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Discurso de Posse na Presidência da ABL - 2018/2019

A Casa de Machado segue vigilante seu percurso. Como a iluminação do Aleph de Borges: o grande livro do mundo e as infinitas camadas de abismo. A vida exuberante da Academia produziu um generoso gabinete de maravilhas, situado em nosso acervo, herança dos lares, que nos precederam, repertório de imagens e ideias. A soma de nossa coleção retrata uma ideia fractal do país. Do micro ao macro espaço subsiste uma escala, uma analogia, como disse o doutor Cláudio, personagem de O Ateneu, quando se refere ao colégio e ao mundo. Um espelho claro e altivo acerca a nossa Instituição do país, dentro de cuja amplidão resplandece nosso rosto plural, sem dissolver a matéria prima da diferença que nos circunscreve, a mundivisão que integra e separa, reúne e distingue uma vocação para o diálogo e a hospitalidade.

A Academia tem vida própria e independente. Machado e Nabuco deram-lhe esse quantum. Buscamos formar anéis epistêmicos, áreas de encontro. Na esfera do consenso nos movemos: esfera compartilhada, princípio que assegura a circulação das ideias nas artérias do tempo.

O mundo se encaminha para a era da singularidade, na transmutação do átomo ao byte, no tempo das máquinas espirituais, segundo Ray Kurzweil, para quem a imortalidade, real e absoluta, será atingida nos idos de 2050. Sem milagre, mediante avanços da nanorrobótica e dos linfócitos T, sentinelas mais capacitados, com uploads renováveis, no combate às doenças. São as famosas atalaias da vida contra a morte, do antigo doutor Curvo Semedo, pequeníssimos robôs que circulam dentro do corpo, para defendê-lo das teias da Indesejada.

A realizar-se a imortalidade, teremos de ampliar as cadeiras da Casa, pois não haverá vagas abertas e sessões da saudade, que hoje nos consolam e fortalecem. Não haverá mais despedidas. E as cadeiras chegarão a centenas de milhares de acadêmicos ao longo dos séculos, todos contemporâneos. Imagino como seria conviver nesta tarde com Rosa, Machado, Euclides e Bilac, e ouvi-los com detença e inegável emoção.

Kurzweil acertou não poucas previsões e viu-se obrigado a refinar outras tantas. Se não estiver errado, quem chegar a meados deste século assistirá à mais veemente mutação antropológica: as núpcias do homem com a máquina, preservado o software do cérebro, os limites do ego e o inconsciente.

O que dirão a bioética e a psicanálise, como reagirá a teologia, com o inferno, abarrotado, e o Paraíso, com taxa negativa e colapso demográfico? O que fazer do fascinante eterno retorno de Nietzsche? Como administrar a mísera sorte e a estranha condição de imortais da Academia, quando todos seremos imortais sui juris?

Ora, direis, ouvir futuristas! Senhoras e Senhores, não perdi o senso da realidade, embora o risco seja enorme quando se exerce a presidência da Academia. Mantenho o siso. Ou: assim é se me parece. Contudo, para enfrentar a realidade é preciso alcançá-la a médio e longo prazo. A tarefa não é apanágio da economia ou da cartomante de Machado.

A Academia, antes das máquinas espirituais, tornou-se uma hipermídia acessível aos motores de busca do ciberespaço. Seria muito bem-vindo o tema para uma agenda do século: academias em rede – por uma integração das infovias cultuarais.

Olhar o mundo não implica desfocar o Brasil, nem tampouco submeter-se a um arroubo cosmopolita, isento de raiz. Trata-se de reverberar a sinergia das culturas do Brasil para o mundo, espelho de interfaces, segundo a nova realidade híbrida, física e virtual, por onde circulamos. Tornar visível nossa matéria-prima, quanto de mais valioso fizemos, os brasileiros, e oferecê-la ao concerto das nações, é nosso dever, no elogio da diferença e na cultura da paz, de cujo patrimônio não podemos abrir mão. Projetar a Academia no Brasil e no mundo exige uma ética do acesso e do percurso. Disponibilizar a memória em rede redimensiona as potências coletivas, a sabedoria das multidões, as nuvens da memória em conteúdo crescente, como a Lua.

Uma delegação para a imortalidade simbólica, herança do futuro físico e virtual, povoado de herdeiros.

Eis o capital de nosso Aleph. O que sonhamos e quanto consolidamos, sonhos e devaneios de que somos feitos, a partir de uma densa fenomenologia que começa pelos olhos.

Olhos de lince. Pois o corrente ano exigiu grande reengenharia da Casa, para torná-la mais ágil e compacta no enfrentamento da crise da política e da economia que desabou, inédita, sobre o país e abriu impiedosa a caixa de Pandora no Rio de Janeiro, contra uma pálida, senão esmaecida esperança. Annus horribilis.

Um árduo conjunto de ações foi posto em prática para reequilibrar as finanças e conduzi-las, a médio prazo, a um modelo sustentável. Não raras associações baixaram as portas ou eclipsaram suas atividades. Outras, morreram consumidas pelo fogo, como o Ateneu de Pompéia.

A dolorosa metonímia de 2018 foi o incêndio do Museu Nacional. Crime ominoso, cujos réus a História saberá indigitar no implacável tribunal de última instância. E que a todos confunde e perturba, pois, cada qual a seu modo, é responsável pela tragédia. Culpa coletiva e estrutural, como dizia o romancista Hermann Broch.

A memória do país foi ultrajada e trava um perene combate contra diversas ameaças, fogo sutil, que não arde, silente e solerte, como o descaso e a falta de uma intensa política da memória. Ou revertemos, com ousadia e prontidão esse processo, ou seremos filhos do irreversível Alzheimer cultural que se insinua.

Enquanto isso, a Academia resistiu, porque ministrou remédios amargos para manter-se altiva.

O Acadêmico Celso Lafer definiu o início da reforma da máquina como gesto de bravura ou fortitudo. E, ao implementá-la, o coração partiu-se em mil pedaços, avassalado pela insônia, febre alta e outros mimos. O saudoso amigo, o Acadêmico Ivan Junqueira, que presidiu a segunda maior crise da Casa – infelizmente o campeonato, no qual desejava ser o último, e por motivos alheios à minha vontade, condenou-me à pole position na maior crise da ABL–, o Acadêmico Ivan Junqueira, ao terminar a presidência, saiu galardoado com uma pneumonia dupla. Cadeira honrosa, a da presidência, também definida, por Marcos Villaça, como “cadeira da provação”, a mesma, para a qual a generosidade das senhoras acadêmicas e dos senhores acadêmicos, imerecidamente – e o digo em duplo sentido –, acaba de me reconduzir. Se não faltou provação no cargo, quando surfávamos na alta das commodities, o que dizer, de 2017 a 2018, com a baixa maré do mercado imobiliário do Rio? Passamos da provação ao martírio, ao sofrimento e testemunho.

E se, de fato, houve um misto de coragem e dor, a qualidade e o sentimento foram colegiados. Não se limitou à diretoria, mas obteve decisivo aval do plenário, cuja sensibilidade permitiu enfrentar um cardápio de questões estruturais.

Em fevereiro, navegamos junto ao Cabo das Tormentas, com um fero Adamastor, em guerras cruas tais e tantas; ao passo que, em dezembro, passamos o Cabo da Boa Esperança e a vista já não alcança o gigante, em pedra transmutado ou, quem sabe, adormecido. Mas, o caminho das Índias requer prudência diante do regime de ventos que se prefigura para 2019. Prefiro não me afastar do litoral, atento às sereias, arrecifes, calmarias.

Conseguimos, com ingente sacrifício, reerguer a Casa. Trata-se agora de cercá-la de cuidados, fortalecê-la e tonificá-la. Um processo estrutural, um work in progress.

Como não agradecer os conselhos e a experiência de bordo do Acadêmico Alberto Venancio Filho, que emprestaram firmeza à travessia, quando não havia sequer sinal de terra. Meu reconhecimento ao Acadêmico José Murilo de Carvalho, que aceitou a tarefa durante a tempestade e quando fazia escuro.

 

Como não referir o trabalho exemplar do secretário geral e ex-presidente, nosso outro Alberto, da Costa e Silva, palmeira no deserto, como disse Nabuco de Machado, que semeou ideias e endossou quanto fizemos? Costa e Silva deixa a diretoria, sem sair dela. Mesmo que quisesse não poderia, em virtude do papel histórico assumido na Casa. E porque pretendo importuná-lo, com método e rigor. Defenda-se de mim, quanto puder, Alberto, mas não recuse meu afeto.

Assinalo a compreensão dos funcionários da ABL, diante da nova paisagem. Não falharam nos desafios da hora presente, profissionais que demonstram lealdade à Instituição. Esperamos um ano mais gentil e venturoso. E trabalhamos para. Na veneranda figura de dona Carmen, nossa cadeira 41, presto a todos a mais sentida homenagem.

Agradeço às pedras de Itacoatiara, aquelas mais íngremes, que me acolheram, solitário. Quantas vezes não subi o Costão e a praia do Bananal? Pedras quase maternas que fornecem matéria e vigor aos meus sonhos. Devo-lhes o instinto de sobrevivência, as harmonias secretas de meu piano e de meu telescópio, amigo das noites de insônia. E foram tantas.

Desço para evitar a vertigem e para não abrir mão de uma secreta e intransmissível educação pela pedra.

No entanto, e apesar da crise, não perdemos o foco, a missão da Academia seguiu intrépida nas conferências, edições virtuais, acervo, pesquisa, teatro educação, leituras dramatizadas, visitas guiadas, ABL responde, música de câmara e MPB.

No âmbito internacional, a Academia firmou acordo com a Marinha para levar nossos livros aos países da CPLP, sem excluir os centros de ensino dedicados ao Brasil, mundo afora. Chegamos ao Índico, em setembro e, depois de Janeiro, serão as ilhas do Atlântico e Mediterrâneo.

A ABL assinou protocolos de cooperação e amizade com a Real Academia de la Lengua, em Madrid, com a Academia Română, em Bucareste, com a Deutsche Akademie für Sprache und Dichtung, em Darmstadt, e ratificou o antigo protocolo com a Accademia della Crusca, em Florença. Tampouco deixou de reafirmar os laços fraternos com a Academia das Ciências de Lisboa.

Foram igualmente visitadas as Academias do Paraguai e do Uruguai, segundo uma agenda de diálogo com a América Latina, a partir do encontro, em Madrid, na Secretaria Geral Ibero-americana, que esperamos detalhar durante o ano.

A primeira viagem da presidência da ABL à África teve início na cidade da Praia, ilha de Santiago, em Cabo Verde, interagindo com o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e a Academia Cabo-Verdiana de Letras. Daí surgiram, para 2019, novas pontes para o continente, consubstanciadas nas palmas acadêmicas que a ABL concedeu ao rei de Ifé, símbolo de nossa alteridade especular.

No plano social, a Academia implantou ou restituiu uma importante gama de projetos, mediante palestras, doação de livros, material escolar e computadores, a hospitais, escolas públicas, unidades socioeducativas e prisionais do Estado.

Fizemos o possível nesse duro cenário de crise. Muito resta a fazer. Mas, em tantos desafios, a Casa de Machado permaneceu firme. Não se fechou para o mundo, nem abdicou de sua condição bifronte, de olhar o passado e o futuro na infinita superfície do agora.

Saúdo a nova diretoria, os acadêmicos Merval Pereira, secretário geral, Ana Maria Machado, primeira secretária, Edmar Bacha, segundo secretário e José Murilo de Carvalho, tesoureiro. Declaro gratidão aos companheiros de viagem. Fiquemos juntos, sem perder a tolerância, a visão incisiva e ao mesmo tempo delicada, no diapasão do consenso e do espírito, em prol do estilo e da Casa.

Pretendemos avançar na revisão dos conceitos da máquina e abrir novas janelas: ampliar o diálogo com instituições congêneres no mundo, assim como adensar o trabalho social, aplicar novas tecnologias, retomando quanto possível o processo de digitalização. Importante não descurar do Centro de Estudos e Pesquisa da Língua Portuguesa, um salto quântico na comissão de lexicologia e lexicografia.

Há uma serie de projetos em andamento. Nossa esperança, ativa, é que deixem o estado de dicionário e passem da potência das ideias ao ato pleno.

Senhoras e Senhores

Penso num xamanismo das ideias e convoco Joaquim Nabuco, Darcy Riberio, Celso Furtado, Evandro Lins e Silva, Evaristo de Moraes Filho, Raymundo Faoro, Barbosa Lima Sobrinho, Alceu Amoroso Lima, que formam, dentre outros, um conjunto de defensores da liberdade, quando o mundo comemora os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de cuja redação Austregésilo de Athayde foi coautor e signatário.

Nenhum deles defendeu a censura, em qualquer âmbito, sob qualquer pretexto, tanto menos em obra ficcional, tornada, desde Boccaccio, com o posfácio do Decameron, livre e autotélica. Intolerável aceitar no século XXI um index librorum prohibitorum, como imaginam certas patrulhas morais. A Academia assumiu, na última década, uma defesa radical da autoria e da liberdade na criação artística.

Impensável, por outro lado, deflagrar a guerra nas escolas, segundo um macarthismo inoportuno e dissonante da Carta Magna, que assegura liberdade de expressão e liberdade de cátedra.

Os professores realizam uma revolução silenciosa no país. E o Brasil não parou porque seguem obstinados.

Não podemos abandonar os acordos internacionais que integram a cultura da paz entre os povos. O Brasil é uma república de etnias. Somos todos estrangeiros e membros de uma cidadania global.

Precisamos salvaguardar as nações indígenas, que nos antecedem, e os descendentes quilombolas, cuja identidade inscreve-se na afirmação do território. Todos brasileiros, sem exclusão, com direitos iguais.

A diversidade cultural é nosso maior patrimônio.

Não podemos diminuir a maioridade penal, de uma juventude malferida, diante da qual o Estado tirou quanto pode. E se não deu escola a meninos e meninas, oferece nada menos que a masmorra enquanto sucedâneo. Não podemos ampliar a morte de nossos jovens, negros e pobres, em sua grande maioria. Em vez de mais prisão, mais escola.

A república exige mais república, assim como a democracia precisa atingir um tônus menos abstrato e de alta intensidade.

Até quando a pátria será madrasta para milhões de excluídos, em vez de mãe gentil? Não se trata da rima, senhoras e senhores, mas da defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como o direito de todas as minorias.

Queremos a construção da paz e da hospitalidade, não a bandeira da barbárie. Porque Roma não cairá, nem poderá celebrar a cultura do ódio, contradição no adjetivo: pois ódio e cultura não sabem e não podem caminhar juntos.

A paz não virá de uma resposta armada. A paz resultará, apenas e tão somente, quando a fome e a miséria forem consideradas de modo frontal.

Eis o que a memória de nossos acadêmicos inspira-me a dizer neste salão.

Porque não me falta uma certeza, das poucas que guardei, ante o naufrágio das ilusões.

Se a beleza salvará o mundo, nas palavras do príncipe Myshkin, em O idiota de Dostoiévski (мир спaсëт крaсотa), não hesito em dizer que a pluralidade salvará o Brasil.

Ninguém se iluda: a cultura é o derradeiro baluarte da democracia.

Acadêmico relacionado : 
Marco Lucchesi