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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Clementino Fraga

Senhor Maurício de Medeiros,

Títulos e trabalhos que aqui vos trouxeram, tais e tantos, todos atestam o saber do médico e professor, cedo queimado nas labaredas do amor à Cultura geral e literária. Nas justas em que vos empenhastes pela conquista de autêntica nobreza intelectual, certo a Academia entrou a consumir a aspiração, mais de uma vez frustrada, e logo refeita no lance desportivo da sedução. A idade provecta, de que falais a talho da ocasião, não se paga apenas dos dias rodados, senão também do patrimônio de saber, que só o tempo permite; mas, pelo prezar o contraste, sois agora o acadêmico nupérrimo, o que, ao léu da fantasia, não deixa de ser uma forma graciosa de transigência com o último minuto. Também eu sinto o travo desse acinte melancólico: juntos vimos fugir a mocidade no ardor de suas paixões e na doçura de seus pecados; devemos convir entretanto, que a condição acadêmica não pressupõe vida generosa, embora aqui em maioria à beira da velhice se mostrem, uns reticentes ediscretos no denodo da aparência jovem, outros menos rebeldes e mais desenganados, quase vencidos pela canities morosa, de Horácio, contem pelas brancas as ilusões goradas. Paul Claudel, chegando à Academia Francesa em 1935, teve a impressão de um “Parque de Sombras”, em cujo âmbito gerotrófico a puberdade acadêmica começa aos oitenta anos. Fontenelle, na casa dos noventa, desafiado ironicamente por uma dama galante, disse com bonomia:“Ah, madame, se eu tivesse ainda oitenta anos...”

Dir-se-á que a cronologia da vida, em seus derradeiros alentos, pode ser aquecida do conforto filosófico, entre pobres reflexos e sombras amáveis. É o que fazeis, com lucidez intrépida no feitiço da frase literária.

Mísero de mim, que, sem desdém pelos milagres da ortobiose, com Joubert, penso que o melhor “é morrer jovem o mais tarde possível”. Mas, como estimar essa juventude? Qual seu verdadeiro teste? A lucidez do espírito? O bom humor no rumo consciente da velhice? A assistência caridosa da ilusão? A sensualidade? Não ouso responder. A considerar de ânimo sereno o meu caso, sinto deveras (e comigo devem sentir nossos cordiais confrades da Cadeira 41) que já vai tardando a conformidade do voto íntimo com a grata realidade...

Convosco a situação é outra: tranqüila, confiada e nobremente sentimental. Teimais em “amar a beleza em todas as suas formas de expressão” –lema emotivo, que se ajusta à sentença de Kafka: “Aquele que conserva a faculdade de ver a Beleza jamais envelhece.”

Menos tardia, que advertida no preparo de expressiva recepção, vossa entrada nesta Casa aguardou a consagração da unanimidade para coroar uma existência em tanto auge  vivida na embriaguez do ideal. É certo que a Academia não tem preconceitos de idade, filiação ou preferências culturais, e, entre “valores e melindres bravamente porfiados”, só lhe não move a simpatia pela juventude inédita, ou apenas apontada na arrogância estulta do combate à tradição – “seu primeiro voto”, no postulado  fundamental de Machado. de Assis. Em regra, os nomes em apreço são colhidos entre sábios e poetas, artistas e geômetras, escritores de todos os gêneros, prelados, juristas, filósofos,oradores, homens de estado, diplomatas e outros titulares: tanto são os que,capazes de curiosidade cruzada, em boa compostura, merecem nossos  sufrágios, sem embargo da modéstia, que aliás se não recomenda como virtude acadêmica, a não ser na afinidade com o orgulho. Adentro destas paredes, a prescrição da igualdade começa pelas poltronas, historicamente iguais, desde Luís XIV, que assim as quis, na Academia Francesa, para preservar a paridade doméstica. Daí o tratamento simples, equânime e regimental de “Senhor”, ainda que a alguns sobrem títulos políticos, diplomáticos, eclesiásticos ou nobiliárquicos, como conquista vitoriosa de outras andanças. A propósito, conta-se que naquela ilustre Companhia, ao receber a dignidade acadêmica, o Cardeal Maury, repetindo a impertinência do Cardeal Dubois, um século antes, exigiu o título de “Eminência”, correspondido a ponto pelo sarcasmo dos confrades no tratamento de “sua insolência”.

OS MÉDICOS NA ACADEMIA

O Acadêmico Medeiros e Albuquerque, polígrafo, romancista, ensaísta, jornalista de milagrosa atividade, cuja memória tão cara ao vosso coração continua alumiada de nossa saudade. Medeiros, recebendo a Fernando Magalhães, aludiu às figuras médicas da Academia, nestas palavras:

Somos um pouco mais previdentes do que parece na escolha das especialidades dos médicos que elegemos. Notai que, se temos grande médico que, pela aclamação de seus pares, é o especialista máximo de todas as especialidades, temos um que agora é higienista, mas já foi psiquiatra, médico de loucos, e ainda neste momento acaba de agitar perante o Congresso a questão da assistência aos psicopatas; temos outro que escreveu um notável tratado sobre a semiótica das moléstias nervosas, e temos, enfim, um terceiro cujos trabalhos sobre moléstias na fronteira da neuriatria e da psiquiatria são justamente célebres. Quantos especialistas de moléstias mentais! Vê-se que nos garantimos.

No apreço desta advertência, aliás tradicionalmente amparada na sentença do Rei-Sábio – “sem a loucura nada é agradável na vida” –, e não sem sérios motivos de  convicção, recebemos um psiquiatra, acreditado dos maiores, bem comportado de sua história pregressa e de boa cultura, raias além da especialização médica. Realmente, tratando-se de insanidade mental, os casos de fronteira patológica são os mais curiosos, porque bem compostos na aparência normal, são às vezes, até simpáticos nas manifestações de inteligência. Apostrofando a humanidade, disse Boileau:

Tous les hommes sont fous, et, malgré tous leurs soins,
Ne different entre eux, que du plus ou du moins
.

Felizmente o diagnóstico é de poeta...

Sem nos colocarmos do lado de Euriniyes, parece que hoje a loucura é mais escandalosa, senão mal dissimulada, ou menos contida no círculo de família, dos alienados, alienistas e psicanalistas; talvez porque os fatos sociais de caráter psicoemocional, cúmplices de consciência mórbida, recrescem em ação e assomam à mentalidade humana. Não tardará que os psicólogos, em crise de explicação, queiram vislumbrar a razão nos loucos, ante os desvarios sociais e políticos do mundo atual. Sobre o certo, a consciência, que é apenas um momento na vida psíquica, se torna cada vez mais vulnerável.

EVOLUÇÃO ESPIRITUAL

Em vossa obra intelectual, Sr. Maurício de Medeiros, a cultura científica deu os primeiros frutos, recolhidos com entusiasmo pela geração que ouviu o professor na Universidade do Brasil. Devemos esperar menos da Ciência que da Arte do escritor, a duras penas conquistada, na intimidade de longo contato com as Letras mais belas.

Vejamos como madrugou o jornalista. Em 1908, apenas egresso da Faculdade, substituístes a Medeiros e Albuquerque na seção diária da Gazeta de Notícias, sob o título: “Aqui, Ali, Acolá”, crônica sobre fatos da cidade, dos Estados e do estrangeiro. A 6 de agosto, daquele ano, foi publicada a primeira crônica em tal amanho, graça e polidez de linguagem, que impressionaram a Oliveira Rocha – o Rochinha, em seu artigo “Bastidores”: “o público ficará surpreendido, como nós mesmo ficamos, com esse fenômeno extraordinário de apropriação em que a ortografia é o mínimo – está claro, e em que é tudo a maneira, a análise, a exposição, o comentário.” Era o maior elogio que podíeis receber a comparação com Medeiros e Albuquerque.

Já se disse que o jornalismo é Literatura sob pressão – pressão do tempo, do espaço e do público. É de Medeiros o conceito: “Um jornalista é um homem enciclopédico,  que entende de tudo, sobretudo das sentenças profundas e definitivas. Em um artigo de jornal, ele é capaz de fazer caber toda a história universal.” Condensar, abreviar e simplificar é função de quem pretende liderar a opinião, atuando dentro dos seus reflexos, conforme o momento em que incide a ação sobre o público. O jornal  inspira o comentário, e a conversa o transmite por contaminação direta de pessoa a pessoa.

De então até hoje o jornalista numeroso não mais desertou a sua coluna diária, sempre alertada para discutir problemas políticos e sociais. Há muito desinfiltrado da política partidária, exercida antes de 1930 com bravura intelectual, quando a inteligência e a cultura eram prezadas pelos homens de estado, no intento de aforar sucessores febrilmente fizestes política no Estado do Rio, in illo tempore (conheceis, naturalmente, a tradução popular e faceta das palavras do evangelho, corrente em Niterói e adjacências). Admira que na República nova, que “tão depressa envelheceu”, se é que não nasceu já decrépita, o combatente vencido pelo desânimo não tivesse chegado à conclusão de Santayana: “todos os governos são bons... para os governantes.”

Algures, num dos vossos livros, confessais, sem falsa modéstia: “Deu-me a natureza a capacidade de sentir vibrantemente, em sintonização com a época que vou vivendo. Não me prende o passado, senão para melhor compreender o presente e bem augurar do futuro.” Bem o dissestes. Nas ressonâncias da voz, como nos embates do Jornalismo militante, tal se revela o líder universitário, a espaços, o ensaísta e, diariamente, o cronista que vive o seu momento social, areja com a sã doutrina o ambiente político, comenta erros administrativos, misérias clandestinas, em pleno desabafo de opinião sobre “– idéias, homens e fatos”. Tudo sem aridez nem asperezas, senão com tolerância e simpatia humana, quase sempre expondo o mal para apontar o bem. São de tal índole as argüições do comentarista e vulgarizador de aquisições recentes, que, às vezes, tomam o feitio didático, tão do vezo do professor. Vossas crônicas, como disse Plínio Barreto, “na sua brevidade calculada encerram muita reflexão preciosa e ministram muita informação útil”. No livro, como no jornal, reconhecemos “no autor um homem”, como disse Pascal.

INFLAÇÃO LITERÁRIA

Em se tratando de cultura geral agita-se o problema da extensão da obra escrita, sua mediocridade e inconfidência com as aspirações literárias. Fidelino de Figueiredo, crítico, ensaísta e pensador, considerou, atalhando o propósito : “Há um movimento geral de ascensão das massas despertas, de forte curiosidade intelectual, ardente sede de saber e de informação realista, acerca de tudo, que as facilidades de comunicação descobrem e contentam. À sombra desta manifestação de saúde é que se definiu a doença: a falsificação da cultura.”

A imprensa diária absorve e entretém o público com os acontecimentos da véspera, mais gratos de ler em colunas abertas do noticiário de sensação. Com as revistas semanais ilustradas, o rádio, a televisão, o cinema e o teatro industrial, completa-se o quadro da Literatura efêmera, ao revés da educação popular. Passam depressa, mas fica o sabor do comentário ácido, da linguagem partidária destravada e agressiva, ou do fato escandaloso. Outro elemento de colaboração malsã é a dos livros e folhetos de pura sensualidade, que aos jovens principalmente corrompem. Junte-se a isto a massa insípida dos livros a prêmio, dos versos sem poesia, da oratória sem forma nem expressão, e temos, torrencial e próspera, a Literatura instável e inflacionária. Dir-se-ia que “os livros caem dos prelos como o papel-moeda das emissões”. E a Literatura continua polarizada no medíocre, talvez porque a pressa da leitura não dá para educar o gosto. Ao cabo de contas podemos repetir com Machado de Assis, naturalmente saudoso dos clássicos: “Muitas águas passaram sob as pontes da Literatura que nos encantou.”

O livro bom, doutrinário e exemplar, de si mesmo raro, só interessa a raros leitores.

Num ensaio sobre o destino dos livros, Celso Vieira, disse com acrimônia: “Os livros enxameiam como os efêmeros, derredor da luz bruxuleante, vindos da mesma noite, para o mesmo nada.” E pois, a inflação literária torna cada dia mais difícil a aquisição de um patrimônio cultural. Como acudir a esse problema em transe de salvação? O dia não tem mais de 24 horas, diz André Billy, que lança no ar a interrogação: pela instauração de novo humanismo? Pelo incêndio das bibliotecas? Pela bomba atômica? Respondam os pontífices da hora presente.

A CADEIRA 38

Vosso entusiasmo pelo patrono condiz com o de Graça Aranha, fundador da Cadeira 38. Poucas palavras lhe reservais. Tendes a virtude da opinião expressa em sucinta claridade.

Tobias Barreto foi um dos ídolos de sua geração. Contemporâneo de Castro Alves, sua cultura precoce o aproximou do poeta, de quem pouco depois se separaria, quando ambos estudantes em Recife se tornaram chefes de grupos apostados na admiração de duas atrizes: Eugênia Câmara e Adelaide do Amaral. Da platéia do “Teatro Santa Isabel”, a polêmica tomou a forma graciosa do ritmo. Disse Tobias:

Sou grego, gosto das flores
Dos perfumes, dos rumores;
Mas minha alma inda tem fé...
Meus instintos não esmago,
Não sonho, nem me embriago
Nos banquetes de Friné! ...

Respondeu Castro Alves, de improviso:

Sou hebreu ... Não beijo as plantas
Da mulher de Putifar.

Considerando sobre a luta universitária em Recife, diz Pedro Calmon em seu livro Vida e Amores de Castro Alves:

Em 1866 brigaram no Santa Isabel não apenas dois partidos juvenis de atrizes que se detestavam – a cortesã ateniense e a hebréia hipócrita, porém, dois temperamentos literários polarizados pela divergência de suas atitudes em face da vida.

O curioso é que quase na mesma época, segundo referis, houve em Portugal uma contenda de jovens por duas atrizes: a Adélia Dabedeille e a Clara Belloni. Entre os bellonistas estava Camilo Castelo Branco, então mais turbulento e brigão, que narra sua disposição em “deixar-se bater e matar por uma mulher, doente, casada, e, de mais a mais, honesta...”

Narrais a seguir, sobre Graça Aranha, sua inquietação espiritual, assoberbada na juventude e mantida enquanto viveu. Nele o espírito de revolta atestava o voto de mocidade perene. Até o último sopro de vida teve a companhia dos moços que o cercavam no penhor de viva admiração; e, como Unamuno, entre eles, parecia o mais jovem. Entretanto, como disse Manuel Bandeira, Graça Aranha não teve discípulos. “Não foi um mestre, no sentido da palavra, senão um companheiro mais velho cuja adesão deu ao movimento (modernista) o prestígio de sua glória pessoal e o calor do seu generoso entusiasmo.”

A Cadeira 38 teve ainda a enfeitá-la a glória de Santos-Dumont. Graças ao poder legislativo o governo vai publicar em francês e inglês a obra de Henrique Dumont Quem Deu Asas ao Homem, que a Academia recebeu e festejou com o maior apreço.

De vosso antecessor vos ocupastes com desvelada atenção por sua alentada obra literária. Celso Vieira teve a virtude da fidelidade à vocação; no enlevo do gênio e no culto da graça, disse à maneira de confissão:

Revejo com emoção as obras e as vidas ilustres, que me fascinaram, os belos templos da Arte escrita, devotamente percorridos neste longo itinerário, e em cada volume, em cada frontespicio, o nome do glorioso arquiteto: Dante, alma religiosa e poética das horas medievais; Luís de Camões, épico e lírico da renascença marítima; D. Miguel de Cervantes, eternizando o império solar da Espanha na Literatura; Chateaubriand, erigindo o mausoléu do romantismo francês com a sua piedade e o seu desencanto; Eça de Queirós, demiurgo da fase naturalista em Portugal; Olavo Bilac, revelador das núpcias de Eros e Psiqué no Brasil. Durante meio século, repassaram as Letras de fogo dos textos mágicos sob os meus olhos.

Foi autêntico homem de letras, admirado entre os da sua geração. Ensaísta, crítico, esteta da língua, foi dos nossos maiores prosadores: boa formação humanística, madrugada na leitura dos clássicos antigos, para logo dilatados os horizontes de sua cultura na visão dos cimos literários de todos os tempos. Da alegoria dantesca seu olhar contemplou Beatriz Portinari – a “Beatriz Paradisíaca”, eternizada em símbolo poético; da Renascença não perdeu de vista a ebulição cultural, no qual tempo entram os rútilos tons crepusculares do século XV e a aurora radiosa do século XVI, que fizeram a esteira de luz dos tempos modernos.

A obra de Celso Vieira impressiona pela ascendência erudita e opulência verbal, buscadas em Pascal, Racine, Molière, La Fontaine, no grande século; em Voltaire, J.J. Rousseau, os enciclopedistas do século XVIII, sendo que mais inspirada se revela nos magos da prosa do século XIX – Chateaubriand, Victor Hugo, Stendhal, Flaubert, Rénan, Taine, Barrés, Anatole France.

Outro tanto se encontra patente nos ensaios e orações a influência dos clássicos portugueses, de encantada mira na cultura da língua – preocupação obsidente de sua formação literária. Dos escritores luso-brasileiros, mais flagrante é a preferência pelos vultos nacionais da segunda metade do século XIX, e desde 1897 pelas figuras estelares que gravitaram na órbita da Academia. Não teve simpatias pelo movimento modernista. Disse certa vez: “Vieram depois os modernistas, deformadores da Poesia e da Prosa”.

O estilo de Celso Vieira atinge a fase artística em sua prosa dos últimos tempos; liberal na adjetivação, ora neutra e flexível, ao gosto dos românticos; ora concreta  e exata, à maneira dos clássicos latinos, como podemos sentir, relendo as formosas conferências – Vênus Camoniana, Cervantes e D. Quixote, Velhice de Chateaubriand, Eça de Queirós, Olavo Bilac, Destino dos Povos no Destino das Línguas.

Na análise de sua obra bem aprendestes seu sentido e elevação; na apreciação do homem sua índole caturra, às vezes intolerante e explosiva, humor desigual e  imprevisível disposição de ânimo. Assim o víamos, entre nós, de semblante carregado, o olhar velado pela sombra dos óculos, fechando uma fisionomia que não conhecia o sorriso, e só, a espaços, desatava em riso aberto, nervoso e breve. Assim como era, sem disfarces convencionais, ainda assim o tínhamos em muita cordialidade e admiração pelo seu merecimento, sua probidade intelectual, seus estimáveis dotes morais.

OBRA LITERÁRIA

Meu caro confrade,

Vosso primeiro livro literário é de 1923, quando já a obra científica ia adiantada, discursos e conferências sobre ensino, política, idéias gerais em Biologia, dentre as quais ouso destacar duas orações, ambas de posse, na Faculdade Nacional de Medicina e na Academia Fluminense de Letras.Conceituando sobre a orientação intelectual no governo dos povos, dissestes:

Nunca precisamos tanto da ação iluminadora dessas academias. Não só pelo que de próprio apresenta o Brasil nessa necessidade, como pelo engano que está percorrendo o mundo a abalar-lhe a organização social até as camadas mais profundas, é mister que se acendam por toda a parte esses focos de cultura do espírito, a fim de que não submerja, na onda igualitária dos tempos modernos, o patrimônio intelectual da humanidade.

E, no penhor de plena atualidade, o conceito:

No dia em que se retirasse da vida do homem o gozo intelectual abstrato, a capacidade criadora de ficção nas suas várias formas, literárias e artísticas, e se reduzisse toda a manifestação de vida a movimentos de pura ação – a humanidade perderia a maior parte de seus encantos para transformar- se num viveiro de autômatos descerebrados.

Outro livro, dado à estampa em 1931, tem o título Rússia. Impressões de viagem, sem fantasia nem crítica, esquivo até às expansões sentimentais, tanto do vosso temperamento, que a vida não corrompeu. Vinte milheiros de safra editorial. Aposto que nada acrescentou à modéstia de vossos haveres. Volume de mais de trezentas páginas, de bom aspecto tipográfico; não digo o mesmo da capa: figura mavórtica, cara de quem tem rugas no coração, quase feroz, como a retratar a ideologia que quer vencer pela violência. No texto nada que tal aconselhe, felizmente. Partindo da Bélgica, em viagem aérea, descreveis as aglomerações urbanas, a projeção das igrejas nos povoados menos densos, os campos cultivados, o Reno. E comparais:

Quantos de nós seguimos pela vida afora em voltas e torneios caprichosos, como se nos espreguiçássemos hesitantes antes de atingir o ponto mais além. Também, a distância dos tempos, parecerá que poderíamos ter encurtado as distâncias, cortando retas ao fim. Cá de baixo, no contato presente das coisas, é que vamos contornando os obstáculos, que a própria vida nos cria, e nos enrolando em torno dos mesmos pontos, a rodopiar.

No mais, a não ser pela forma, sempre escorreita e amena, não creio que as impressões tenham ainda atualidade, 25 anos passados, num regime que evolve a golpes de autoridade com o apoio da força.

Em 1935 publicastes uma coletânea literária, sob o título sedutor Pensamentos de Medeiros e Albuquerque. Durante quarenta anos de convívio com um homem superior, o espírito lucra da aproximação, sobretudo quando escutado ou lido com curiosidade e amor. No prefácio, anunciadas as determinantes da publicação, explicais:

Assim, na observação meditada dos melhores livros que Medeiros escreveu, fui encontrando admiráveis definições, conceitos, pensamentos, idéias gerais semeadas, descuidadamente, ao correr de sua pena. Resolvi colhê-los e reuni-los neste florilégio, que ofereço aos seus leitores. Creio que, lendo-os assim, marcados pelo isolamento, o leitor de Medeiros e Albuquerque sentirá aumentada sua admiração pelo grande e inigualável escritor, que lhe aparecera então como um sábio e profundo pensador.

Neste recinto, onde tantas vezes vibrou a palavra de Medeiros, e que revive no seu esplêndido livro Homens e Coisas da Academia, a recordação de sua fecunda atividade intelectual deve começar registrando com reconhecimento a parte que teve na fundação desta Instituição e, dia por dia, a ela sua devoção intrépida tanto que viveu. Conheci-o de perto e o acompanhei, já débil e doente, até o último alento da vida. É pois de alma comovida que relembro o companheiro e amigo que nele todos perdemos, principalmente aqueles que tiveram a graça do seu convívio, sempre enlevado pelas abertas de luz de sua vigorosa inteligência. Não me permite o momento acompanhar os pensamentos de Medeiros, ainda que de relance, através das páginas em que os condensastes. Mas não passarei adiante sem recordar opiniões suas que me ficaram de memória, por exemplo: “A ciência é um anedotário de fenômenos”, “O silêncio é uma angústia e pesa terrivelmente.” Sobretudo às mulheres, poderia acrescentar o Sr. Aloísio de Castro, recordando fatos e conceitos de sua maliciosa conferência sobre “Loquacidade Feminina”. O orador já era acadêmico quando Medeiros disse, referindo-se aos colegas: “A percentagem de maliciosos é aqui sempre superior a 100 por cento.” Felizmente, porque malícia é libertação.

Medeiros, que era um tipo longilíneo, certa vez inquirido porque preferia as mulheres pequenas, respondeu: “Dos males o menor.” A propósito de uma promessa de Cláudio de Sousa, não cumprida, a seu neto, observou: “Às crianças e às mulheres não se promete para não cumprir.” Quando deputado, um colega, com extranheza irônica, declinou sem nome por inteiro: José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque, tendo réplica imediata, em aparte: “Campos da Costa vem da linhagem materna, Medeiros e Albuquerque da paterna; José Joaquim é simples designação de sexo...”

Voltando à apreciação de vossos trabalhos, aberto o volume Idéias, Homens e Fatos, dou com um capítulo sobre Camilo Castelo Branco e sua psicologia. Em minha pobre qualidade de devoto do grande vernaculista português, lembro aos camilianos a leitura desse estudo, estimável em beleza e profundidade.

FOLHAS SECAS

Por diante a curiosidade, damos com Folhas Secas: Comentários e Reflexões. Num estilo habilmente tecido de clareza e sobriedade, amais, à maneira de Camilo, o murmúrio do córrego e ver “cada tarde a folhinha seca derivar na onda límpida”. Ouçamos o prosador. “Velho cronista, apanhei algumas dessas folhas secas, em que encontro, ainda hoje, algo de mim mesmo. Atei-as neste volume. Talvez resistam algumas, para dizer de uma alma inquieta e angustiada pela torturante busca da verdade, da beleza, da harmonia universal”...

O comentário sobre cinema e seus amadores mais ou menos delirantes, é de exata penetração psicológica:

Quando qualquer de nós vai a um cinema, vê dois filmes: um o da tela, outro, o da própria alma. Inconscientemente transferimos aqueles episódios para a nossa própria vida, não com a minúcia do que se está passando, mas na vaga assemelhação ao tom geral de nossa própria afetividade. Bom filme é para nós aquele que encontrou maiores similitudes com esse estado de alma íntimo e que, muitas vezes, escapa à nossa própria observação.

Passastes o Natal de 1935 preso a bordo do vapor Pedro I na Baía de Guanabara, e, como pássaro em clausura, entoastes este cântico à liberdade:

No convés superior, alongado em uma espichadeira, pousei sobre a perna o livro, que vinha lendo e deixei-me empolgar por aquele deslumbramento de fogo, cuja vermelhidão passava aos poucos do róseo ao violáceo, ao roxo, até que o azul-escuro do céu veio formar a cortina diante da qual a Serra da Tijuca perdia os seus contornos para ficar como um bloco negro, informe e misterioso... Súbito luziram as lâmpadas da cidade, cuja cintilação era o úinico sinal de vida que ela podia mandar...E eu pus-me a meditar no meu estranho destino em que as prisões, os asilos, quando não as fugas, são os marcos com que se assinalam as fases da minha vida, conduzida incorrigivelmente por um mesmo pensamento, um mesmo sentimento, uma mesma vontade: o amor à liberdade!

E em últimos acordes “eis-me de novo em liberdade... e de novo a defendê-la no único sentido em que a posso compreender: ampla, irrestrita, ilimitada, tal como a impõe a dignidade humana. Nem ditadores de esquerda,nem de direita!” Se me permitis um reparo, perguntaria como, no turno atual da civilização, amar à liberdade, objetivamente, sem libertar o homem de uma sociedade desumana? Apavorada com a inflexão ameaçadora das massas, advertiu Simone Weil: “Desde que o coletivo aparece não há mais homem livre”. E mais: “do mesmo modo que o homem não pode ser o joguete de uma natureza cega, também não pode ser o escárnio das coletividades cegas formadas por seus semelhantes.”

Descrevendo um congresso americano de Psiquiatria, no qual foi considerada a intensidade da vida moderna no aumento da alienação mental, registrais algumas opiniões: “O psiquiatra Dr. Cherney afirma, tranqüilamente, que se há mais malucos é porque a vida é hoje mais longa, e o homem tem, portanto, mais tempo de ficar maluco...” Um outro psiquiatra, o Dr. Darrh, lançou aos seus colegas uma pergunta perturbadora: “Existirá uma pessoa, com um conjunto de qualidades de espírito a que se possa atribuir a designação de padrão da normalidade?” E por fim “aconselha muito seriamente que se criem ambulatórios especiais para dar consultas aos legisladores e aos políticos, em geral, de modo que eles possam orientar-se sobre os problemas da sua própria personalidade, antes de se ocuparem com as dos outros... Ora, que idéia... O que dá precisamente aos políticos uma grande superioridade no resolver sobre o destino dos povos é a completa ignorância de si mesmos...” Mas, convenhamos, nos dias que correm, não é sem propósito a medida de profilaxia mental, de referência a governantes e parlamentares, alguns ilustres esquizóides, dementados na ostentação da auto-suficiência.

À página 306, explicando como biologista as predileções e antipatias caninas, dependentes da alta capacidade olfativa dizeis: “Era Murtinho que dizia: ‘Quanto mais observo os homens mais estimo os cães’... A verdade é que, de todos os animais domésticos, o cão é o que mais se aproxima do homem, nas virtudes e nos defeitos. Se perde no exercício de alguns pela falta da palavra, ele o supera em outros, por aptidões fisiopatológicas, que o homem não possui.”

Ricardo Jorge, grande médico português e alta figura letrada, falando dos salvados do dilúvio, considera o cão “o mais nobre animal da arca, inclusive Noé”. Vem a talho o caso ocorrido com o célebre Professor Sauerbruck, da Universidade de Berlim, criador do método cirúrgico de tratamento da tuberculose pulmonar. Quando ainda na vertigem das alturas de seu poder, Hitler recebeu um pedido para conseguir do sábio professor, em período de férias e fora da capital, a ida à Turquia para ver pessoa da família do Chefe do Estado. Mandou procurar o professor, que se recusou a seguir no mesmo dia, dispensando o carro oficial e só no dia imediato chegou a Berlim, encontrando o ambiente oficial reticente e nervoso, de referência à demora em cumprir a ordem. Sem embargo, o professor, que tinha fome, já manhã alta, apavorou os auxiliares, dizendo que ia antes tomar a sua primeira refeição. De volta, conta como foi levado ao gabinete de Hitler, passando através de salas diversas e de oficial a oficial. Introduzido no gabinete presidencial encontrou o vazio; entrementes, entrou um cão de grandes proporções e feroz catadura. O professor foi ao encontro do animal, e já estavam os dois em boas contas,quando entra Hitler, que, sem sequer cumprimentá-lo, abruptamnente interroga: “Que fez o senhor com este animal? Este cão é o meu melhor amigo!” “Nada fiz, excelência, senão que há pessoas que têm misteriosa influência sobre os animais, como há outras, como vossa excelência, que a tem sobre os homens.”

De vossa árvore as folhas, ainda que secas, não caem todas ou, se caem, não se perdem. “Sexos em Conflito” é uma dessas, em que a Biologia, temperada de humour, recomenda o cronista. A propósito de competição feminina nos jogos olímpicos, quis um dos membros do Comité Internacional que as mulheres candidatas sofressem rigoroso exame médico, porque em jogos anteriores duas atletas foram operadas e transformadas em homens. Com exemplos e comentários explicais como a Natureza se engana em matéria de sexo. A crônica foge aos estilos acadêmicos... Mas fique a conclusão: “Nada de enganos. Correr numa pista como mulher, e depois virar homem, não é sério...” Mais sério é o caso que referis, passado num convento de monges, em que um deles tinha os dois sexos, bem acabados na mesma pessoa. O fato se deu no País D’Auvergne do século XV. O escândalo, naturalmente sem explicação na época, levou o pobre monge à fogueira com as suas vergonhas...

Sob o título “A Mulher na Turquia e no Brasil” observais a renovação dos hábitos femininos, e, a propósito, levais um pouco longe a liberdade de uma crônica. Lendo-a, a memória me sorriu na evocação de um professor de meu tempo, na Bahia, em verdade querido e admirado, que, aos impulsos de sua eloqüência, se permitia umas tantas imagens e comparações, às vezes, exemplarmente caricaturais. Certo dia um aluno mais ousado, tomando do lápis para anotar uma frase pitoresca, foi advertido: “Moço, eu posso dizer isto, mas o senhor não pode repelir – são imunidades da cátedra!” Ora, não foi menor a afoiteza do cronista, quando, a folhas tantas, contando com a impunidade da crônica, arrisca corajosa apóstrofe, muito ao revés dos preceitos legais e religiosos: “Nós outros homens somos mais ou menos poligâmicos.”Que enormidade! Talvez tenhais razão, mas não tendes razão de a terdes publicamente, como disse Voltaire de referência a Sócrates. Ainda há pouco, com fundamento em razões sociais e biológicas, moralmente pedagógicas, o Reitor da Universidade Islâmica fez o elogio da poligamia e aconselhou sua adoção universal.

O livro, deliciosamente, nos dá sua última página: “No manipulá-las, para escolhê-las, como um botânico minudente ou um herbanário zeloso, vi levantar-se a poeira do tempo e senti-a odorante, a avivar-me a memória dascoisas e das gentes... Pude, às vezes, ter a ilusão de ver realidades do presente, esboçadas nas nervuras contorcidas e amareladas dessas Folhas Secas. E vi também coisas eternas, porque dizendo do sentimento humano, não envelhecem nunca, nem perdem de frescor...”

TEMAS FALADOS

Em vossa obra literária a seara é farta, e lavrá-la em tempo hábil, só pela seleção de alguns trechos, ainda que sob caução do gosto, no meu caso, muito duvidoso.

Em Temas Falados, o psicólogo e homem de letras analisa atos da vida corrente, à luz das idéias atuais que explicam sonhos e recalques, eclipses e repentes da memória, protestos amistosos, sem amizade, às vezes despedidos do inconsciente em frase irônica. Em verdade, do inconsciente emanam as forças tirânicas das paixões, admitindo se com Henry Ey que é o centro cerebral “habitado por mitos, complexos e entidades metafísicas as mais imperiosas”. Em boa inspiração, como médico-psicólogo, invocais a capacidade de esquecer, felizmente piedosa e solícita. E, a ponto, a interrogais: “Qual a função de certos tratados moralistas, senão a de criarem derivativos mentais que forcem ao esquecimento das penas e dores deste mundo. Tratados de consolação, literatura teológica contra a tentação – não são mais, em verdade, do que compêndios da arte de esquecer.” Não há dúvida que a alma sensível não pode fixar o presente, tendo sempre em evocação o passado, em cujas cicatrizes a vida nos desenganou. A lembrança da amargura, ainda que por instantes, amarga ainda... Não será melhor, como dizeis, “reclinar a cabeça sobre um colo feminino e deixar-se embalar, de olhos fechados à realidade das coisas?” E que melhor colo haverá que o da ilusão? Sem dúvida. De ânimo compreensivo até a inocência se pode justificar...

Noutras páginas tratais de assunto mais ameno: a psicologia da anedota e do riso. Cada manhã, em vez de bocejo, um sorriso, para entreabrir o bom humor e esperar as asperezas do dia. Estou a apostar que conheceis do grande Roosevelt o preceito: “Se depois de ter tratado seriamente de coisas sérias, uma vez acertada a decisão, não se pudesse pilheriar, mesmo das coisas graves,não seria possível resistir quinze dias como presidente dos Estados Unidos.”

Conta Stendhal que um príncipe alemão fixou um prêmio para a melhor dissertação sobre o riso. O trabalho premiado, de 150 páginas, parecia escrito em estilo dos tratados de química. Notou o escritor: Há mais gracejo numa só reunião social em Paris que num mês na Alemanha.

Cedo vos persuadistes da influência do bom humor e da alegria na luta pela vida, eu diria na luta contra a vida, ou, mais propriamente, contra a abjeção do mundo. Do tempo que vos conheço e estimo, como companheiro em árduas pelejas da classe, jamais surpreendi no polemista uma frase agressiva ou o tom irado. Viestes daquela escola do “Club Italiano do Bom Humor”, que tinha no emblema o dístico salutar: Non te arrebiare, isto é, não te aborreças, não te zangues, não te enraiveças. E notais como virtude popular o vezo carioca dos trocadilhos e pilhérias, não raro os mais irreverentes. Tanto denuncia a boa índole do nosso povo, que os governos deviam cultivar e até premiar. Por isto mesmo, naquilo que o carioca leva a sério, isto é, no futebol, a competição acende a disputa, rebenta a desordem e sai briga.

Referis com a isenção do livre pensador o efeito psicológico da oração ao deitar-se. A prece sugestiona o crente e ajuda sua saúde moral, apagando da memória os pecados do dia. Sim, porque a oração “é o íntimo sublimar-se da alma pelo contato com Deus”, disse Rui. Mas, variando de Medicina, aconselhais: “Duas a três anedotas que nos façam rir prazerosamente à hora de dormir, lavam-nos a alma, expurgando-a de toda tristeza e preparam-nos um sono repousante”. A vosso respeito poderíamos repetir o que disse de Alibert, médico e escritor: “Cura seus doentes e encanta seus leitores.”

LITERATURA DO SÉCULO XX

Num estudo psicobiográfico de Joaquim Nabuco recordais seu belo tipo físico, conservado até a velhice no aprumo da elegância varonil, seu aspecto sereno, que deu a Oliveira Viana a impressão de postura olímpica,“como se quisesse legar à posteridade o modelo ideal da própria estátua”.

A atitude intelectual de Nabuco foi a do pensador, revelada na predominância da meditação sobre a expressão artística. Tal como disseste, “a necessidade de criar é reflexo imediato das emoções estéticas, sejam estas causadas pela própria vida, ou pela contemplação da Natureza, ou por uma impressão artística no encantamento de uma leitura, de uma música, de uma figura feminina”.

No interesse psicológico de interpretação da personalidade, perguntais:
“Teria sido realmente um Narciso?”

A resposta dentro do conceito trivial de egoísmo, explorado nas crônicas sociais, para fazer restrições a quem tem a pretensão de ser alguém, não se ajusta, à figura de Nabuco, segundo se pode concluir do estudo em apreço.

Ainda menos se atentarmos para o sentido de Mallarmé e Valéry, a figura de Narciso, liberta da condição humana, é o símbolo do amor de si mesmo, no mito que beira a divindade, abismado no sonho insular de perfeição.A filiação poética de “Narciso” vislumbra a realidade além do nada, que é também das inspirações do pensamento hermético, rente com a sensibilidade que, em Poesia, ainda se alimenta do simbolismo.

No momento atual, ante a inquietação dominante, a literatura de salvação não se limita à revolução social, mas ao conjunto do problema humano, entrevisto pelo Cristianismo ou, sem Deus, pela concepção metapsicológica, que se traduz no surrealisme, de Breton. Nada menos que a inspiração luciferiana para reconquistar a divindade, ou seja, o homem noutro modelo espiritual,conduzindo a aventura humana à visão de novo paganismo, muito diferente do primeiro.

Qual o denominador comum da obra literária, assim revolucionária, objetiva e esteticamente configurada em nova atitude intelectual? Implicitamente a salvação humana, sendo de desejar que o homem e o mundo se reconciliem.

Em verdade, da encruzilhada sombria assistimos à ebulição de verdadeira crise do humanismo na civilização do Ocidente. Apelar para o conceito metapsíquico da Arte, como quer Malraux, para consolar-se da fatalidade do nada? É certo que só as obras de gênio desafiam a morte: são as “Vozes do Silêncio” no curso dos séculos. Porque oscila entre a angústia e a esperança, o destino sobreleva em mistério, e, ante o tempo que rola para a eternidade, a nova vertente cultural atinge, perigosamente, a alma da humanidade. Numa lenda do século XV, Fausto, não o de Goethe, mas o de J. Klinger (1791), recorreu à influência satânica para salvar o mundo. O diabo viu na descoberta da imprensa o maior desafio às suas temeridades: o livro seria o grande fator da perdição e numerosas catástrofes prenunciava para a vulgarização da Cência. E afirmava convincente: “Sem os sábios, os poetas e os filósofos as portas do inferno estariam fechadas.” Aí temos a era atômica e a literatura luciferiana. Devemos concordar que, no mínimo, o diabo é formalmente lógico.

Em verdade, a vida espiritual do universo respira com dificuldade, perdido o compasso com a liberdade nas relações políticas entre povos que se temem e se armam. Talvez atordoada com os avanços da Ciência e da Arte nos tempos modernos, a pobre humanidade tenha esquecido as éticas, principalmente cristãs, que formaram a personalidade moral, da Renascença ao fim dos tempos modernos.

O século XX abriu nova era – a era da agitação política e social, que deflagrou duas guerras mundiais, alterou a posição dos valores, inverteu normas espirituais

adquiridas a muito custar, criou novos problemas, tornando mais frágil e inquieta a condição humana. Esperemos que, do beiral do abismo, um raio de de luz do Ocidente aponte ao homem, restaurado na confiança de si mesmo, o sentido redentor do bem e da verdade.

Sobre o novelista Maurício de Medeiros, gostaria de dizer, embora as novelas tenham baixado muito de cotação, depois de exploradas pelo rádio. Do autor, a novela, não sei se única, mas a que se conhece publicada, tem o título de Segredo Conjugal. É uma novela clandestina, porque nem o autor possui um exemplar... O tema melindroso é de si mesmo inconcebível, não sendo fácil o segredo de dois em companhia: é muito difícil a uma mulher manter segredo, senão nos casos do seu interesse personalíssimo. Mas de segredo conjugal temos um exemplo perfeito em vossa novela: ninguém dele sabe... Desconfio que terminou o enredo por duplo suicídio, sem carta à polícia e despedida à família.

BRAVURA MORAL

Não me despeço dos nossos ouvintes, Sr. Maurício de Medeiros, sem me referir à página de saudade do pai que perdeu o filho, oficial da Força Aérea Brasileira, quando cruzava os céus espelhados pelo Mediterrâneo. Belas palavras comovidas que assim terminam: “Seu sacrifício fará com que vivamos eternamente juntos, enquanto houver memória desta guerra, de seus mortos, dos mortos do Brasil, do sacrifício de sua mocidade em flor, estuante de vida e de entusiasmo, porque, entrando a sorrir pelas portas da glória, ele repete no seu o meu próprio nome, obscuro nome de um pai que deu à Pátria o seu melhor tesouro : um filho!” Não as repito agora, senão por admirar o homem que soube resistir, honrando na bravura moral, a bravura do filho amantíssimo. Milagre do sentimento na vitalidade das energias crepusculares! Homem forte eu vos bendigo no heroísmo da resistência! A vontade é menos uma faculdade que um dom congenial, como a inteligência e o caráter; na composiçãoda personalidade ela entra com o seu tributo de fortaleza moral. Levais a vida para onde a alma abrasada, a trabalhar, a produzir e a sofrer: compreendeis a dignidade de viver.

Como intelectual, sois eterno sonhador, sem exaltação; matutino pregador da liberdade, sem demagogia; geômetra sem ênfase; letrado militante, sem nem uma dúvida sobre a mais mínima influência do ascendente cultural brasileiro na vida política e social do País. Nós, os intelectuais, somos “desgraçados que pensam”, na frase de Valéry. Conheceis a realidade aviltante que nas esferas oficiais estimula o farisaísmo da cultura e a apostasia do merecimento, até à fraude no renome e a inversão dos valores em matéria de saber técnico. Em toda a plenitude a filosofia pacífica do Sancho: é o exercício do cargo que faz a competência. Naturalmente por geração espontânea....

Mas, felizmente, a consciência destas verdades não vos esmorece o ânimo alerta: continuais a praticar a virtude lenitiva da esperança, ouvindo, como múrmura corrente, o canto da última ilusão – a ilusão da posteridade...

9/8/1955