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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. OCTAVIO MANGABEIRA

SENHOR Presidente da Academia, Senhores Acadêmicos:

A fidelidade ao amor das letras, tenho-a manifestado por dois modos: primeiro, pelo carinho, com que timbro em zelar tudo o que escrevo, ou tudo o que profiro; segundo, pela profunda simpatia que instintivamente me liga às iniciativas ou aos homens, que exprimam, a cada momento, a vida literária.
Nunca fui, todavia, um literato. Não que o desejo de o ser me não houvesse tentado. Mas levou-me o destino a outros rumos. Por circunstâncias ocasionais, concluído, aos treze anos, o curso de Humanidades, entrei para uma escola politécnica. Dedicar-me de todo aos meus deveres, era o só meio que tinha de corresponder aos sacrifícios, em que se concretizavam, a meu proveito, os extremos de um pai desvelado. Estudando engenharia e, durante um certo período, ensinando matemática, vi assim decorrerem seis anos, pagando-me, de todos os esforços, com o prêmio das notas mais altas que jamais um aluno obtivera nas aulas que freqüentei.

Malgrado a relativa hostilidade do meio ou das condições em que se preparava o meu espírito, sentia irresistível sobre ele a sedução das letras, fosse a poesia, fosse a prosa, fosse o jornalismo. Estudante, por igual, de engenharia, mas de engenharia militar, na escola da Praia Vermelha, coroado mais tarde pela glória, uma das mais expressivas que já fulguraram nesta Casa, refere Euclides da Cunha que, nos seus cadernos de aula, entre operações e algarismos, não era raro encontrar-se um verso de Castro Alves. Mas o escritor d’Os Sertões parece ter preconizado, no poeta dos escravos, uma idolatria para os moços, que os moços devem tanto mais prezar quanto, em geral, com a mocidade, se extingue. Pois de mim vos asseguro que à juventude passou e a devoção permanece.

REMINISCÊNCIAS

Encantado, mas indeciso, sem folgas, ou sem lazeres, parei, ainda assim, mais de uma vez, às portas do templo. Nele já começava a oficiar, desabrochando em grandes esperanças, que tão cedo, infelizmente, haviam de fenecer, um dos meus irmãos mais velhos – Francisco Mangabeira – a quem, não o tivesse Deus levado, bem mais que a mim caberia, por todos os motivos, a láurea que me outorgastes. Com uma tristeza que se reproduz, sempre que o trago à lembrança – neste momento sofro – a maior do que nunca – vi-o pagar, aos vinte e quatro anos, o doloroso tributo, que a Poesia, bela demais para o mundo, paga freqüentemente à desventura. Tinha eu, então, dezessete. Poeta, cronista, puro homem de letras que ele fora, promessa da geração que, adiante de mim, emplumava no campo literário, não ousaria recolher-lhe a herança. A imprensa e a tribuna acadêmica, inclusive a do magistério, no mesmo caro instituto em que me formara engenheiro, de preferência, me solicitaram, quero dizer, me acolheram.

Redator, ainda estudante, do Diário de Notícias, da Bahia, coube-me a sorte de iniciar-me na imprensa em um jornal que era uma escola, não só de boa linguagem, senão de boas letras. Dirigia-lhe a redação, a que me admitiu com as indulgências de preceptor magnânimo, Virgílio de Lemos, professor de Português e de Literatura, de Filosofia e de Direito, proclamado, na província, o maior polemista do seu tempo. Faziam-lhe companhia duas inteligências de primor, duas autênticas organizações literárias. Um, fustigado impertinentemente por uma dessas adversidades com as quais só pode o túmulo, acabou na humildade e na desgraça. Chamava-se Carlos Brandão. A palavra, em suas mãos, sofria as mesmas torturas, mas brotava nos mesmos lavores que os metais de bom quilate nas mãos dos joalheiros. A flor, que aqui lhe deixo, é a que deve, pelo menos, o testemunho dos que os conheceram, aos grandes merecimentos infelizes, que repousam na vala comum. O outro, o só dos três que sobrevive, encareço a fortuna de contá-la entre os que aqui me elegeram. A mais escrupulosa das modéstias, a mais invicta das perseveranças, a mais austera das honestidades, construiu, pedra a pedra, em seu recanto, indiferente a recompensas e a títulos, praieiro, escritor de tradições e de narrativas praieiras, uma obra que faz honra à nossa literatura, Xavier Marques.

Do exercício de tais atividades – órgão de opinião e de combate, como eram o Diário de Notícias, e, em seguida, a Gazeta do Povo, em que ele se desdobrou – do exercício de tais atividades, foi um passo para a política, ars magna, consideravam-na os romanos o mais absorvente dos ofícios para os que o tomem a sério, para os que o exerçam com sinceridade. A matemática e a engenharia, pouco a pouco, se afastaram das minhas cogitações. Delas, por fim, apenas conservava, com os restos de uma cultura, não sei se malograda, os traços que me deixaram para sempre na formação mental.

PROFISSÃO DE FÉ

Resignado e obscuro, sem vanglórias e sem queixas, venho palmilhando ainda hoje, quando me abeiro já dos cinqüenta anos, a velha estrada cujos espinhos são clássicos. Aí, onde o grande livro em que se aprende é, sobre todos, talvez, o da experiência no trato das coletividades ou dos homens, e, entre os abrolhos, reverdecem flores – pois amargura não há que valha o consolo íntimo da labuta ao serviço da Pátria, quanto mais triste tanto mais amada – não sinto esmorecer na madureza a fé que me animou na mocidade. Que importa, no curso da vida, entre os rumores e as agitações em cujo seio vivemos, ora um, ora outro sino me tenham soado aos ouvidos? Acudo ao som dos mesmos campanários. Não creio senão no bem. Não amo senão o belo. Não me prostro senão ante a virtude. Não me rendo senão à inteligência, quando é ela uma força criadora de aperfeiçoamento ou de beleza. Os heróis a que erijo os meus altares e elevo as minhas preces são os que, humildes e bons, passaram na vida como um plenilúnio: e, exercendo entre os seus semelhantes, com a sabedoria na palavra, ou a sublimidade nos atos, as formas supremas da benemerência, exprimiram a energia no seu máximo, não tiveram jamais uma fraqueza em face do perigo, não se temeram do sofrimento ou da morte, aceitaram tranqüilos a cruz. Só as forças morais prevalecem. Só o espírito edifica. Bendita seja a Ciência, abençoada a Arte. Se o parlamento, a vida eleitoral, e, finalmente, a administração, mais a mais, me absorveram, não houve intempéries ou vicissitudes, inverno ou soalheira, a que não tivesse resistido, no fundo do meu ser, a alma, o sentimento que me inspira o encanto pela forma, o culto da beleza literária.

Frondejava, no campo ingrato, uma árvore magnífica. Mais bela, mais imponente, mais altiva, nunca outra se ostentara ornando os arraiais. Renovavam-se nela as florações, cada qual mais deslumbrante, com a mesma fecundidade e exuberância com que dela se derramaram sobre a Pátria, durante meio século, os frutos mais opimos. Acolhi-me à sua sombra. Vi-lhe de perto a grandeza. Empolgante, nos dias tranqüilos, dir-se-ia crescer com os temporais, com que primava o céu em pôr-lhe à prova a força e a majestade. Até que o raio a abateu... Se alguma fase abençôo, na minha modesta carreira, é a que vivi na penumbra, respirando, entretanto, a intimidade do mais ilustre dos nossos homens políticos, que já pontificaram nas letras, do mais insigne dos nossos homens de letras, que já pontificaram na política. Será mister que lhe profira o nome? Com que sagrada unção sempre o declino! Rui Barbosa. Nunca o direito e a liberdade entre os homens, em toda a face da terra – quero ter o prazer de repetir – nunca o direito e a liberdade entre os homens, em toda a face da terra, terão tido mais alto a seu serviço e, ao mesmo tempo, mais pura a arte da palavra. Era da raça daqueles a quem louvava Sully-Prudhomme o heroísmo de trocar pelo tumulto e pelas desilusões da vida pública a tranqüilidade e, com ela, o grande prazer das horas que teriam podido consagrar, como tantas outras mais felizes, aos surtos do pensamento.

Talvez porque, em todo o caso, transluzissem, nos meus atos, nas minhas atitudes, os pendores que sempre me inclinaram para o serviço das letras, sob a forma, ainda que fosse, da admiração pelos letrados, vêm de longe os primeiros estímulos, que recebi de alguns entre vós mesmos, no sentido de propor-me à investidura acadêmica. Tais estímulos, com o curso do tempo, se foram de tal modo acentuando, que acabaram por vencer-me, posso invocar testemunhos, a obstinação na relutância. Sirva-me assim de escusa a timidez, com que só pouco a pouco, vacilante, subi estas escadas.

A VIDA PÚBLICA E AS LETRAS

Não era que, na minha opinião, a posse destas poltronas se houvesse de limitar, sem restrições, aos literatos propriamente ditos. Entre as letras e a política, entre a política e as letras, há grandes afinidades. Não é fora de lei, nos homens públicos, a arte no dizer ou no escrever, nos discursos, nos artigos, nas peças oficiais, nos livros de defesa ou de combate, nas cartas e nas memórias. “Presque tous les hommes d’action de la grande lignée ont su écrire et quelques uns ont été des écrivains remarquables” – comentava, não há muito, avisado publicista da França contemporânea. “Il semble qu’on ne puisse gouverner les peuples, les aimanter vers des grandes entreprises, prendre sur eux de l’ascendant, si l’on n’est pas pourvu de certains moyens d’expression.” E, lembrando algumas figuras, colhidas “au hasard, sur les sommets”, considera que, “quand ils se racontent, ont à dire quelque chose, non seulement sur eux-mêmes, mais sur les autres, alors que tant d’écrivains de métier, ne sachant que celui-là et ne le sachant pas toujours mieux que beaucoup d’autres qui ne font pas profession d’être auteurs, souffrent de n’avoir rien à dire.”

Deputado, muitos anos, guardo presente entre as reminiscências da vida parlamentar a dos requintes no estilo, a da riqueza, a do apuro, a da espontaneidade na expressão, com que, não obstante o campo impróprio do nosso regime presidencial, viu algumas vezes exibir-se, na malsinada tribuna, a eloqüência, com os seus esplendores. No orador, componha tranqüilamente os seus discursos, que valham como páginas artísticas, ou intervenha de pronto nos debates, elaborando de improviso a frase límpida e brilhante, apropriada a dirimir as dúvidas, ou a esclarecer os assuntos, há, sem dúvida, um tipo literário; como personalidade literária se há de reconhecer ao jornalista que, sob a emoção do fato que acaba de suceder, na vertiginosidade das horas, senão até dos minutos, de que às vezes apenas dispõe, lavre, ao correr da pena, o comentário, em forma lapidar.

Não sei de página mais consagrada, ou que melhor se popularizasse, nas nossas antologias, que aquela do sermão de Mont’Alverne, em que a tribuna, onde oferece o contraste das trevas em que vive mergulhado com a luz em que mergulha os seus ouvintes, e de então para sempre os seus leitores, é, contudo, para ele, um pensamento sinistro, pira em que arderam seus olhos...

No meio dos documentos, pelos quais se assinala Rui Barbosa grande entre os maiores escritores da língua em que foi mestre, não sei se outro haverá mais expressivo do que o simples artigo de jornal, com que fulminou, ao ter notícia da prisão de Andrade Figueira, a vilania em que se amesquinhara, não o honrado brasileiro, por ela inatingido, mas a situação a que ele opunha, no aço de uma energia que nunca teve colapsos, o arminho de uma pureza que nunca transigiu.

A José do Patrocínio, ninguém lhe contestaria, tivesse ou não deixado às nossas letras o testemunho de um livro, a expressão literária que floriu naquele mestiço indômito, cuja pena e cuja palavra, na imprensa e na praça pública, reproduzindo nos quadros da vida do nosso espírito a imagem de Paulo Afonso ou de Iguaçu nos cenários da nossa natureza, iluminaram com um clarão do céu, para que todos a vissem, para que todos lhe tivessem horror, a negra iniqüidade das senzalas.

Era o maior prazer, para Bismark, o de ler um bom romance, e, dizia, não fosse homem de governo, seria romancista. Disraeli, aplaudindo-lhe o bom gosto, acrescenta que, sempre que se achava em atividade política, suspendia o labor literário, porque o tempo lhe não bastava para os negócios públicos. Não era ele, como se vê, desatento aos deveres a seu cargo, qual certo embaixador que a França teve um dado momento em Londres, e sobre quem, taxando-o de relapso, assim se expandia, em carta íntima, um dos seus secretários: “Você talvez se surpreenda ao saber que, precisamente no momento da prova eleitoral em que o ministério realista joga o seu destino, quando toda a política européia tem os olhos fixados sobre os gabinetes de Constantinopla e Saint Petersburgo, em uma hora como esta, o Sr. de Chateaubriand, que devia observar, com a mais profunda atenção, a atitude do gabinete de Saint James, só se ocupa, com os seus secretários, de bailes e mulheres.” Enganava-se aliás o secretário. Nem só de mulheres e bailes cuidava o embaixador. É justo daquela quadra, da sua embaixada em Londres, que datam os primeiros capítulos dessa obra maravilhosa, sobre a qual passarão impunemente as gerações e os séculos, e que, em uma conferência realizada em Paris, ouvi do Sr. Herriot que, se toda a produção da literatura francesa houvesse de soçobrar, mas lhe fosse permitido salvar apenas um livro, seria o que ele havia de eleger, para guardar à sua cabeceira: Mémoires d’Outre-Tombe.

AS LETRAS E A VIDA PÚBLICA

Entra, sim, e não raro, a vida pública, pelos domínios das letras. Os grandes escritores, a seu turno, acabam por exercer sobre os espíritos uma tal fascinação e, pois, uma tamanha autoridade, que são compelidos a intervir, sobretudo nas horas extremas – vede o caso, ainda recente, de Gabriel d’Annunzio – no comando dos povos, ou se fazem sentir, de qualquer modo, às vezes, sem que o percebam, como forças dirigentes.

Mais que os estrépidos de uma legião, ou o voto de um partido, falou, pela sua época em certos momentos históricos, a musa de Vitor Hugo, “eco sonoro” das aspirações dos seus compatriotas. Vibravam nas suas estrofes – assim se exprime, em um recente ensaio, um professor de literatura francesa em universidades alemãs – vibravam nas suas estrofes os ritmos da marcha, os apelos da trombeta, os rufos do tambor.

Muitos anos de propaganda, para a implantação, no Brasil, do serviço militar em novas bases, não teriam valido o que valeu um brado de Olavo Bilac, convocando a mocidade para o juramento à bandeira. A voz que então ecoou, de um a outro extremo do país, como se fosse um toque a reunir, já o país se tinha habituado à emoção, ao encanto de escutá-la. Tinha ela o esplendor da “Via Láctea”. Ouvi-la, era “ouvir estrelas”. Não fora senão ela que cantara o “Caçador de esmeraldas”.
Nada concorreu mais em nossa Pátria para a abolição da escravatura que o “Navio Negreiro” ou as “Vozes d’África”. Os que deram, mais tarde, a campanha, vencendo a 13 de maio, traziam no coração, quando nada no subconsciente, o fogo daquelas apóstrofes inflamadas pelo gênio. Contra o egoísmo ou a indiferença humana, exemplo e, ao mesmo tempo, exortação, reboava, clamando pelos mártires, a grande voz de além-túmulo, a voz do poeta hercúleo, que escreveu o “Adeus, meu canto”, aos dezoito anos de idade: “Voz de ferro, desperta as almas grandes, do Sul ao Norte, do Oceano aos Andes”.
No que toca os pensadores, não se contentando com o dizer, como toda a gente diria, “qu’ils voient loin devant eux, qu’ils préparent l’avenir et tracent la tâche aux hommes d’Etat”, remata Anatole France: ...“qui l’accomplissent avec des œillères, et parfois un bandeau sur les yeux, comme chevaux de manège.” E, como se falasse a um auditório sul-americano, fez esta pequena restrição, sem dúvida mais polida que sincera: “Je ne dis cela que pour les hommes d’Etat de la vieille Europe.”

Absurda seria a intransigência que houvesse cerrado as portas de instituições como a vossa a tantos homens que, não vivendo das letras, ou essencialmente para as letras, não se dirá, todavia, que não mereçam tais dignidades. Pensava, entretanto, e penso que, só nos casos de verdadeira exceção, deve a Academia distinguir, sagrando em seus redutos, os que, fora dos círculos estritos da produção literária, exercendo outros ofícios ou outras profissões, não se esqueceram das letras, ainda que por algum de seus aspectos, e pela palavra escrita, pela palavra falada, ou, em suma, nas grandes ações em que brota e floresce a inteligência se definiram incontrastavelmente, de modo definitivo, entre as atividades do seu meio, no juízo dos seus contemporâneos, como inequívoca expressão mental. Seja ele ou não sacerdote, seja ou não oficiante, ao virtuoso, ao crente, cabe a graça. Culpa minha não será se fostes menos severo em relação a mim.

AGRADECIMENTO

Tenho, mais ainda, a agradecer-vos. Duas vezes prorrogastes o prazo que me era concedido pelas vossas leis internas para a posse na Cadeira a que os vossos sufrágios me elevaram. Sabe, aliás, o vosso presidente que, no que de mim dependeu, fiz por bem cumprir o meu dever. Dentro justo dos seis meses que para tal se prescrevem nos vossos estatutos, escrevi este discurso. Era pelo mês de fevereiro de 1931. Na montanha, onde então me achava, por mais bela que fosse a natureza, acolhedora e tranqüila, a neve que, em grandes flocos, caía das alturas, toucando de sua pureza alvinitente os campos e o arvoredo, me fazia sentir que aquela terra não era a da minha pátria. Sim, duas vezes me penhorou, no estrangeiro, a vossa benevolência. A bondade com que aprovastes, na tarde de 25 de setembro de 1930, a candidatura de um ministro, precisamente quando expirava o governo de que ele tinha a honra de fazer parte, não foi, contudo, menor que aquela que, por dois votos espontâneos, reafirmaríeis em seguida, com a mesma unanimidade, a um político proscrito das graças do poder.
Lícito me não seria citar nomes, lícito me não fora distinguir, entre os que aqui me honraram com os seus votos, tanto sou, a todos eles, igualmente agradecido. Não resisto, entretanto, a fazê-lo, haveis de mo permitir, no que diz respeito àqueles – nada menos, de nove – que, presentes e votantes, no dia da minha eleição, o desgosto me estava reservado de, procrastinada a minha posse por cerca ou mais de três anos, os não ver figurando entre vós, hoje que enfim me venho a vós reunir.

Silva Ramos. Mestre desenganado do idioma, que foi uma grande paixão da sua vida, a flor que nunca o abandonou à lapela não deixava de ser nele um sinal de que, se a velhice conseguira embranquecer-lhe os cabelos e corcovar-lhe o corpo, não lhe penetrou jamais o espírito, desanuviado e juvenil, à beira dos oitenta anos.

Dantas Barreto. Retirado da vida publica e da carreira das armas, saiu do mundo das agitações e das lutas, onde viveu por mais de meio século, tão íntegro e tão puro como nele havia entrado no albor da mocidade, emergindo de origens modestíssimas para os altos postos do exército, da política e das letras.

Alberto de Faria. Organização combativa, a maestria com que exauria os assuntos, no pretório, na polêmica e no livro, só lhe era menor que a nobreza com que se portava nos combates. Assim até o fim, até no último – o que travou com a morte.

Luís Carlos. Lede-lhe os versos tão belos na sua simplicidade, e neles o tereis: a delicadeza nas maneiras, o primor nas qualidades, a graça, o encanto, no espírito.
Constâncio Alves. Quem o visse na modéstia do seu retraimento, mal amanhado, soturno, não pressentia talvez que ali a pena e a palavra, das que mais puderam honrar, na esfera da inteligência, servida pela cultura literária, as tradições baianas nesta Casa, sabiam ferir sobretudo as notas do humorismo, sabiam mais sorrir do que chorar.

João Ribeiro. Não vos faço injustiça a nenhum, dizendo que ele era aqui, a mais de um título, o primeiro entre os seus pares. Pode alguém concorrer à sua vaga. O que ninguém pode no Brasil, na geração dos seus contemporâneos, é ter a pretensão de preenchê-la, no gênero ou nos ramos de cultura a que ele se votou.

Augusto de Lima. Para que se tenha uma idéia do que era em beleza o seu espírito, da perfeição a que ele havia chegado na generosidade e na doçura, será bastante que se considere que a divindade que lhe inspirou na velhice, em uma eclosão de versos imortais, último canto do cisne, foi São Francisco de Assis.

Miguel Couto. Da medicina entre nós não foi apenas um mestre. Foi o mestre. Encarnação da bondade, tão chorada tem sido a sua falta, que eu quero ver nas proporções dessa mágoa, ainda lancinante, o seu mais alto elogio.

Por último, Medeiros e Albuquerque. No dia em que ele morreu, não houve no Brasil quem não sentisse que um grande claro se abrira no mundo das nossas letras. Tal era o espaço, sempre na estacada e na vanguarda, que ele ocupava na cena.

Debalde os procuramos, um por um, ao longo destas cadeiras, tão próximos ainda de nós que nos não resignamos à evidência do infinito que nos separa. Quando se regressa à Pátria, depois de um largo período, há uma saudade que, enquanto as outras se extinguem, parece que só agora, renascendo, se faz sentir na sua plenitude. É a das expressões da nossa estima, da nossa admiração, do nosso apreço, que a morte, na nossa ausência, andou ceifando. Mas fecho esta ligeira digressão, imposta por um dever a que não podia faltar, senão por sentimentos afetivos, que ainda são o melhor da nossa alma, e volto aos rumos por onde vinha vindo.

Senhor Presidente da Academia, senhores Acadêmicos.
Se há um posto, neste cenáculo, que exprima ao vivo e consórcio entre os que exerceram no Brasil o sacerdócio das letras e os que, vivendo em outros ambientes, a elas foram, de todo modo, fiéis, é este a que hoje assomo. Firmam-se aqui dois pontos culminantes da nossa literatura. Nunca o patrono e o iniciador de uma cadeira acadêmica se honraram mais um ao outro.

O PATRONO DA CADEIRA
E OS QUE PRIMEIRO A OCUPARAM

Rebento de uma terra lacerada, que havia de celebrar em tantas páginas de imarcescível beleza, hesitante nos seus primeiros passos, temperamento esquivo, uma existência que se limitou a menos de cinqüenta anos, dos quais alguns desviados para incursões na política, que tanto o ralou de desgostos, angustiado e enfermo, a natureza e as proporções da obra que José de Alencar produziu, quaisquer que possam ser as restrições que lhe tenham sido feitas, exaltam-no a uma estatura, a um como patriarcado, que lhe marca um lugar de relevo entre as nossas maiores expressões, verdadeiramente nacionais. Nem sei para um escritor de maior título, ou de mais fúlgida imortalidade, que a de adaptado, no seu gênero, a todas as culturas, permanecer no convívio, na intimidade, no amor de todas as gerações, que lhe sentem no nome alguma coisa de abençoado e paterno, que lhe consagram, como lendas da pátria, os tipos, as histórias que narrou, que lhe repetem de cor, na infância, na mocidade, na velhice, as frases, os primores que escreveu, “para ser lidos – disse-o ele mesmo, prefaciando Iracema – na varanda da casa rústica, ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os murmúrios do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros”.

Poderia ter versado os grandes temas humanos. Asas, envergadura, lhe sobraram. Poderia ter escrito, sobre a humanidade, para o mundo. Preferiu cingir-se ao círculo das coisas brasileiras, senão à ingenuidade e ao bucolismo dos episódios indígenas. Preferiu cantar em prosa sua gente e sua terra... Sintamo-lo, veneremo-lo, em cada uma dessas paisagens, rios, montanhas e selvas, por que ele estremeceu; como, em cada canto de Florença, inscreveram, na pedra, os florentinos, os versos com que se atesta ao viandante, para que este se ponha em reverência, que o gênio, um dia, por ali passou.
Por outro lado, o episódio de um filho de proletários que, aprendiz de tipógrafo ele mesmo, entra na vida pelas suas agruras, e sozinho, os pés sangrando, galga, planalto e planalto, os cimos da cordilheira, e ei-lo proclamado, em sua época, o mais atilado e profundo dos nossos romancistas, ou mesmo, a certos aspectos, a figura maior das nossas letras, é beleza que se não sabe o que deva mais provocar, se orgulho, se comoção.

Para que a carreira literária houvesse correspondido de uma vez, e condignamente, aos seus deveres, em relação à Cadeira de José de Alencar, dir-se-ia ter sido bastante que a houvesse ocupado muitos anos Machado de Assis. Aberta, pois, que fosse a grande vaga, seria então bem o caso de, animando, no país, a atividade mental, prodigalizar-se-lhe o acesso a alguém que, profano embora, militando em outras paragens, aí, com lustre, exercesse, por qualquer das suas formas, honrando, igualmente, as letras, a vida da inteligência. Haveria, porém, como fazê-lo, sem ofender a representação na sua integridade, sem a comprometer no seu prestígio, sem reduzir no seu nível? Era difícil. Mas houve...
Menor, talvez, que Joaquim Maria Machado de Assis, na esfera das letras puras, não era, no domínio mais restrito das letras jurídicas, Lafayette Rodrigues Pereira. O jurisconsulto, na hipótese, civilista de obras clássicas, humanista de grandes reservas, ostentava os predicados de uma cultura privilegiada, e, o que mais importava no caso, a nobreza de um estilo que, pela concisão, pela clareza, pela sanidade da linguagem, se elegera modelo para os doutos. Nunca publicara um romance, ou um livro de versos. Ombros, nem por isto, lhe faltaram, para que não se houvesse de abater ao peso do nome egrégio que foi chamado a substituir.

Desaparecido Lafayette, verificou-se um fato singular. Outro advogado, outro jurista, que tinha, até certa época, circunscrito o seu renome ao foro de São Paulo, primeiro no interior, depois na capital, cintilando, de longe em longe, em produções literárias, impunha-se nitidamente, pela estirpe dos seus merecimentos, particularmente pelo modo por que os pusera em relevo, à sucessão na Cadeira que, pela segunda vez, a morte desolava.

ALFREDO PUJOL, O HOMEM DE LETRAS

Nascido na então Província do Rio de Janeiro, São João Marcos, aos vinte dias de março de 1865, transplantado, porém, logo cedo, para o torrão paulista, campo sempre aberto à atividade de todos os brasileiros, que dele tanto se orgulham, escola que é, a um só tempo, de trabalho, de cultura e de civismo, era Alfredo Pujol um desses homens que se vêm cultivando desde a infância, ao calor ou sob o influxo da animação paterna, e que enriquecem, a vida inteira, o espírito, sem planos preconcebidos, pela paixão da leitura, pelo gosto da beleza, pelo fervor da sensibilidade. Não se incumbam, por si mesmas, as circunstâncias de suscitar-lhes as ocasiões, e se reduz, muitas vezes, ao círculo dos íntimos, a impressão de um valimento que as massas ignoram. Ocorram, porém, as oportunidades, e não tardareis a fixá-los. A cultura, longamente haurida na meditação e no estudo, os sentimentos artísticos, desenvolvidos pela erudição, entram a florescer, surpreendendo, em primaveras esplêndidas.
Sabiam-no, de ciência certa, os nossos meios jurídicos, uma capacidade fulgurante. Razões que escrevesse, discursos que proferisse, nos plenários da sua profissão, tinham todos a marca do mérito, despretensioso e legítimo. No entanto, ora jornalista, ora político, sempre advogado, diluía-se, em conseqüência, na dispersão luminosa, a personalidade literária que, antes de tudo, ele era. Há juristas que são homens de letras. Ele era um homem de letras que se fizera jurista. Revelara, em trabalhos esparsos, os seus merecimentos e pendores. A crítica, que lavrou, na flor da idade, sobre A Carne, de Júlio Ribeiro, é um título insofismável de escritor. Da crônica – Os meus domingos – que escreveu para O Estado de S. Paulo, há boas recordações. Não passara, todavia, no seu dizer, tudo aquilo, que, entretanto, um dos nossos maiores considerava já suficiente para conferir-lhe o direito às palmas acadêmicas, não passava, todavia, no seu dizer, tudo aquilo, de “ensaios e devaneios da mocidade, sepultados nas páginas efêmeras do jornalismo”. Foi preciso que a Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, como se lhe entregasse uma causa, se lembrasse de incumbi-lo – bendita a hora em que o fez – de uma grande missão literária. Foi mister que, em seguida, a Academia, coroando-lhe o êxito, lhe abrisse os braços efusivamente. Brotou à superfície a pleno sol um rico veio de ouro.

AS CONFERÊNCIAS SOBRE MACHADO DE ASSIS

No curso de conferências, em número de sete, que, sob os auspícios da citada instituição paulistana, Alfredo Pujol realizou em São Paulo, de 29 de novembro de 1915 a 16 de março de 1917, tudo inspira simpatia, tudo faz jus a que se batam palmas. A virtude, em Machado de Assis, associara-se ao gênio, e os dois erigiram, nele, uma entidade augusta. Celebrar-lhe a obra e a vida eram menos honrar o passado que construir o futuro. A expressão cultural do movimento cedia terreno ao seu caráter cívico. Só os que ainda não testemunharam, só os que ainda não tiveram ensejo de comover-se ante o modo por que se faz, em outros meios, a consagração dos grandes homens, lembrados, a todo tempo, por todas as formas de comemoração, à estima, o que vale dizer, à edificação dos pósteros, deixarão de estranhar a indiferença, o relativo desprezo, com que tratamos os nossos, como se já não bastassem, sobretudo no mundo das letras, tantos outros motivos de desânimo, tantas outras razões de sofrimento. Desde Plutarco, recorda, em seu último livro, um dos maiores biógrafos dos tempos atuais, desde Plutarco, o estudo, a crítica das existências ilustres é uma necessidade que se impõe a cada geração que se levanta, a cada era que surge, a cada mocidade que alvorece.

Sentiu Pujol, na exatidão dos seus termos, a magnitude do mandato que havia recebido. Portou-se à altura dela em toda a linha. Temperado nos hábitos do estudo, não lhe fez dificuldades a vastidão da matéria, para descer, em todos os sentidos, a todos os detalhes, incidente por incidente, singularidade por singularidade, da grande vida extinta, livro a livro, capítulo a capítulo, da grande obra eterna. Erudito, ilustrou a exposição com as mais preciosas observações, reconstituindo e comentando, até onde foi cabível aprofundar as análises, a formação do glorioso espírito, e o meio em que se operou. Pôs em tudo os encantos do estilo, ou as galas da eloqüência, e rematou a obra de arte, dando-a a conhecer aos auditórios, que se reuniram para ouvi-lo, na dicção magistral que lhe era um dos brasões. As “pobres letras profanas”, com que dizia contar, foram letras para o bronze, que as guarda imperecíveis. “As mãos grosseiras e rudes”, como assim ele as supunha no desconhecimento de si mesmo, foram mãos de lapidário.

Tal o escultor que, burilando a obra-prima, não imagina que o mármore, que ergue à imortalidade, é o mesmo que o imortaliza, não teria Pujol pressentido que, no monumento que compunha, se modelava, ao mesmo tempo, a si próprio. Evocando Machado de Assis, comprazia-se em fazê-lo reviver como se lhe passasse a palavra, lendo-o, vezes sem conta, aos seus ouvintes. Prestamos-lhe hoje, a ele, a mesma grata e carinhosa homenagem, como se, vencendo a imensidade, que o envolve na eterna sombra, o trouxéssemos à nossa presença, e o víssemos palpitando, redivivo, nas próprias emoções em que vibrou. Entremos um momento no rosal. Colhamos, aqui e ali, alguns dos seus exemplares, inextinguíveis, através do tempo, no viço e no perfume.

A página, a meu sentir, mais expressiva, a que melhor fotografa, no conjunto das suas qualidades, o grande conferencista, é aquela em que, na terceira conferência, estuda ele a formação estética de Machado de Assis. Sinto que a extensão me não permita reproduzi-la na íntegra. Não me privo, porém, do prazer de repeti-la, ou de rememorá-la, quando nada em alguns dos seus tópicos:

Tinha quarenta anos o novelista de Iaiá Garcia quando se desprendeu das últimas cadeias do romantismo. A sua cultura era então das mais sólidas e completas. Embebido na serena beleza antiga, encontrava na arte helênica a perfeita conformidade com as tendências de seu espírito. Era um Luciano de Samosata, nascido e criado, em pleno século XIX, no morro do Livramento, no bairro dos marujos e das quitandeiras, dos catraieiros e dos pretos do ganho... Tinha o mesmo espírito fino e cáustico, o mesmo engenho e as mesmas graças, a mesma elegância e a mesma concisão, o mesmo cepticismo sorridente e a mesma tolerância melancólica, o mesmo horror dos sistemas e das hipocrisias, que fizeram do autor do Diálogo dos Mortos a mais completa encarnação do espírito crítico da Decadência.
Machado de Assis, com a extrema originalidade que o caracteriza, não sofreu a ação ambiente da sua época; superior ao seu tempo, viveu a vida interior do pensamento, criando com carinho a obra extraordinária, que é o monumento mais perfeito e mais sólido das nossas letras. Na formação do seu espírito, a par dos autores gregos, e pelo que se pôde inferir dos seus escritos e da tradição recolhida pelos que com ele privaram, tiveram primazia Rabelais e Montaigne, Shakespeare e Cervantes, Stendhal e Mérimée, Swift e Sterne, e, na orientação filosófica, Schopenhauer.

O trato da literatura helênica desvendava a seus olhos a perfeição imortal, que Péricles resumia nestas palavras: “graça e simplicidade”. O aticismo, com a sua pureza luminosa, com o seu ritmo suave, com a sua razão serena, com a sua ironia alada, imprimiu à imaginação de Machado de Assis um encanto e uma doçura de que ainda não dera cópia a nossa escassa produção literária. Rabelais forneceu-lhe o modelo de um cepticismo comedido, naquele século trágico e heróico, de intolerância e fanatismo, e mostrou-lhe em Pantagruel a imagem de uma alma generosa e irônica, atormentada pelas violências e pelas misérias de seu tempo. O contacto de Montaigne, pensador da Renascença, absorvido pela antiguidade, comunicou-lhe o instinto da moderação e o senso profundo da vida, que constituem toda a sabedoria do autor dos Essais. Cervantes aponta-lhe, na sua triste filosofia, a irreparável ruína das ilusões, o terrível destino da condição humana, o eterno contraste entre a vida heróica e a vida vulgar, entre o sonho e a realidade, entre o sacrifício e o heroísmo, entre a bravura e a submissão, entre a piedade e a indiferença. Stendhal é, como Machado de Assis, um solitário. Isolado no seu pobre quarto de Paris, triste adolescente, sonhador e selvagem, sua alma nutria-se de profunda nostalgia e de amargas desilusões. Tal como o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas, nos seus dias turvos de pobre tipógrafo e revisor de provas, Stendhal despertou para a mocidade entre aspirações fugitivas, decepções cruéis e duros sofrimentos; mas, através de todas as tormentas, soube preservar a sua personalidade e extrair da sua própria vida a singular inspiração da sua obra. As privações e os desenganos fizeram vibrar a sua sensibilidade, apurando o seu espírito de análise e de crítica, na dissecação das ações humanas. A sua visão pessoal da vida foi a criação dessa obra admirável de psicologia, que Taine considerava a maior dos tempos modernos, rutilante de verdade e de clareza, e repassada de compadecida ternura, por entre o travo de uma intensa melancolia.

Manifesta-se, com a mesma beleza, a mesma segurança de conceitos, a mesma capacidade para as sínteses, relativamente a Shakespeare, Mérimée, Swift e, sobretudo, Sterne; e, antes de abordar a influência que pudessem ter tido no espírito do criador de Brás Cubas “as condições fisiológicas criadas pela nevrose que lhe atormentou a existência”, observa, comparando-o a Schopenhauer:

Num e noutro o pessimismo provém, antes de tudo, de uma misteriosa força íntima que lhe sombreava a visão das coisas. Mas, em Machado de Assis, o pessimismo nada tem de agressivo ou demolidor. Ele aceitou sem revolta o absurdo da natureza humana, e por isso o naufrágio das ilusões e o enigma do universo o deixaram quase impassível e indiferente. Refugiado no seu pensamento, como dentro de um sonho ele transmite à realidade das coisas a imagem sombria das suas próprias emoções, e idealiza a vida, no que ela tem de bondade ou de aspereza, através da sua alma ferida e lacerada.

Comenta, na segunda conferência, o retraimento e a discrição do autor de Dom Casmurro e Quincas Borba, e, daí, o horror que tinha pelos excessos de verbosidade. Um homem que o atalha no caminho, para, em tom descompassado, enchê-lo de elogios, é, a seu ver, um “sujeito derramado”, que lhe “faz mal aos nervos”. Uma senhora que falava muito e cujo nome era Inês, parece-lhe fora mais próprio se chamasse Inês... gotável.

Saudando Alfredo Pujol, neste recinto, por ocasião da sua posse, gracejava Pedro Lessa que, ao coro dos aplausos, que lhe festejavam, no país, a série de conferências, só teria feito, se vivo, alguma restrição, o próprio Machado de Assis, que o julgaria talvez um pouco derramado. Não, por certo, naquelas passagens em que o conferencista se refere, sem meios-termos nem contemplações, à escassez de recursos do escritor, para pintar as nossas paisagens, ou os quadros da nossa natureza. Conta que ao elaborar Machado de Assis o romance A Mão e a Luva, saído da sua pena, folha a folha, para a publicação diária, seu amigo Ramos Paz, a quem ele havia exposto o assunto da novela, sugeriu-lhe fazer a descrição do magnífico parque do Conde de São Mamede, à Rua Cosme Velho, quando tivesse de narrar o encontro de Guiomar e Estêvão no jardim: – “A natureza inspirará uma bela página ao teu romance.” Machado de Assis replicou-lhe: “A natureza não me interessa; o que me interessa é o homem.” No segundo capítulo da novela, apareceram estas linhas: “O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chácara vizinha por uma cerca. Relanceando os olhos pela chácara, viu Estêvão que era plantada com esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas curvas e duas grandes ruas retas. Uma destas começava das escadas de pedra da casa, e ia até o fim da chácara; a outra ia da cerca de Luiz Alves até a extremidade oposta, cortando a primeira no centro.” Advogado, que o era, conclui o conferencista, não sem certa irreverência: “Ora, aí está o que conseguiu Ramos Paz na descrição do parque do Conde de São Mamede. Parece o laudo de uma vistoria forense...”.

A habilidade para amenizar as longas dissertações, ornando-as de quando em vez, discretamente, de notas alegres, não obstante eruditas, ainda aí não se esqueceu de primar no gênero literário em que se estava exibindo. As relações entre José de Alencar e Machado de Assis, e entre ambos e a política, a impressão que, sobre o segundo, em plena mocidade, produziu o primeiro, em plena glória, inspiram-lhe mais de uma página, verdadeiramente interessante. Alma solitária – registra que sobre Alencar assim se externava Machado – incompatível com a política: “Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma.” Traça episódios ou personagens da época. E, com aquela sisudez que nunca o abandonava, intercala, de passagem: “O mesmo José de Alencar costumava referir a impressão que lhe davam, quando ainda criança, as reuniões do Club Maiorista, que preparava a revolução parlamentar da maioridade e que se faziam secretamente na casa de seu pai. Logo que chegavam os altos personagens da conspiração, era um reboliço em toda a casa para o arranjo do chocolate com bolinhos e manuês. Vendo daí a pouco voltarem da sala secreta as mucamas, com as enormes bandejas devastadas, Alencar, desconfiado, comentava: ‘Estes homens o que querem é chocolate...’. Quando, um dia, desiludido da política e ferido no seu legítimo orgulho, tornou ao seu doce retiro da Tijuca, ‘escabelo entre o pântano e a nuvem, entre a terra e o céu’, levou a memória daquela reflexão da sua infância, parecendo-lhe talvez que os homens que ficavam cá embaixo, ‘na grande cidade réptil serpejando pela várzea’, não queriam outra cousa senão o chocolate...”

Esboçando, já agora, a cena do crepúsculo, tudo sombra, a luz que se vai extinguindo, a treva que se vem aproximando, o silêncio, o deserto, a saudade, a desolação já no ocaso da vida que descamba, eis a delicadeza na expressão, eis na narrativa o sentimento, eis a doçura na tonalidade:

Depois de Ezaú e Jacob, bem pouco produziu Machado de Assis. Morrendo-lhe a esposa a 20 de outubro de 1904, entrou-lhe também a morte na alma, com os seus tristes presságios e as suas sombras funestas. A perda da companheira querida desatou os fracos liames que os prendiam ao mundo. Ela tinha sido a luz e o consolo da sua existência atormentada de íntimos pesares. Amando-o e admirando-o, a sua Carolina foi para ele providência e abrigo. No seu labor solitário ela foi a guarda desvelada e terna de seu pensamento. Foi o confidente das suas penas e dos amargos segredos da sua alma torturada. “Morreu a minha memória”, dizia ele, no seu lancinante padecimento. Perdida aquela alma irmã da sua, amargurado pelo abandono e pela solidão, enfraquecido de anos e de trabalhos, Machado de Assis errava na vida sem vida, apenas a ela preso pela saudade da que lhe deixara dilacerado o mísero coração. Não lhe faltou nesses dias escuros de viuvez o conforto dos amigos. Instavam com ele para que na glória da sua arte buscasse lenitivo para o sofrimento que o consumia. Era tudo em vão; a lembrança da esposa morta era a sua única razão de viver... Só em 1906 a custo se decidiu a reunir em volume algumas páginas de outrora sob o título Relíquias da Casa Velha. Abre o livro, porém, uma página nova, uma página do tempo dolorido da viuvez, em que Machado de Assis rivaliza com os maiores poetas de todos os tempos, e ascende às alturas em que ressoava a lira sonorosa de Camões. No soneto “A Carolina”, a inspiração de Machado de Assis levanta-se para o céu nas asas da saudade, entre soluços de angustiosa desesperança.

Ninguém mais apropriado que o autor das conferências da Sociedade de Cultura Artística de São Paulo para guardar entre vós o posto que foi outrora o de Machado de Assis. Nele não se sabe, com efeito, qual se afirmara maior, se a sinceridade no culto pela venerada memória, se o engenho no celebrá-la. Não julgou de outro modo a Academia. Tanto que a vaga se abriu, e muito não tardou que acontecesse, reconheceu-lhe o direito, e conferiu-lhe a Cadeira. Não é, pois, sem razão que articulo. Ninguém, mais naturalmente, chegou a esta eminência que o antigo advogado de Ribeirão Preto.

ORAÇÕES ACADÊMICAS

Solicitado invariavelmente pelos trabalhos profissionais, que o retinham sempre em São Paulo, duas vezes Alfredo Pujol subiu a esta tribuna. Uma a 23 de julho de 1919, ao tomar posse. Outra, recebendo Cláudio de Sousa, a 28 de outubro de 1924. Duas vezes a iluminou.

O estudo que fez, ao ser aqui recebido, sobre a personalidade de Lafayette, a quem substituía, não desmerece do que havia feito sobre a de Machado de Assis, a quem se uniu por laço indissolúvel. É a mesma consagrada mão de mestre, a versar e a exaurir os assuntos. Não sei até se, do ponto de vista da eloqüência, não terá pairado ainda mais alto. O jurisconsulto, o jornalista, o parlamentar, o homem de Estado, que assim discrimina os títulos do seu grande antecessor, ofereceram-lhe ensejo para, com o homem, traçar, conjuntamente, os cenários, os meios, a geração em que viveu, os atos de que foi protagonista, os episódios em que figurou. Tomemos ao acaso, por exemplo, as impressões que transmite sobre a adaptação de Lafayette ao parlamento que era, a bem dizer, o campo do regime. Vede, em um traço, a perfeição das imagens, em um detalhe, a capacidade do artista:

Lafayette, antes de ser ministro, deputado e senador, nunca fora homem de tribuna. Fez-se, no entanto, insigne orador, desde o primeiro dia em que compareceu na Câmara para falar. A sua eloqüência tinha dois aspectos opostos: a do orador doutrinário e a do orador combatente. Quando se erguia para expor e discutir uma tese constitucional ou um problema jurídico, a trama do seu discurso estava ordenada, a unidade do raciocínio estava traçada e o rigor das fórmulas delineado, por modo que a idéia sugeria repentinamente o termo exato e o rasgo flexível da locução. Repugnava a declamação e a ênfase; abominava os artifícios da retórica, impetuosa e vazia. Imperavam nas suas orações o vigor persuasivo e a profundeza dos conceitos e das sentenças. Era então o mestre exímio do direito quem falava, e todos o ouviam num silêncio enamorado e embevecido. Rompesse, porém, na tribuna, o orador combatente, rebentava nos ares, instantaneamente, com estrondo, uma tempestade. Estalavam os apartes e rugia um furacão de insultos. Lafayette cruzava os braços imperturbável e sereno, e esperava que o temporal amainasse. Transmudava-se em tais momentos o orador. Tomando agora o látego impiedoso de Juvenal, agora a flecha resplendente de Homero, destroçava os seus competidores com os sarcasmos mais amargos e os epigramas mais agudos. Mas quase sempre ria, como Fígaro ou Gavroche, e os motejos esvoaçavam como asas de abelhas doiradas.

Vede agora, em seguida, a maestria, com que, já que se ocupa da matéria, não perde o oportunidade para dar o retrato, em duas linhas, de cada um dos grandes oradores, que no momento dominavam a cena do parlamento do Império, ou nela surgiram como as esperanças marcadas pelo destino para a glória:

Este orador ateniense nobilitou assim a tribuna parlamentar na quadra do seu maior esplendor. De feito, nunca subira tanto, no Brasil, a eloqüência política. José Bonifácio, uma torrente de estrelas, era majestoso e olímpico. Sua palavra cristalizava todas as maravilhas e todas as vibrações da natureza. Silveira Martins, forjando raios na tribuna, era audaz, intrépido, tumultuoso e dominador. Fernandes da Cunha, desordenado e desigual, prendia o auditório na magnificência da sua imaginação portentosa. Cotegipe, polemista sagaz e ardiloso, negligente na expressão, era calmo e sóbrio, mas as suas réplicas tinham movimento, vivacidade, fluidez e realce, enfloradas pelos brincos facetos da sua graça encantadora. Ferreira Viana era estupendo de fantasia e humorismo. A sua ironia, ridente e caprichosa, de uma transparência cintilante, borbotava as jóias mais imprevistas da zombaria e do paradoxo. Martinho Campos, oposicionista por temperamento, era mestre nas batalhas regimentais e tinha o privilégio dos lances extremos no embate dos partidos. Ouro Preto ressumbrava um orgulho de grande raça, uma vontade tenaz e um sentimento inflexível da autoridade. Andrade Figueira, na sua bravura selvagem, na rigidez dos seus princípios, era sombrio e taciturno, ouriçado de arestas escabrosas. Estrearam-se por aquela época dois moços, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, que apareciam na Câmara com a sedução e o prestígio dos conquistadores. O primeiro, adestrando-se todos os dias na tribuna, para vir ser mais tarde o vitorioso evangelizador da abolição do escravismo, não perdia azo de relatar as suas impressões da Inglaterra e as suas recentes leituras da Revista de Edimburgo e do Times. O seu busto escultural, o timbre argentino da sua voz, a gentileza das suas maneiras completaram nele um dos nossos oradores mais perfeitos. Rui Barbosa, que logo se mediu com José Bonifácio na discussão do projeto da eleição direta, já denunciava os surtos assombrosos da sua eloqüência, predestinado a ser no futuro o gigante da tribuna, sem rival no dom divino da palavra, que ele esculpe no mármore perpétuo e reveste de um suntuoso manto de púrpura.

Haveis de convir, Senhoras e Senhores. Nenhum tributo maior poderia eu prestar, mais alto, mais adequado, mais idôneo, à memória de Alfredo Pujol, que o de reavivar, com a citação de algumas de suas páginas, a simpatia e o louvor que hão de sempre votar-lhe, os que o lerem; e há de ser para vós, ao mesmo passo, um grato prazer de espírito o de ainda uma vez admirá-las.

No discurso a Cláudio de Sousa, tratando-se, além do mais, de um escritor teatral, o campo que se lhe oferece, o horizonte que se lhe abre é, particularmente, o do teatro. Será, na forma, possivelmente a mais bela das suas produções. A poesia de Vicente de Carvalho, em cuja vaga tinha sido eleito o novo confrade, merece-lhe, nem podia deixar de merecer de uma sensibilidade como a sua, palavras de exaltação:

Não tem segredos, para Vicente de Carvalho, poeta do mar e do amor, como lhe chamou alguém, o sinistro ulular das águas revoltas, o murmúrio suave das ondas quietas sob o sudário do crepúsculo, a infinita solidão do deserto azul, a luminosa alegria das nossas praias, inundadas da espuma que brinca nas areias doiradas. O mar é o velho confidente dos seus sonhos, das suas esperanças, dos seus desencantos. Ele o confunde com as suas alegrias. Ou as suas mágoas, e o associa aos seus amores com enternecida volúpia.

Entra depois no assunto propriamente; e, em nada mais que meia dúzia de páginas, um verdadeiro encanto literário, discorre sobre o teatro no Brasil, na literatura e na cena através de três quartos de século, desde Martins Pena e João Caetano, até a atualidade. Comenta, por fim, um a um, tecendo-lhe alto elogio, os trabalhos de Cláudio de Sousa. Concita-o a prosseguir na mesma trilha. Por que motivo só descobrir, na alma humana, as suas enfermidades, que não deixam de ser, em última análise, as suas desventuras? Há ainda tanta luz e tanta flor por este vale de lágrimas... Irradia, então, na beleza destas seguintes palavras, que quero sejam dele as derradeiras hoje aqui reproduzidas, pois valem como um reflexo do grande espírito de humanidade com que passou pelas asperezas do mundo, ou pelo “mundo do pensamento e do sonho”:

A realidade não exclui o idealismo, nem impõe a reprodução dos aspectos torpes e repugnantes da vida. As coisas nobres também são verdadeiras. Não resta dúvida que a obra dramática deve exprimir as idéias do meio contemporâneo e realçar certos problemas que agitam as sociedades, copiando a imagem límpida e clara dos costumes de uma época. Cumpre, porém, encarar a vida com indulgência, extraindo dela o que possa elevar o pensamento e despertar a emoção.

A 20 de maio de 1930, naquela mesma cidade de São Paulo, que se desvanecia de prezá-lo entre os mais belos espíritos que ainda ali floresceram, finou-se Alfredo Pujol aos sessenta e cinco anos de sua idade. Aplicando-lhe uma expressão já conhecida, ocorre-me dizer, em sua honra, que o primeiro desgosto que deu aos seus amigos, ou aos que com ele conviveram, foi justamente o maior que lhes poderia ter dado. Foi o que a todos lhes causou, morrendo.
Militou na vida pública. Exerceu o jornalismo. Viveu, sobretudo, na advocacia. Mas precisamente às horas vagas, em que lavrou no campo literário, hão de ser as que mais o conservam na lembrança dos pósteros.

OS ESCRITORES E A IMORTALIDADE

Foi, não há dúvida, Alexandre Dumas uma das atividades mais fecundas, umas das imaginações mais portentosas que animaram as letras do seu tempo. Velho, a dois passos do túmulo, glorificado por muitos, agredido, atacado por outros, que até o acusavam de fraude na elaboração dos seus romances, teve a sua hora de desânimo. Sonhou que, estando de pé sobre uma montanha, de que cada bloco era formado por uma de suas obras, sentiu subitamente esboroar-se, debaixo dos seus pés, aquilo tudo que ele pensava ser pedra, e não passava de areia. O filho, que lhe herdara o nome e o gênio, advertiu, consolando-o: “Dorme tranqüilo sobre o teu granito. Durará tanto quanto a nossa língua. Há de ser imortal como a Pátria.”

Poetas! escritores! que tangeis a vossa lira, ou brandis a vossa pena, haurindo nos ideais a que servis, com o desinteresse dos apóstolos, o ânimo, o entusiasmo, a inspiração, que nunca vos abandonam... podeis sorrir da vida; porque a arte vos toma em suas asas  e vos eleva acima das tristezas e das misérias humanas. Podeis zombar da morte: porque a vós sobrevive a vossa obra, e desta irrompe uma luz, que nunca mais se apaga...

Montesquieu, que fazia não poucas restrições ao grande ministro de Luís XIII, reconheceu, todavia, na Academia Francesa, por ele fundada – são estas as suas palavras textuais – “a porção mais nobre e mais durável de sua glória”. O Conde de Saint-Aulaire, um dos mais recentes biógrafos de Richelieu, se não subscreve inteiramente o conceito, será apenas por considerar que avultam na sua obra outros serviços, porventura ainda mais relevantes. Mas, exaltando a grande criação, em que se ampliaram, de alguma sorte, os salões, onde já se punha em prática, em pleno absolutismo, o princípio da “igualdade ante a gramática, a sintaxe e a literatura”, expande-se, em todo o caso, nestes termos: “Consagrando um santuário ao pensamento, não teria ao Cardeal passado despercebido que ia abrir um refúgio à independência. Fundando o novo instituto sobre a base da igualdade, abrindo-o ao mérito, sem nenhuma distinção de berço ou de fortuna, aquele absolutista emancipava o espírito. Mas, ao mesmo tempo, o ligava ao interesse público, pela virtude de uma instituição de caráter permanente, que consagrava o respeito do passado e o zelo do futuro.”

O respeito do passado... O zelo do futuro... Feliz a instituição que, em cada geração, ou em cada época, puder dominar de tão alto as vicissitudes do presente!