos.

Não poucas vezes, – asseverastes – no correr de vossa administração, contornastes recomendações do Sr. Washington Luís, mas entendestes que, no momento, lhe devíeis absoluta obediência.
A vossa intervenção junto a ele e ante os fatos assustadores que se iam desenrolando caracterizou-se pela diligência, circunspeção e hombridade.

Calmo, animado e animador, obstinava-se o Presidente em enérgica resistência, a despeito de sucessivas decepções.
Rodeava-o pouca gente.

Ele próprio determinara que não se franqueasse ingresso: o barco perigava: quanto menos passageiros, melhor.
Relatais minudencioso, mas incisivo e impressionante, os episódios patéticos daquelas horas históricas.
Informado do convite ou intimação para que renunciasse, o Presidente reitera ordens de forte reação.
À ameaça de bombardeio do palácio, faz, a custo, que a família se retire, e diz: “Podem agora bombardear à vontade!”

Ouvindo tiros, prenúncio talvez do bombardeio, reúne o Ministério (primeira vez durante o seu governo), declarando que todos, ao menos os civis, podiam também se retirar, ao que unânime e calorosamente, sem hesitação, protestaram que permaneciam junto a ele.

A opinião era que cedesse, mas, pertinaz, mostrava-se irredutível. Já se aglomeravam grupos suspeitos às portas do edifício. Ordenou em vão que os dispersassem. Penetram no gabinete três generais insurretos que, no vosso testemunho, se portam cavalheirosamente. Oferecem-lhe garantias; recusa-as. Ponderam-lhe que a sua vida corre perigo e querem resguardá-la; retorque que nunca fizera caso da vida e, naquele instante, mais do que nunca, a desprezava. Retiram-se os generais, advertindo-o de que ele responderia pelas conseqüências. “Por todas” – concluiu.

Cresce a agitação. Cortadas as comunicações telefônicas, invade a turba os jardins do palácio, o próprio palácio.
Permite-se aos criados que saiam. Um deles, velho servidor, pingava lágrimas sobre os objetos que reunia.

E comentais: “Minha experiência da vida ensinou-me que é mais freqüente nos humildes isso que chamam coração.”
Redobram os brados da multidão impaciente; precipitam-se graves incidentes conhecidos. Franco e leal, comunicais ao Sr. Washington Luís a impressão de que cessara sua autoridade. Insistir ali pareceria até humilhante.

Por fim, acompanhado, entre outros, por Sua Eminência o Sr. Cardeal, que interferira solicitado, com exclusivo intento de evitar excessos e apaziguar os ânimos, o ex-todo poderoso chefe da Nação, depois de abraçar os companheiros, somente para os quais pediu garantias, partiu despreocupado, se não indiferente, da sua sorte, para a fortaleza prisão.

Só pensastes em sair, após a certeza de que ele fora, sem acidente, encarcerado.
Afigurou-se-vos então o palácio quase deserto, mas todo iluminado, um grande navio a soçobrar. Automóveis afastavam-se como embarcações que conduzissem náufragos à terra.

XI
O 24 DE OUTUBRO E O 15 DE NOVEMBRO

Comoveu-me intensamente, Sr. Octavio Mangabeira, o vosso depoimento, porque, há 45 anos, assisti a cenas semelhantes, porém para mim ainda mais pungentes, porque o protagonista vítima era meu Pai. A atitude do Sr. Washington Luís no 24 de outubro pareceu-se com, em 15 de novembro, a do Visconde de Ouro Preto, sendo que este sofreu mais dura provação.
Viu assestadas contra si as armas inimigas.

Surpreendeu-o o inopinado abandono daquele com quem mais contava para a defesa, a quem especialmente distinguira e que havia sido colaborador incondicional do ministério até à derradeira hora, iludindo-o, simulando fidelidade.

Depositava nele a confiança irrestrita das consciências retas.
Ouviu a descarga que prostrou o seu colega ministro da Marinha, Almirante Barão de Ladário, de cujos ferimentos logo o inteiraram.

Afrontou as objurgatórias violentas do Marechal Deodoro, cercado de numeroso séquito exaltado.
Ameaçaram-no de fuzilamento no quartel de São Cristóvão, o mesmo onde vos enclausuraram.
Desculpável me fora o regozijo ao ver aplicar-se uma espécie de pena de talião, ou do “quem com ferro fere com ferro será ferido”, a herdeiros dos derribadores do Império.
Não! Junto meus sinceros votos aos vossos para que tais espetáculos nunca mais se verifiquem no Brasil.

E um consolo me alenta, como brasileiro que põe a Pátria acima de partidos.
É que, tanto na primeira conjuntura quanto na segunda, assim na queda da Monarquia como na da República velha, quer o chefe do governo imperial quer o do decepado quadriênio, o monarquista e o republicano tudo perderam menos a honra.

Nenhum dos dois vencidos se abateu, ou se humilhou, e, ambos, sobranceiros, souberam manter ilesa a dignidade do poder civil.

XII
OSTRACISMO

Da prisão seguistes para o exílio, – penalidade infligida, no Primeiro Reinado, aos Andradas e outros brasileiros ilustres; a ninguém sob o Magnânimo; na primeira República, à Família Imperial, ao Visconde de Ouro Preto e aos Conselheiros Carlos Afonso e Silveira Martins.

A República Nova obrigou numerosos compatrícios a se refugiarem no estrangeiro. Suspendendo-lhes direitos políticos, inibiu-os de tomarem parte, como eleitores e elegíveis, na Constituinte, que, desfalcada, destarte, de abundantes e valiosos elementos, ficou no meu pensar, conforme já o expus, justificando a minha exoneração do Tribunal Superior Eleitoral, inquinada de incompleta, impossibilitada de considerar-se a manifestação integral do sentimento e da vontade nacionais.

Na Grécia antiga, a pena de ostracismo, banimento temporário, segundo o biógrafo e moralista que citastes, Plutarco, não era castigo a criminosos e, sim, satisfação moderada concedida à inveja, à vingança, à maledicência, ao temor da maioria eventual, contra cidadãos influentes.
Sofreram-na Tucídides, Melcíades, Temístocles e o mais célebre de todos, Aristides.

Conta Plutarco que, no comício banidor de Aristides, sentara-se ele junto de um camponês analfabeto que o não conhecia. Ao votar-se, rogou-lhe o camponês que escrevesse na sua cédula de sufrágio o nome de Aristides. Espantou-se este, inquirindo: “Por que razão queres tu desterrar Aristides? Fez-te ele algum mal?” – “Nenhum, nem nunca o vi, – explicou o outro, – mas estou cansado de ouvir chamarem-lhe justo.”

Era esse, com efeito, o cognome conferido a Aristides pelos atenienses, e tão popular que de uma feita, num teatro, proferindo um ator as palavras – um homem justo, – toda a assistência se volveu para Aristides, apontando, aclamando-o.

Silencioso, atendeu ele ao camponês, escrevendo o próprio nome na cédula condenatória, uma concha, (ostracon, donde ostracismo), e devolvendo-lha.

Lavrada a sentença, retirou-se da cidade, exclamando: “Praza aos deuses que nunca Atenas se ache em emergências que a façam lembrar-se de Aristides.”
Séculos mais tarde, Hildebrando, o grande Gregório VII, mumurou, ao expirar: – “Amei a justiça, detestei a iniqüidade, razão por que morro no exílio.”

Mercê do Onipotente, não morrestes, Sr. Octavio Mangabeira, e que Ele vos favoreça com venturosa longevidade.
Antes, aproveitastes a forçada ausência da Pátria, para aprimorar-vos, viajando, estudando, trabalhando, e eis-vos, entre ovações, no grêmio dos imortais, assim maliciosamente apelidados, quando, entretanto, alguns deveras hão de sobreviver na veneração do porvir.

Depois do exílio, os Andradas serviram ainda muitos anos ao Brasil.
Aristides também, cumprida a pena, contribuiu para as vitórias de Salamina e Platéia e confiou-se-lhe a administração do Tesouro comum de toda a Grécia.

Por vossas comprovadas capacidades, sois um dos lídimos valores nacionais e atravessamos quadra em que nenhum desses valores poderá impunemente ser menosprezado.
No Brasil, conforme reflexão de um sabedor, o dia de ontem nunca foi obstáculo ao dia de amanhã, mas, ao contrário, lhe pode ser propício.

E, segundo outro: é inexato que política signifique sempre ambição. Essa é a pequena política. Chama-se a grande: dever, dedicação.

Vossos amigos, vossos confrades, vossos admiradores, isto é, todos os brasileiros sensatos e justiceiros, almejam que ao vosso regresso à Pátria suceda a vossa restituição aos postos de direção e responsabilidades, para os quais a Providência, prodigalizando-vos tantos predicados, parece que vos predestinou.

Sr. Octavio Mangabeira, a Academia Brasileira de Letras acolhe-vos, com júbilo, desvanecimento e confiança!