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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. LUÍS GUIMARÃES FILHO

EMINENTES confrades:

Com a morte de Garrett, o fundador do Romantismo português, e a aposentadoria literária de Alexandre Herculano, o qual havia “ancorado no porto tranqüilo e feliz do silêncio e da obscuridade”, tomou o venerando Antônio Feliciano de Castilho a direção da Poesia lusitana, constituindo-se em uma sorte de Pontífice a distribuir barretes cardinalícios por quantos poetas lhe juravam fidelidade e amor.

A arcádica e politeísta Renascença jazia no cemitério do passado; o Romantismo definhava à mingua de sangue; o Ultra-Romantismo, em plena fortuna, era, porém, dono do espírito nacional.

Embevecido nas lisonjas de aduladores, que sempre se desentranham em finezas por pescarem graças e mercês, envereda Castilho pelo sistema de louvar com adjetivos, de irrefletida benevolência, todas as obras que surgem no mare magnum da publicidade, promovendo com tais demasias a deletéria escola do elogio mútuo. Em 1865 escreve uma carta ao editor A.M. Pereira, a propósito do Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas. É o pretexto para a revolução. Já o espírito dissidente esvoaçava na atmosfera: o lirismo de João de Deus, ingênuo e sensual, a poesia científica da Visão dos Tempos, a filosofia de Antero simbolizavam o esforço da revolta.

O guante do desafio é, afinal, arremessado às barbas do velho Árcade, sob a forma da célebre Carta do Bom Senso e Bom Gosto, subscrita pelo poeta que havia de ser mais tarde o mais amargo e piedoso de Portugal. Trava-se a batalha, áspera e pitoresca. Pululam os panfletos. Encarniça-se a polêmica. Os alicerces do trono papal balouçam ao fragor da nova falange.

“A facilidade com que entre nós se fabricam as reputações literárias, – pondera um escritor da época – a impunidade com que se adormece à sombra dos louros colhidos, o deleite com que tanto os grandes como os pequenos ouvem reciprocamente o canto da sereia, denominado elogio mútuo, a má-fé ou excessiva condescendência na crítica literária, são, decerto, a principal origem da astenia que apresenta a nossa boa literatura. Desde o vulto mais eminente até o mais modesto critiqueiro, quem é que se atreve a dizer desassombradamente a verdade na apreciação de uma obra literária que dimane de algum dos nomes que já têm enfeudados os direitos ao louvor público? Os magnates empunham o turíbulo, alguns maldizentes anônimos zumbem insolências desentoadas que desprestigiam o valor da censura, ainda que justiceira, e nestes extremos a crítica, ou convertida em blandícia de cortesão ou em descompostura de soalheiro, apresenta-se sempre ou de manto de seda e com a máscara da hipocrisia ou de mangas arregaçadas e chinelo no pé, falseando em ambos os casos a sua missão. O Sr. Antônio Feliciano de Castilho, o venerando decano dos nossos escritores, a quem as letras pátrias devem tão bons modelos de elegância, de linguagem e tantos primores artísticos de metrificação, é também um dos primeiros, senão o principal cúmplice do mau caminho por onde a crítica anda transviada. Ocupando o lugar eminente da nossa república literária, compraz-se em escutar os elogios e louvores até dos seus mais ínfimos cidadãos, retribuindo em moeda que de maior valor seria se não fosse pela maior parte falsa; e o deleite de escutar lisonjas a quem podia e devia ter as severidades de mestre de tal modo prende a independência da boa crítica dos outros, que insensivelmente se deixam ir levados na plácida corrente destes mentirosos louvores que oferecem, de mais a mais, a comodidade de ninguém precisar esforçar-se por avançar na senda da perfeição.”

A dissidência de Coimbra, senhores, não produziu os efeitos que parecia anunciar. O movimento que principiara por atacar o compadrio do elogio mútuo tomou o aspecto de uma luta de guerrilhas. A reação iniciada contra o dogmatismo que impunha a idolatria inconsciente dos clássicos, perdeu a força pela indisciplina dos poetas que nela se alistaram. Os três primeiros dissidentes acharam-se sós na vertigem das idéias novas. Houve um momento de desânimo: mas, quase imediatamente, uma pura onda de ideais estéticos se derramou sobre o desalento transitório, fortalecendo-lhe as raízes e enriquecendo-lhe a ramagem.

* * *

Coimbra transformara-se, pois, em um foco revolucionário e irradiante. O Ultra-Romantismo agonizava, envelhecido e anêmico; da tumultuosa França cresciam os gritos triunfadores de uma geração independente e segura dos seus destinos: João Penha assomava, sobraçando uma lira horaciana, e Gonçalves Crespo, ainda embriagado de visões tropicais, pregava como um apóstolo a religião da beleza eterna.

Em tal ambiente foi que o espírito de Garcia Redondo recebeu o primeiro beijo voluptuoso da Arte. Coimbra, com a eloqüência evocadora das suas lendas, os florões e grinaldas das suas catedrais perpetuando a história de séculos desaparecidos, o seu Mondego lúcido e serpentino, que recolheu as queixas daquela que depois de morta foi rainha, as suas quintas povoadas de cedros estendendo pelo ar a umbrosa fronde, no desespero de quem pede misericórdia, a alegria nupcial das suas madrugadas, que se espreguiçam amorosamente sobre o peito dos penedos, os seus trigais, as sua fogueiras, as suas guitarras, havia de deixar na alma do estudante o sulco de uma infinita saudade.
Bem-aventurados os que sabem, como Garcia Redondo, cultivar essa flor dolorosa! No lindo jardim do seu sentimento ele jamais deixou de regá-la de pranto. Até à hora da morte se lhe entretiveram os dedos em folhear as páginas do passado, e era a alma de Coimbra que morava dentro da sua alma brasileira como uma amiga inseparável.

Em casa das velhas Seixas, veneráveis donzelas que em câmbio de uma modesta mensalidade se consagravam à tarefa de agasalhar e alimentar estudantes, instalou-se Garcia Redondo apenas arribado à terra dos bacharéis. Bisonho, franzino, nostálgico, o futuro engenheiro chorou de tristeza e sentiu o desalento da soledade. A boêmia acadêmica alvoroçava-lhe as noites com as violas dos trovadores. A alegria buliçosa dos bandos de capa e batina avolumava sua timidez de caloiro. Buscou refúgio na convivência dos seus companheiros de casa, entre os quais três havia que se destacavam na multidão universitária: João Penha, Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo.

O primeiro era um irônico, um paradoxal, um sarcástico, dormindo de monóculo, caçando os gatos dos vizinhos na ânsia de lhes sacar a pele, cultivando roseiras em caixotes arrombados e regando com vinho da Bairrada os manjericões da sua varanda. Mas era também o sonoro, o impecável, o perfeito artista de alma pagã que injetou uma nova seiva na poesia nacional, desanimada desde a dissidência, declara um contemporâneo, por via dos metafísicos, transcendentais e nebulosos assuntos das odes de Antero e das Visões de Teófilo. Junqueiro começava já a impressionar a Academia com o fogo dos seus versos que deviam mais tarde de transformar-se em fuzilantes incêndios. Gonçalves Crespo, enlevado nos feitiços da sua loira vizinha, a Mimi das Miniaturas era já Benevenuto Cellini da Forma, cinzelando, através de um lirismo, por vezes camoniano, os camafeus e os esmaltes das suas estrofes.

Por afinidades simétricas de índole e temperamento, foi ao poeta das Miniaturas que mais se afeiçoou o recém-chegado carioca. Talvez a saudade da mesma pátria os unisse melhor... Altas horas da noite, na mansão das velhas Seixas, os ouvidos do estudante recebiam a musical confidência dos versos do poeta e se lhe dilatava a alma à divina emoção irradiada de tal música... Recostado ao respaldar do leito de ferro, aberta a janela sobre o Mondego adormecido, a voz repassada de ternuras infinitas, Gonçalves Crespo declamava ao companheiro extasiado:

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos
E tenho as formas ideais do Cristo.
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos.
E se na terra existe, é porque existo.

Esse alguém que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado,
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado.
Esse alguém abre as asas no meu leito
E o meu sono desliza perfumado...

Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! esse alguém
É de meus dias a esplendente aurora,
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!

Do grande artista das Miniaturas conservou Garcia Redondo tão afetuosa lembrança, que ao fundar-se esta Academia foi Gonçalves Crespo o patrono que escolheu. Mas o poeta já não era brasileiro: naturalizara-se, fora deputado às Cortes de Lisboa, e, sem embargo da sua índole, da sua raça, do seu temperamento, havia perdido para sempre, assim no estado civil como no estado poético, os foros de cidadão. A nostalgia, contudo, estava-lhe no sangue, era um instinto que o dominava, aspectos dos trópicos entrevistos na infância, brilhavam na paisagem do seu espírito:

O vento que passe tranqüilo, de leve,
Nas folhas do ingá,
As aves que abafem seu canto sentido,
As rodas do engenho não façam ruído
Que dorme a Sinhá!

“Tristezas quase inconscientes do exílio, nostalgias de ave friorenta, visões vagas, radiosas da pátria distante; desgostos de ordem muito particular, e sobre tudo isto uma impressão dolorosa, indefinível, que nem aos mais queridos ele confessava, mas que ungia de tristeza inefável os seus versos, que punha aqui e ali uma nota abafada e dilacerante na harmonia magistral da sua obra, eis a tríplice inspiração que deu uma vida intensa ao seu primeiro livro, no livro da sua mocidade, as Miniaturas.”

Destarte se exprime a gloriosa viúva do poeta, que escreveu sobre ele um estudo comovente, onde as lágrimas da esposa não perturbam a segurança da análise crítica.

* * *

De uma feita foi a casa das velhas Seixas elevada tumultuosamente à categoria de redação: João Penha lançava a Folha ao bulício da publicidade. O ano de 1868 deve permanecer nos anais da história da Poesia portuguesa, porque a Folha atuou poderosamente no seu débil organismo, dando-lhe um novo aspecto na graça e na linha do verso, no matiz e no fulgor das imagens, na sobriedade da expressão e na própria virilidade do sentimento. A semelhança do que três anos antes se passara em Paris, em torno do Parnaso Contemporâneo fundado por Xavier de Ricard e Catulle Mendès, agruparam-se em torno da Folha os novos Artistas que a “mocidade, a esperança, o horror à desordem poética e a quimera da perfeita beleza” encadeavam ao mesmo entusiasmo.

As colunas da Folha foram as colunas de um templo onde se recolhiam os bardos das ilusões e das angústias da Vida, cumprindo o rito da Arte vitoriosa. Novato na literatura, como na Academia, não era dado a Garcia Redondo penetrar no cenáculo dos corifeus. Mas o jornalismo seduzia-o; seria a sua enxada para desbravar as selvas do porvir. Não o detinha a sentença de Gautier, que via na leitura dos jornais um obstáculo à formação de verdadeiros sábios e de verdadeiros artistas e afirmava que o jornal havia de matar o livro, como o livro matou a literatura, como a artilharia matou a coragem e a força muscular. Garcia Redondo folgava com o projeto de redigir periódicos: era o desabrochar de uma vocação que anos depois florejou com abundância.

Andava por esse tempo em Coimbra um poeta pernambucano mourejando nas Ordenações Afonsinas e nos tortuosos labirintos do Direito Civil, de capa ao ombro, gaforina à brisa, alma ébria de visões, fantasia cheia de sorrisos, devoto freqüentador das peixadas da tia Camela...
Garcia Redondo foi falar ao bardo. De muita indústria de persuasão devia de dispor o estudante para tão facilmente conseguir a anuência do seu patrício: pois a verdade é que semanas depois a redação do Peregrino se instalava na velha casa das velhas Seixas. O sócio de Redondo está aqui nesta sala, maldizendo, talvez, o indiscreto evocador dessa Boêmia prazenteira, desse tempo em que ainda não eram brancos os seus cabelos, dessas horas em que ainda não cogitava de ser o eminente professor e acadêmico Silva Ramos.

Foi no Peregrino que estampou o seu, primeiro conto, à feição das histórias extraordinárias de Edgard Poe, o jovial Garcia Redondo, que pela vida afora tantos belos contos escreveu! A sua pena tornou-se galhofeira, ágil, saltitante. Em todas as suas obras se adverte, por isso, uma ironia leve, um bom humor quase nunca interrompido, um sempre matizado enredo, de curiosidade e de graça, e uma elegância de estilo sem demasias de contornos, antes sóbria e singela e que é a virtude essencial do seu, talento.
Nas Viagens pelo País da Ternura transparece, à vontade, a fisionomia moral deste escritor. Sobre as páginas do livro adeja, maravilhosamente sereno, o Espírito Santo da felicidade familiar. Elas nos transmitem a poesia dos seus primeiros idílios, a história dos seus primeiros arrufos, – arrufos de namorados que são amores dobrados – o chilreio do seu primeiro filho.Tudo é ali narrado com um jeito comovente e discreto, onde o ridículo não ousa embrenhar-se nem o braço impaciente da Crítica se atreve a meter a foice. Há, todavia, outro amor que não deixa repousar o espírito de Garcia Redondo, é o que ele sente pela fecunda Natureza. Em quase todas as páginas dos seus livros abrolham plantas e corolas, luzem searas, se enramam bosques, entrelaçam-se amorosos troncos.

O caráter afetivo da sua individualidade manifesta-se em todos os atos da sua vida: às pessoas e cousas da sua juventude conservou sempre esse tenaz apego que só acha agasalho nos corações superiormente perfeitos.

Já professor da Escola Politécnica de São Paulo, parte um dia para Coimbra no intuito de rever o quarto do seu tempo de estudante. No mesmo dia da chegada, ao amanhecer, às horas em que as lindas lavadeiras acordam o Mondego com, a jovialidade das suas vozes, o ilustre escritor escapa-se sorrateiramente do hotel onde alojara a família, e aí vai subindo lentamente a íngreme rua, olhando para as fachadas de todos os prédios, que não haviam envelhecido como o seu rosto, pisando as roliças pedras da ladeira, que o tempo não havia tornado mais macias, no descortino da casa das velhas Seixas, onde trinta e quatro anos antes o seu coração ainda não provara as cóleras da vida. E sobe a mesma escada de degraus baixos, a escada de João Penha! e abre a mesma porta de madeira roída, a porta de Gonçalves Crespo! e arrima-se à mesma parede de cal desmaiada, a parede de Guerra Junqueiro! e afinal bate palmas como há trinta e quatro anos antes.

– Que deseja o Sr. Doutor? – indaga uma voz de mulher.
– Quero visitar o prédio, senhorita.
– O prédio está alugado. O senhor é da Higiene?
– Sou um antigo morador desta casa e venho visitar o meu quarto, se a menina der licença.
– Pois não, – concede a dona da voz, aparecendo ao antigo estudante como uma enviada, talvez, das Seixas que teriam ouvido, na paz do túmulo, a súplica do seu hóspede. Mas há gente no quarto, um quintanista de Teologia, que ainda, não acordou. Não pode voltar mais tarde?
– Ai, se soubesse a pressa que tenho de rever o meu quarto...
– Então, venha comigo, meu rico senhor...
– Era aqui o quarto do Pareto – murmurou o autor das Carícias estacando no primeiro patamar.
– Agora é o do Sr. Simões – elucida a tricana.
Outro lanço mais e ei-los em frente a uma porta de tristonho aspecto. Anima rerum. Garcia Redondo inclina-se, recolhe a chave que jaz no soalho, debaixo da porta, como trinta e quatro anos antes, mete-a na fechadura, dá a volta, entra... Era o seu quarto! Os mesmos muros, a mesma janela, a mesma cama de ferro no mesmo lugar de outrora! O estudante de Teologia empina-se no leito, alvoroçado com tão inesperada visita.
– É aqui o cavalheiro que morou neste quarto, há trinta e quatro anos e quis tornar a vê-lo – explica a amável cachopa.
O futuro capelão reengolfa-se nos lençóis e Garcia Redondo queda-se, contemplativo, dentro daquelas quatro paredes que tantas boas cousas lhe diziam!
Súbito – que é isso? está-se lembrando de tristeza, interroga a pobre mulher fitando os olhos no seu rosto... É que surpreendera uma lágrima que ele em vão procurava reter, homenagem silenciosa à juventude desaparecida!

* * *

A convivência com os melhores espíritos da geração de Coimbra influiu poderosamente na formação literária deste notável acadêmico. Leituras dos mestres metodizaram e fortaleceram o seu irrequieto talento. Maupassant e Carlos Dickens, Heine e Eça de Queirós, Gautier e Gonçalves Crespo, chamaram-no ao amor das curiosidades artísticas. Findos os estudos preparatórios, Garcia Redondo regressa ao Rio de Janeiro e matricula-se na Escola Central, de onde sai em 1876 sobraçando um diploma de bacharel em Matemáticas. Constrói o Teatro Guarani, vulgariza as estradas de ferro de bitola reduzida, canaliza as águas termais de Poços de Caldas, funda o Instituto Histórico de São Paulo, é nomeado professor de Botânica e Zoologia, lança revistas, colabora em quase toda a imprensa das duas capitais. Em 1882 publica os Arminhos e, a partir desse ano, o seu talento parece acometido de uma febre sem intermitências. Aos Arminhos sucede o Atentado da Rua S. Leopoldo; depois vêm as Carícias, em seguida a Choupana das Rosas, Moléstias e Bichos, Salada de Frutas, Através da Europa, Conferências Literárias. É autor dramático. É abolicionista. É historiador. É crítico de arte. É até feminista.

No estudo deste inesgotável assunto é que o nobre acadêmico mais nitidamente revela a feição bondosa do seu caráter. A sua pena está sempre à mercê dos oprimidos. A sorte da mulher inspira-lhe páginas de uma grande elevação moral, combatendo sem tréguas o despotismo do homem. Para ele o homem “é brutal e egoísta, mantendo em si o gérmen da fera inconsciente. Escravizar, escravizar, eis o tema da sua eterna preocupação. Para opor uma barreira a esse domínio é indispensável que as mulheres se levantem em massa e, por sua vez, neguem tudo a quem nada lhes quer dar.”

Garcia Redondo conhecia, decerto, a dolorosa série de esforços que a história da humanidade nos transmite, empregados na conquista dos direitos das mulheres. Porque o antigo Oriente as exclui das funções religiosas, vedando-lhes o conhecimento da Lei Santa, das funções públicas e liberais, considerando-as “no físico débeis como as crianças e no moral vis como os escravos”. Na Grécia antiga elas só existem para a conservação da família e permanecem alheias a todas as profissões e a toda a educação intelectual, salvo as cortesãs que, letradas e prendadas, ensinam a Sócrates eloqüência e inspiram discursos a Périclés. Roma, menos tirânica, dá-lhes, na vida exterior e social, um posto ao lado dos homens; já lhes concede as mesmas profissões que estes podem exercer, já associa as esposas aos cargos administrativos dos maridos, já admite médicas, atrizes e professoras.

O Judaísmo da Idade Média afirma a inferioridade da mulher. Só o cristianismo e o germanismo a respeitam e a exaltam, vendo na sua fraqueza, que inspirava apenas desdém à antiguidade bárbara, um motivo para protegê-la. A palavra de Cristo derrama sobre ela os clarões da sua doutrina serena. “Não há judeu, nem grego, nem servo, nem livre. Não há macho nem fêmea. Porque todos vós seis um em Jesus Cristo”. A eqüidade triunfa sob a influência da beleza evangélica. O germanismo vê algo de celeste na natureza moral da mulher: inesse sanctum aliquid et providum putant. Reconhece-lhe os mesmos direitos dos homens e por vezes proclama a superioridade feminina.

Mas sob a influência do Direito Romano, do Direito Canônico, do Helenismo, da Renascença das letras, liquida-se um trabalho de mais de doze séculos. A barbaria mescla-se à civilização. Os textos bíblicos, desvirtuados pela influência dos judeus, fornecem copiosos elementos aos tradicionalistas. A mulher volta a ser o que fora na Grécia antiga e no antigo Oriente: uma criatura inferior. Comenta-se Isaías, que vozeava contra as filhas de Sião, por andarem – exclama o profeta – “de pescoço emproado e a fazerem acenos com os olhos”; invoca-se São Paulo, que apregoava a humildade da mulher, “imagem e glória do homem, como o homem glória e imagem de Deus”; aponta-se o Gênesis, proclamando-a um acessório do homem, “osso dos seus ossos e carne da sua carne”. Acusada e destruidora da harmonia primitiva, ela resgatará o seu pecado, permanecendo submissa àquele que enganou. O Concílio de Macon chega ao ponto de perguntar se a mulher faz parte da humanidade! Excluída de todas as funções sociais e públicas, concede-se-lhe apenas que saiba ler e contar. E, como regra, “que obedeça, que sirva e que se cale”, segundo ordena o apóstolo São Paulo.

Era o regresso aos tempos despóticos dos gregos e dos muçulmanos: a reação não devia demorar. A partir da Revolução Francesa até os nossos dias, com efeito, a idéia de eqüidade e justiça, relativamente às mulheres, corre parelhas com o progresso da civilização e as conquistas das ciências naturais e filosóficas. Desaparece o despotismo inicial para dar lugar ao triunfo, quase definitivo, da igualdade dos direitos humanos. Ninguém põe dúvidas sobre a semelhança moral e intelectual dos dois sexos; e acerca da força física, já se admite que haja no mundo milhares de mulheres mais aptas para o trabalho do que muitos fracos e franzimos varões que nesse mesmo trabalho mourejam.

As mulheres alcançam brandamente todas as profissões. Os homens do século XX quase nada lhes negam: saúdam nas escritoras e nas médicas, nas artistas e nas sábias, nas advogadas e nas poetisas, as ideais colaboradoras dos seus ideais. Se Rousseau, Michelet e Auguste Comte preferem a mulher dentro de casa, alheia a toda a vida exterior, divindade do lar, anjo da guarda do santuário doméstico, Saint-Simon é progressista, Condorcet defende-a em todos os terrenos e Stuart Mill considera-a capaz de exercer as profissões que até hoje têm sido exclusivo privilégio do sexo forte.

Pouco falta, em suma, para a completa vitória dos direitos femininos. Ela chegará com a vertiginosa carreira dá civilização e, sobretudo, com o amanhecer da Paz, que há três anos anda adormecida na sombra da terra.
Até lá consolemo-nos com as palavras da célebre esposa do Ministro de Luís XVI, Madame Jeanne Roland, escritas a Bosc d’Antec:

Sans nous, vous ne seriez ni vertueux, ni aimants, ni aimables, ni heureux: gardez la gloire de l’autorité dans tous les genres, nous ne voulons d’empire que par les moeurs et de trones que dans vos coeurs.

* * *

Garcia Redondo, que mostra pelos infortúnios alheios uma grande comiseração, era para a própria dor de uma estóica filosofia. Cultivava, com certa voluptuosidade, a memória das mágoas íntimas. Tinha a nítida compreensão da inutilidade de combater o irremediável. Os sistemas metafísicos que negam a entidade do Mal deviam de se lhe afigurar absurdos nesses momentos de suprema angústia. Ele bem sabia que na vida os dias felizes são apenas breves entreatos da imensa tragédia que é a história dos homens. Duas vezes combalido com a morte das filhas, não perde o equilíbrio moral em presença da espantosa catástrofe.

Transforma-se no túmulo vivo das crianças mortas. Não blasfema, como Guilherme Braga, à beira dos esquifes:

Hei de orar? mas na sombra da consciência
Não me luzem cá dentro ignotos brilhos:
Hei de crer? mas a mão da Providência
Tem garras para mim... rouba-me os filhos!

Alma delirantemente panteísta, é ao regaço da natureza que vai entregar o coração coroado de martírios.
Tudo canta e ri, no cemitério onde as mortas se esquecem da vida... “O lírio branco faz madrigais às rosas, a hera abraça os troncos” e do mármore alvejante cresce para o céu uma onda de tão etéreos aromas que pouco a pouco se lhe suaviza a imorredoura aflição.

“Vamos, coração, enfeita-te. Há nos muros madressilvas cheirosas, anêmonas e lírios nos canteiros fofos. Cobre-te de flores, coração torturado, e assim disfarçarás a tua angústia, sob essa capa de pétalas macias de perfumes narcotizadores. Eu sei onde há violetas brancas e roxas, grandes, lindas, alvas e douradas, de corola de veludo. Eram essas as flores que Elisinha amava. Corre, voa, coração dorido, vai a Campinas buscá-las e põe-lhas no seio alvo e cândido, depois de o beijares docemente. Mas não chores, pobre amigo, não chores para não atormentares as pobrezinhas que sofrem de te ver sofrer.”

* * *

No limiar da vossa Casa concedei-me, senhores, a grande mercê de vos declarar a sinceridade dos meus agradecimentos. Mas ao render-vos este preito eu não me esqueço do grande poeta cujo nome tive a riqueza de herdar.

Acreditai que foi a sua memória que inspirou os vossos sufrágios; pela primeira vez o filho de um acadêmico ia ter a honra de ocupar uma cadeira na Academia. Elegendo o filho obscuro haveis prestado uma homenagem ao pai ilustre. Ele foi, bem o sabeis, um dos fundadores deste instituto, e eu não me esquivo ao dever de realçar a beleza do vosso gesto, indo buscá-lo ao seu leito de dor, longe da pátria, alquebrado pela doença e ferido pelas injúrias do destino, para lhe oferecerdes o encanto da vossa companhia. Longe da pátria, jamais dela se separou o sonetista da “Visita à casa paterna”, pois com ela sorriu, com ela se enterneceu, com ela se identificou até à morte.

Asseveram certos entendidos, para quem a diplomacia é a arte das formas polidas, feita de astúcia e estratagemas onde o pensamento vive mascarado e onde a frivolidade, a gravidade protocolar e a compostura de mostra avultam, que ela transformou o grande lírico brasileiro em um simples e refinado amante da forma poética. Que lhe dinamizou a sinceridade emotiva, que lhe atenuou as naturais tendências de arrulhador romântico. “Nem sempre nos versos dele”, pretende Fialho de Almeida no prólogo dos Sonetos e rimas, “a emoção resultará do sentimento afetivo acordado na alma pela idéia dramática do assunto, senão pela convergência de melodias exóticas que a linguagem lhe empresta, já pela rima, já pela estridorosa eufonia do adjetivo e do metro. É uma emoção que vai ao cérebro antes pelo ouvido que pelo coração. Quando muito, terá ele mais lapidada a estrofe, desesperando, à força de correção, os que venham para atingi-lo ou imitá-lo. No fundo, porém, o sentimento andará dinamizado, ou artificialmente posto em jogo; e em vez do eterno amor, dominativo e panteísta, a obra revelar-nos-á um ceticismo elegante, uma índole romanesca, incapaz de ser dominada pela paixão, um lírico da decadência, melhor: um parnasiano.”

É vezo da Crítica, senhores, dar uma alcunha aos poetas como se dá um número aos condenados. Desde que em 1865 Le Parnasse Contemporain, fundado por Catulle Mendès e Xavier de Ricard, acolheu nas suas páginas os lavores dos artistas que faziam do escrúpulo do idioma e da plástica do verso uma nobre religião, o vocábulo parnasiano começou a entranhar-se pela França e foi importado pelo Brasil para definir a impassibilidade, a joalheria, o êxtase da técnica.

Negou-se a esses artistas a virtude dos sentimentos humanos, porque porfiavam em celebrá-los em linguagem limada. A Crítica hostil, com Sainte-Beuve à testa, não quis reconhecer um tal casamento de amor, do Sentimento com a Forma. Cobriram-nos de motejos, de afrontas, de remoques. Acusaram-nos de iconoclastas. Lobrigaram nos seus desígnios que era, simplesmente, amar a Arte acima de todas as cousas um ódio pelos ídolos em voga. Entretanto, Baudelaire inspirava os novos poetas com os estertores dos seus poemas, Musset consolava-os nas horas tenebrosas, Leconte de Lisle descortinava-lhes os mistérios da Antiguidade, Gautier deslumbrava-os com a Divina comédia das suas imagens, e Victor Hugo, tal um profeta interpretando a alma do Universo, mandava-lhes do exílio a bênção do seu Gênio...

Aqueles parnasianos não tinham escola, nem de estilo nem de metrificação; eram independentes, sem estatutos nem compromissos. Celebravam, em brunida língua, a emoção diáfana da vida, cuidando, sim, de dar frêmito à imagem, realce ao vocábulo, à frase primor, e de que as rimas baloiçassem no remate de cada verso com a elegância com que se baloiçam as flores na extremidade de cada ramo.
Sem embargo, convém repeti-lo, parnasianismo ficou sendo sinônimo de habilidade mecânica, em relação à poesia. Não houve, daí por diante, um poeta correto, esmerado na Forma, enamorado do Ritmo, que escapasse ao terrível batismo. As melopéias plangentes, que faziam as delícias dos salões almiscarados, continuaram a ser as exclusivas manifestações da poesia do sentimento, não obstante às vezes nos alvoroçarem com jeitos aleijados de sintaxe e uma patológica anemia de rimário.

Em face de tal concepção, definitivamente enxertada na crítica brasileira, não quero deixar o grande lírico dos Sonetos e Rimas pregado por mais tempo à cruz do Parnasianismo. Se ele soube cinzelar como François Coppée, também soube sentir como Lamartine: e pela feição psicológica da sua musa, que tinha todos os delírios, todas as paixões e todas as formosuras, ficará na Poesia Nacional como um dos seus mais olímpicos Apóstolos.

Não foi parnasiano nem romântico da Decadência; foi simplesmente um Poeta, um desses seres privilegiados, na frase de Paul de Saint-Victor, “que iluminam com um esplendor mágico todas as figuras que penetram no círculo da sua existência”.

Que importa que haja vivido longe da pátria, no deslumbramento de cortes e museus, entre as reverências do dandismo diplomático? Nem se me afigura, senhores, que a tão pouco se deva reduzir a ciência da diplomacia: a uma simples arte de formas polidas, onde o pensamento se esconda e a estéril astúcia governe! Estranha mania, esta, de entre nós se amesquinhar a ciência que, desde o alvor da nossa vida política, foi campo onde araram tantos notáveis engenhos!

Esquecê-los será injuriá-los. Queira Deus que tal insistência não acorde os ecos da palavra de Vieira, pregando do cimo da tribuna sagrada, no sermão dos pretendentes. “Se servistes a pátria e ela vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma.”

Escola de frivolidade? Mas é desconhecer-lhe a origem, a importância e o objetivo, desde os nebulosos tempos do Oriente, quando os povos careciam de qualquer instinto de sociabilidade, até durante e depois do século de Richelieu. Escola de astúcia? É desvirtuar-lhe a função, harmonizadora e fértil, tão lucidamente exposta pelo mais hábil diplomata do Congresso de Viena, o Príncipe de Talleyrand, na Academia das Ciências Morais e Políticas de França:

“Je dois le rappeler ici, pour detruire un prejugé assez généralement répandu: non, la diplomatie n’est pas une science de ruse et de duplicité. Si la bonne foi est nécessaire quelque part, c’est surtout dans les transactions politiques car c’est elle qui les rend solides et durables.On a voulu confondre la réserve avec la ruse. La bonne foi n’autorise jamais la ruse, mais elle admet la réserve; et la réserve a cela de particulier, c’est qu’elle ajoute à la confiance.”

* * *
Diplomata e poeta, o grande lírico dos Sonetos e rimas nada perdeu, nem com a ausência do Cruzeiro, nem com a profissão que preferiu. O sentimento nativo continuou a viver dentro da sua alma, nascida entre as roupagens da natureza tropical, e avolumado ainda por esse outro sentimento que só desabrocha no coração dos que do semblante da pátria vivem arredados: a nostalgia.
Longe dos morros entoou Gonçalves Dias a terna “Canção do exílio”. Longe da pátria escreveu o artista dos Sonetos e rimas a mais piedosa, a mais dolorosa, a mais saudosa elegia que a morte de um filho jamais inspirou ao gênio de um pai...

Se tivesses caído à sombra das montanhas,
Lá onde a planta, o fruto e a flor são imortais,
Se em vez de sucumbir nestas terras estranhas
Morresses, filho meu, na terra de teus pais;

Se Deus me houvesse dado a suprema ventura,
A mim, que nada espero e que nada ambiciono,
De abrir a tua cova ao pé da sepultura
Onde jaz mãe dormindo o eterno sono;

Se a manhã tropical baixando da alta serra,
Em seus braços colhesse, extática e fagueira,
O espírito gentil que te animou na terra,
Como o perfume anima a flor da laranjeira;

Se ao murmúrio fugaz da aragem suspirosa,
Que desce da palmeira ao vale adormecido,
Exalasses, ó harpa angélica e saudosa,
Teu suspiro final e teu final gemido;

Se os doudos colibris, alígeros diamantes,
Vagabundos rubis, safiras implumadas,
Cercassem-te o caixão nos vôos fulgurantes,
Como um roto colar de gemas espalhadas;

Se a voz dos sabiás, os bardos da tristeza,
Os poetas da aurora e do final do dia,
Te saudasse ao passar, ó mimo de pureza,
Alvo botão de flor, morto quando se abria;

Se teu corpo descesse à lúgubre morada,
Seguido pelo olhar, fraterno e carinhoso
Dos amigos fiéis que lá na pátria amada,
Sofrem com minha dor e exultam com meu gozo;

Ah! Gabriel! talvez minh’alma, infausta e exangue,
Não curtisse a amargura atroz que a vai minando...
Nem chorasse, meu filho, as lágrimas de sangue,
As torrentes de fel que agora está chorando...

Pois ali entre os meus, ali na nossa terra,
Grande e nobre e festiva – eternamente em flores,
Ali onde o sepulcro, a própria campa encerra,
– Belo oásis final – miragem de esplendores,

Dormirias feliz, ouvindo as cantilenas
Das aragens do sul vindas das serranias,
Meiga, tão meiga voz como as cousas serenas
Ditas por tua mãe quando tu lhe sorrias...

Dormirias feliz, enquanto vagamente
Leve como o adejar de um solitário pombo,
Sobre ti verteria o seu olhar dolente
A Lua, a terna irmã dos sonhos de Colombo!

Velaria o teu sono a maga natureza,
A sublime imortal em cujo seio mora
Tudo o que Deus criou na máxima beleza,
As noites tropicais e a tropical aurora...

Os estranhos clarões de um sol indiferente,
O pardo sol do inverno, exânime e sem brilho,
Não viriam roçar a sepultura algente
Que tens restos devora, ó filho, ó filho, é filho!

Terias sobre ti a constelada esfera,
Vibrante de harmonia, ardente de fulgores,
Onde Deus espalhou – eterna primavera –
Astros em profusão como no vale as flores...

Terias sobre ti o pavilhão divino
De um fulgurante céu de beijos estrelado,
De um céu que me sorriu quando eu era menino,
E que hoje chora, eu sei, por ver-me desgraçado...

E teu querido corpo, ó tímida gazela,
Na campa dormiria, alegre e venturoso,
Ao dulcíssimo olhar da eterna sentinela,
Do Cruzeiro do Sul, calmo e silencioso...

A flor, o astro, o céu, a planta recendente,
Longe estão... Tu aqui, rosa perfeita e casta,
Em vez da terra mãe tiveste, unicamente,
Uma campa estrangeira, – um seio de madrasta!

O afastamento da pátria não transfigurará a psicologia dos verdadeiros poetas, quando eles já partem levando nos olhos todos os seus amores e todas as suas paisagens... E o dandismo diplomático não será assaz deletério para desnacionalizar o espírito gentil que sobre as montanhas natais abriu, pela primeira vez, as asas frenéticas. O vosso confrade já era intensamente brasileiro quando os decretos da vida o encaminharam para Roma: ali apurou-se-lhe a arte, alindou-se-lhe a rima, aformoseou-se-lhe o êxtase pela eurritmia do verso, mas não lhe faleceu nos braços a Musa da sua juventude.
Nos seus cantos mais pessoais e subjetivos brota a virtude de confiar à pátria os íntimos desesperos. Sobre o túmulo da esposa não espalha cravos de Castela nem violetas de Parma: é uma piedosa flor brasileira que perfumará o repouso da morta...

Meu amor! meu amor! hirta, gelada,
Dormes o sono que amedronta e aterra...
Oh! meu franzino bogari da serra
Oh! minha rosa pálida e magoada!

No turbilhão das grandes capitais, onde o esplendor de civilizações vitoriosas pudera recamar-lhe o talento com essa volúpia de vago ceticismo tantas vezes apregoado, a sua lira desfaz-se, ao contrário, em soluços de doçuras nostálgicas:

Dai-me a vertigem da elevada serra,
Dai-me as riquezas da floresta virgem
E sete palmos só da minha terra!

A meio da jornada, do tombadilho deserto, o seu derradeiro adeus é contido em três versos dolorosos:

O mar parece todo um só gemido...
E eu mal sustenho o coração partido
Oh! terra de meus pais! Oh! minha terra!

E enquanto Roma lhe repete a história da sua grandeza desaparecida, nas mortas ruínas do Fórum, no esqueleto rugoso do Coliseu, no heróico isolamento do carvalho de Tasso, o seu ouvido brasileiro distingue as vozes da matizada floresta:

... as árvores falavam:

A secular mangueira fielmente,
Repetia-me o branco idílio ardente,
Que dois noivos, à tarde, lhe contavam...

A palmeira narrava-me a inocência
De um puro e mútuo amor, – sonho que veste
Dos loiros anos a feliz demência.

Ouvi o cedro, o coqueiral agreste,
Mas, excedia a todas a eloqüência
De uma que não falava: – era o cipreste!

Pois que o Parnasianismo já não pode ter a significação que lhe foi dada pelos bardos de 1865, não chamemos parnasiano a um poeta cuja arte, profundamente emocional, se remira no mais puro lirismo da Poesia do Amor.

É certo que ela refrange os coloridos do aquarelista e nela se entranha o buril do cinzelador: mas, a par de tão requintados esmeros, quanta exuberância de emoção! Ainda no aspecto impessoal, descritivo, da sua obra, transluz a natureza lírica do seu temperamento. O poeta que só dispõe de vocábulos, menos ditoso que o artista que dispõe de todos os sorrisos da cor, precisa de comunicar à paisagem que descreve, ao sertão que celebra, ao semblante do mundo externo que interpreta, a maneira como esses aspectos o impressionam, numa palavra, o seu próprio sentimento. “A morte da água” será sempre um hino de orgulho à independência e à liberdade jorrando de estrofes de inexcedível relevo. Não basta sentir para ser poeta: é indispensável idealizar a linguagem da emoção, condensando, por um dom quase divino, a devoradora angústia que anda espalhada sobre a face trágica do mundo. Verdadeiro poeta será aquele que, desdenhoso de regras escolásticas, souber engastar as suas lágrimas em grinaldas de valor, dando-lhes as facetas dos diamantes sem lhes empanar o brilho, que é dos diamantes a verdadeira alma.

Mau grado o rebelde grito de Leconte de Lisle, – quand finirez-vous avec cette baliverne-là? – o Parnasianismo será sempre para a crítica a escola da impassibilidade. “Os parnasianos, à falta de ideal, se absorvem na cultura exclusiva, da Forma”, declara TeófiIo Braga, nas Modernas idéias da Literatura Portuguesa; “Os parnasianos pretendem fazer arte e poesia só com os apuros da Forma”, escreve o grande autor da História da Literatura Brasileira. Não chamemos, pois, parnasiano àquele cujo poderoso lirismo desabrocha em florescências de mágoas, se agita como o oceano fustigado pela tormenta ou adeja, tal uma ave ferida, sobre a musa tenebrosa da Dor...