SONETO ROMÂNTICO
Pousa os olhos nos meus... deixa voar
Os nossos sonhos que outro sonho enlaça...
Eu quero ler a imaculada graça
Dos juramentos que tu tens no olhar!
Escuta as dores do profundo mar!
Vê como sofre o vento quando passa!
E como é triste a cândida desgraça
Que existe na eloquência do luar!
E enquanto os outros vivem padecendo,
No mundo vil, - no mundo atroz e horrendo -
Nós dois, como os amantes da balada,
Vamos sofrer de novo as amarguras
E repetir as imortais loucuras
Do nosso amor, ó companheira amada!
(Ave Maria, 1900)
PÁLIDA
A palidez que envolve essa tristeza
É como um véu de angústia verdadeira...
Devia ser assim a atroz beleza
De Jeanne d’Arc entrando na fogueira!
Por isso ó bela, ó bela gondoleira,
Que tens no olhar as noites de Veneza,
E tens nos lábios a saudade inteira
De uma manhã de beijos de princesa...
Por isso eu amo a doce luz que veste
O teu martírio de tristezas feito,
Como um manto de luar por Deus tecido...
E vejo em ti a palidez celeste
Que a Virgem tinha... quando uniu ao peito
Os lábios de Jesus recém-nascido!
(Ave Maria, 1900)
O CORAÇÃO E A ESTRELA CADENTE
Dizia o coração à estrela do infinito:
- Treme de inveja, ó luz, que o teu poder invado!
Pois se brilha em teu seio um mundo iluminado,
Dentro de mim resplende um grande amor bendito
Como um órfão sem lar, um triste réu proscrito,
Vives tu no silêncio, ó astro abandonado!
Ao passo que feliz, risonho e enamorado,
Eu vivo para alguém! Eu por alguém palpito!
A cada instante sinto o olhar sereno dela
Encher-me de uma luz mais límpida e mais bela
Do que essa com que Deus o seio iluminou-te...
Mas tu que tens além do etéreo brilho teu?
- Eu tenho a liberdade!... (a estrela respondeu
Sumindo-se no abismo esplêndido da noute...)
(Ave Maria, 1900)
COROA DE SAUDADES
(IN MEMORIAM DE EÇA DE QUEIRÓS)
I
Curva a lívida fronte e cobre-te de dor
Junto ao triste caixão do Príncipe imortal...
Ali vai para sempre o irônico Escultor,
- Rei da Forma e da Luz, dos Timbres e da Cor -
Terra de Portugal!
II
Veste de pranto e luto o pavilhão que trazes
- Como um dossel - cobrindo o esquife magistral...
Já não brilha o cinzel das construções audazes
No marmóreo esplendor sinfônico das frases,
Terra de Portugal!
III
A caminho do triste e derradeiro asilo
Lá vai... pausadamente... o negro funeral...
Ah! curva a fronte!... adora esse caixão tranquilo!...
E beija as mortas mãos do semideus do Estilo
Terra de Portugal!
(Ave Maria, 1900)
OS MOINHOS
Como o vento soprasse com fôlego verdadeiramente flamengo, resolvi fazer a um moleiro dos arredores de Leiden a visita que lhe havia anunciado. Não obstante o melancólico semblante da tarde, as nuvens a cavaleiro umas nas outras, a neblina quase palpável, aprestei-me para a jornada. Ventava o vento e era o essencial! Sem vento qual a utilidade de visitar um moinho? Visitar um moinho em dia de bonança fora o mesmo que examinar engenhos com os motores imóveis, locomotivas com os fornos extintos ou fábricas em repouso domingueiro. Eu porfiava, ao contrário, em ver um moinho atracado com os zéfiros indômitos, açoitado pela borrasca, recebendo nas asas abertas o choque, o assopro, os arremessos do temporal desenfreado!
O dia, lúgubre para os olhos, atroz para o coração, era, sem embargo, todo de glória para os moinhos..
Pelo que, saltei sobre uma lancha previamente encomendada, e aos solavancos das águas do canal fiz meter a proa em direção à cidade de Leiden.
A meio de um campo abastecido de árvores sem folhas, a poucas braças da terra que se ufana de ser o berço de uma das mais nobres universidades do mundo, alça-se o esbelto moinho de Peter Mulder, rubicundo camponês à beira dos 60, pai de quatro moleirinhas loiras como as estrelas e rechonchudas como as batatas da Limburgia. Peter Mulder é viúvo de uma dama de Scheveningen, cujo retrato me mostrou, e no qual a doce defunta aparece entoucada de rendas e laçarotes, à guisa de todas as damas daquele aprazível povoado ainda respeitador da tradição dos avoengos.
Em presença da fotografia da esposa do moleiro não consegui suspender um gemido de espanto! É que as pupilas da morta, posto que estampadas no papel fotográfico, pareciam olhar para mim com interesse materno. Queriam talvez falar-me, dizer-me qualquer coisa, confiar-me algum segredo, prevenir-me de algum perigo! Em face do meu assombro, o velho Peter Mulder julgou oportuno desabotoar os lábios; e numa voz entrecorrida de soluços, referiu-me a hoffmânica tragédia da sua viuvez...
Era uma tarde sem sol. O vento roncava nos ares, derribando os troncos, varrendo as várzeas, espavorindo os rebanhos.
As águas dos canais, por via de regra cristalinas e diáfanas, sobressaltavam-se e espumavam. Em toda a região de Leidem, assim na cidade como nas cercanias, o ciclone, de freio nos dentes, galopava por sobre os telhados e as terras! O velho Mulder recebera grossas encomendas: dos agricultores amigos; sacos e sacos de cereais abarrotavam o celeiro do seu engenho para serem convenientemente transformados em farinha. Ótima tarde para semelhante trabalho! Admirável ocasião para tal empresa! Comerciante sagaz, logo advertiu o velho Mulder no proveito que podia tirar daquela formidável ventania! Era, pois, de bom aviso aproveitá-la sem demora.
E sem demora o velho moleiro solta as asas do moinho, as quais, voltadas para o nordeste, são enfunadas pelas iras de um vento jamais ouvido na Holanda desde a morte do Taciturno! Giram as asas com indescritível rapidez: as duas mós horizontais rodam uma sobre a outra, esmiuçando o grão cujos lamentos se perdem no fragor do ciclone!
Eis que de súbito a moleira, que se havia encarapitado no quinto andar do moinho, comete a imprudência de aproximar-se das asas para ver... para ver o quê? Jamais se conheceram as razões de tão funesta curiosidade! O que o velho Mulder enxergou foi este quadro digno de Dante: uma das asas do moinho colher a respeitável senhora e arremessá-la a alturas descomunais!
Certo, não fora intuito da desditosa assaltar o moinho à guisa de qualquer Don Quixote de la Mancha. A simples curiosidade (a curiosidade tem sido ocasião de várias tragédias na vida das mulheres) teria talvez levado a esposa do moleiro a avizinhar-se do perigo; e como se tratava de uma moleira foi que o moinho a lançou às estrelas e não à lama da terra ou à vasa dos canais!
Era o Chevalier de Guiche quem dizia a Cyrano de Bergerac, no poema de Rostand:
Car lorsqu’on les attaque il arrive souvent
Qu’un moulinet de leurs grands bras chargés de toiles
Vous lance dans la boue...
e a quem Cyrano respondia:
Ou bien dans les étoiles!
(Ato II, cena VII)
Se a senhora Mulder conhecesse a obra-prima do dramaturgo francês e advertisse que tanto podia ser arrojada aos astros como precipitada no lixo, não houvera provavelmente praticado o desvario que lhe arrebatou a vida...
A narração da morte da moleira deixou-me tragicamente acabrunhado! Tanto que quando Peter Mulder me convidou a visitar o seu moinho, desde o rés do chão até ao último andar, foi sem muito alvoroço que lhe segui a trilha. Se aquelas asas assassinas tivessem o capricho de repetir, à minha custa, a façanha da moleira? Pensei na Pátria distante, na família, nos amigos, e tremi de verdadeiríssimo terror!... Não, eu não queria morrer assim, na solidão de um campo flamengo, caído das nuvens e afogado num canal!... Eu não queria que os meus ossos ficassem dispersos entre cebolas de tulipas, e acompanhados apenas pelo pranto do velho Mulder e os soluços de algumas loiras moleirinhas! Não, não, não ! Acautelei-me como convinha e supliquei ao nobre viúvo que encolhesse as asas do aparelho antes da minha entrada nos seus umbrosos corredores. O triste ancião, evocando talvez o cataclismo conjugal, deferiu a minha prece por meio de uma rústica e simples manivela. Quase repentinamente, sem embargo da iracúndia da ventania, as asas ficaram móveis, tal uma cruz em realce na neblina cinzenta!
Logrei então examinar-lhe o organismo: grandes asas de madeira cobertas de telas de pano; semelhantes a velas marítimas, para que o vento as possa mover. Por um sistema de engrenagem, datando da infância da engenharia hidráulica da Holanda, asas fazem rodar um eixo, que faz rodar uma pedra posta horizontalmente sobre outra e entre as quais se deposita o grão que deve ser triturado. Tudo isto com um alarido diabólico, um estrépito ensurdecedor que parece obra do inferno. O moinho, visto por fora, é uma graciosa torre que inspira os poetas e arranca suspiros do peito dos amantes; visto por dentro é um labirinto de escadas e corredores, colunas e alçapões, cordas e roldanas, alcovas e subterrâneos. Só à força de milagres de acrobacia é possível galgar os diversos andares de um moinho. No primeiro enxergareis os sacos de cereais, no segundo o trigo para a moagem, no terceiro as mós ou pedras trituradoras, no quarto os eixos e outros engenhos, no quinto, que é um terraço circular, as trepidantes asas espalmadas!
Em presença do velho moleiro pensei naquele Arnoldus Heyme a quem Jan Bremier, conde do Brabante, concedeu o direito de construir um moinho e de usar livremente do vento entre as povoações de Schyndel e de Santa Oedenrode. Nessas remotíssimas épocas (isto ocorria por volta de 1180, data dos primeiros documentos a respeito de molinendum ad ventum) nessas remotíssimas épocas era mister uma licença especial para se dispor do vento na Holanda! Vem a pelo advertir que séculos depois viveu um holandês ilustre, que se chamou Hugo Grotius e escreveu o De Mare liberum a fim de persuadir os povos de que os mares não são propriedade deste ou daquele país senão que a todos igualmente pertencem. Que diria o conde Jan Bremier se no seu tempo vivesse um Hugo Grotius a defender a liberdade dos ventos? Mas na Holanda do século XII não se pensava assim: vendia-se vento como hoje se vende queijo, mormente na Holanda meridional onde primeiro se estabeleceram os moinhos uma novidade, ao que parece, trazida do Oriente pelas Cruzadas francesas.
Ainda não averiguei se, de fato, foram os franceses os primeiros a importar moinhos do Oriente e a instalá-los em França no século XII.
Declaram os britânicos que em 868 já havia um moinho na Inglaterra e Tito Lívio, na sua História Romana, assevera que 180 anos antes de Cristo os cartagineses, ao transporem os Alpes, enxergaram diversos moinhos de vento. Deixo aos pesquisadores o esclarecimento histórico deste assunto: o que, todavia, não padece dúvida é que o moinho criou asas na Holanda e de tal maneira com ela se identificou, de tal modo ficou fazendo parte integrante da paisagem deste país, de tal forma influiu, na própria psicologia da arte holandesa, na pintura de todos os pintores, na literatura de todos os literatos, na poesia de todos os poetas, que não se concebe uma Holanda sem um moinho nem um moinho sem uma Holanda...
À semelhança de todos os instrumentos industriais também os moinhos se aperfeiçoaram com o tempo. Ao princípio eram fixos, isto é, as suas asas, sempre voltadas para o nordeste, esperavam o vento em vez de se fazerem encontradiças com ele. Em 1450 um moleiro de Schoonhoven, cujo nome por mal dos meus pecados não logrei ainda descobrir, inventou o moinho giratório, o moinho cujas asas podem ser colocadas em qualquer direção, de maneira a receberem vento, sopre ele de onde soprar...
Nas primitivas épocas o moinho tinha por especial encargo a moagem do grão e o esgotamento das águas dos canais. Isto era feito, aliás, com as devidas cautelas, conforme se verifica nas crônicas do século XV, uma das quais refere que em 1408 um certo conde da Holanda ordenou às autoridades de Delfland que inspecionassem as águas que os sieurs Florents van Alcmade e Jan Grietenzone turvavam com os seus moinhos! Durante a segunda metade do século XVI começou, porém, o moinho a ser empregado como força motriz para o fabrico do óleo, a serração da madeira e a indústria do papel. Cabe ao flamengo Lieve van Moerbeke a primazia de haver sido o primeiro a fabricar óleo por meio de um moinho de vento, em 1582, na cidade de Alkmaar; e a Jan Jacobzoon du Bois, flamengo também, a honra de haver, antes de qualquer outro, fabricado papel por idêntico processo. Convém, mesmo, advertir que este manhoso Jacobzoon obteve em 1586 o privilégio de ser o único na região do Zoon a poder explorar aquela indústria, o que aliás não impediu que 122 anos depois se alçassem na sobredita região mais de 1.200 moinhos!
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Relíquia do passado, o moinho constitui um verdadeiro documento histórico da Holanda. Se nas viagens através do país se topa a cada passo com a presença de um moinho, nos seus admiráveis museus também se topa a cada passo com vistosas pinturas onde o moinho, por via de regra, é o elemento inspirador. Um dos mais antigos painéis de Jan van Eyck representa a Virgem Maria e S. João Batista chorando aos pés de Jesus crucificado. No fundo da tela vislumbra-se um moinho, com a forma dos moinhos da nossa época e o mesmo semblante consolador. Porque em boa verdade, sobre as lisas campinas holandesas, a figura do moinho é docemente consoladora. A impressão do deserto desaparece, esvai-se a tristeza da soledade. O moinho ali está, acenando ao viajante, convidando-o a penetrar-lhe os umbrais, onde o moleiro, a moleira e quase sempre as moleirinhas lhe oferecerão, com o mais jucundo dos sorrisos, um sólido copo de leite holandês ou uma farta fatia de queijo flamengo.
Mas se virdes as asas imóveis, na posição de uma cruz, e notardes que lhes falta um número par de chapas de madeira (porque cada asa tem cinco chapas dispostas verticalmente desde a base do eixo até à extremidade superior), aproximai-vos sem ademanes de alegria nem prazenteiras manifestações, porque há luto no moinho. E não indagueis os motivos desse luto: as asas, esmaltadas no céu, tudo explicam no seu silêncio! Se estão imóveis e lhes faltam todas as chapas, é que morreu o próprio moleiro. Faltam 15? morreu a moleira. Faltam 13? morreu a moleirinha. Faltam 11 e o moinho continua a trabalhar? morreram os pais do moleiro. Faltam 9? morreu o irmão ou a irmã do moleiro. Faltam 7? morreu o avô. Faltam 5? morreu o tio. Faltam 3? morreu o sobrinho.
Se, ao contrário, virdes grinaldas de flores ou bandeirinhas colgadas às asas, entrai batendo palmas e arrojando flores porque há regozijo no moinho. Há noivado, há casamento, há beijos, há amor!
Compreende-se, portanto, que sendo os moinhos parte substancial da história da Holanda se tenha organizado a sociedade patriótica Holandsche Molen, incumbida de protegê-los contra a tendência, recentemente mui obstinada, de substituí-los por moinhos elétricos!
Consideram os destruidores da tradição que o moinho de vento é um objeto arcaico, fora da época, vetusto e primitivo. No século da eletricidade estes iconoclastas olham para o vento com elétrico desdém. Há muitos meses os administradores do polder de Zevenhuizen condenaram à morte uma família de oito moinhos. A Hollandsche Molen deu urros de indignação, protestou, esperneou, ameaçou, e com tal pertinácia o fez, que a sentença foi revogada e os oito moinhos continuaram a moer. Nesta luta pela vida a Sociedade teve o apoio do Conselho da Holanda Meridional, que ordenou à Administração do referido polder que deixasse os moinhos em paz! Os cinco moinhos da região do Schermer foram outrossim condenados à picareta, mas a Hollandsche Molen espera salvá-los como salvou os de Zevenhuizen. A Sociedade já tem obtido retumbantes vitórias. Assim, o moinho Adriaan, em Haarlem, está salvo; o de Waardenburg, salvo; o de Willemstad, salvo; o Groene Hert, em Ouddorp, salvo; e o de Neede, que conta trezentos anos e foi, há pouco tempo, quase arrasado por um ciclone, parece que vai ser reconstruído...
É que a Hollandsche Molen não perde de vista que o maior pintor holandês, o mestre dos mestres, o poeta da Cor, o intérprete da Luz, o resplandecente e radiante Rembrandt nasceu, entre sacos de trigos, sob o teto de um moinho...
(Holanda, 1928)