Senhor Macedo Soares,
Curiosa e significativa singularidade esta de que, ao serdes recebido na Academia, aquele a quem cabe dar-vos as boas-vindas possa dizer: Não é a primeira vez que a Academia vos recebe!
Neste ambiente azul, talvez nenhum outro tenha tido semelhante honra e tão grande distinção. Mas não termina aí o insólito do caso: quem agora vos recebe já aqui mesmo vos recebeu.
Vindes hoje para ser vossa fronte cingida pelos louros acadêmicos; há dois anos e meio éreis vós que nos trazíeis louros – os louros do Lácio, na mesma sagrada terra onde vicejaram os que coroaram os heróis das guerras púnicas e gaulesas – e que lá mandastes buscar a fim de os transplantar para o jardim da Academia. Delicada idéia, que somente de um cérebro cultivado finamente poderia ter brotado, e pela qual a beneficiada voz fez uma recepção pouco menos solene do que a de hoje, ante o fulgor de uma assistência de embaixadores de reis e de repúblicas, bem como dos mais legítimos plenipotenciários das letras e das artes. E, como agora, notavam-se também nesta sala lindas rainhas – sem coroa, não importa, mas com a majestade imperecível da graça, – dessas cujo poder eterno as revoluções não podem destruir e a quem todos os regimes têm de beijar a mão.
Ainda, como hoje, coube ao acadêmico neste momento com a palavra a incumbência de vos saudar. Tarefa então bem mais fácil, porque limitada a um tema único – o doador de loureiros à Academia, – ao passo que, desta vez, meu encargo se amplia desmedidamente, compreendendo os numerosos temas em que se desdobra a vossa personalidade opulentamente variada, complexa, quase desnorteante por deslocamentos no tempo e no espaço, empreendedora simultânea de atividades diversas, saltando de uma grande posição para outra maior e, depois, recolhendo-se à anterior, para não tardar a galgar nova montanha azul banhada de luz solar.
Vossa vida nos últimos vinte anos dá-me uma impressão curiosa, algo original, mas que atua em mim com a precisão de uma imagem visual. Vejo vossa vida como se fosse a de um destro e valente jogador de xadrez a disputar com o Destino uma partida emocionante, interminável, na qual o campeão Macedo Soares – por sinal, jamais abandonado das graças dos deuses – manobra em longas diagonais com as suas rainhas e seus bispos, surpreendendo o adversário com inopinados saltos do cavalo; roca a torre quando precisa ganhar tempo e, avançando sempre, sempre melhorando, defende cautelosamente o seu rei, ao qual, até hoje, tem, com sorridente habilidade, sabido livrar dos xeques-mate.
Esse sagaz Alekhine, que às vezes finge de amador, mas é um mestre; que dá ao adversário a enganadora impressão de não preparar golpes e cujo intento se dissimula atrás de um olhar suavíssimo, “olhar de claridade intelectual, que esclarece a alma, e onde brilha a serenidade na luz da reflexão...”, tudo isto fornecia assunto para livros.
Só à custa de omissões propositais e de uma compreensão desagradável a quem o faça com a consciência de estar sacrificando um fértil material de estudo e comentário – só assim poderá sua personalidade caber na concentrada sinopse imposta pelo molde tradicional da saudação acadêmica e... pela não ilimitada resistência do auditório.
Cumpre também não perder de vista o que deveria estar gravado no frontispício das casas onde habitualmente se fazem discursos, principalmente nas academias, esses discursos que tanto e tão bem acabais de louvar na vossa formosa oração, primor de concisão.
“Todos os gêneros são bons, exceto o enfadonho”, conforme, há quase dois séculos, disse um genial escritor, que, melhor do que ninguém podia opinar e sentenciar, mas, apesar de tamanha competência, não escapou, ele próprio, à culpa de ter perpetrado alguns poemas que não se lêem sem que as pálpebras pesem de cansaço –, falemos francamente: alguns poemas que já ninguém pode ler. E, entretanto, escreveu-os Voltaire! Terrível advertência que, a julgarmos pelas montanhas de papel impresso, que, não fossem o fogo, o cupim e as “sapucais”, acabariam por modificar o sistema orográfico do globo; terrível advertência que, não obstante, a sempre crescente produção literária, por aí além, indica terem-na alguns autores imprudentemente desprezado!
A mim, porém, a ansiedade dos olhares da assistência está a lembrar-me o juízo de Voltaire cada vez que passo a ler uma nova tira deste discurso.
Se, conforme dissestes há pouco, às academias se atribui a invenção do discurso, e, se, para o nome delas Academus deu o seu, não lhes cabe por isso qualquer censura. Discursos acadêmicos podem ser suportáveis e até integralmente agradáveis –, do que acabais de dar um sugestivo e brilhante exemplo. O mal não estará nunca em serem acadêmicos, mas na eventualidade de se tornarem maçadores. Sempre com razão Voltaire... Conseguistes, consumado timoneiro, evitar o escolho; Deus a mim também permita navegar ao largo dele.
Aliás, devo confessar que me anima a impressão de que a misericórdia divina já se pronunciou em meu benefício, pelo aviso – que ouso interpretar como uma oportunidade preparada lá no Alto – pelo aviso, dizia, que me deu um autorizado representante de Deus na terra e brilhante legado do Vigário de Cristo no Brasil. Tenho a satisfação de o divisar entre nós, bem perto de mim, a seguir-me com seu ouvido bondoso, talvez presa de certa inquietação...
Sinto que o enviado do Céu está a perguntar a si mesmo: Irá o orador esquecer o conselho que indiretamente, há tempo, lhe dei?
Não, caridoso amigo. Tenho bem presente aquele encontro em que a eminente personagem se referiu a uma saudação que no dia seguinte me caberia pronunciar nesta Academia exatamente a vós, caro confrade, a quem agora novamente recebo: era o agradecimento nosso pelos loureiros romanos.
– Sei que amanhã será o senhor o orador – disse-me o prelado amante do nosso País, em cujo tom reticencioso não me escapou algo de especial e que daí a pouco se esclareceria, como justificada prevenção de quem já fora em dado momento vítima (nesse dia só, graças a Deus) de excessiva abundância verbal de minha parte, abominável pecado acadêmico em que, diz-me a consciência, não mais tenho incorrido.
– O orador será o senhor... repetiu o meu ilustre interlocutor, desejoso de me ser útil, mas ao mesmo tempo receando, na sua bondade, melindrar-me. Afinal, a intenção de praticar o bem venceu os seus escrúpulos.
– Já ouvi um discurso do senhor na Academia. E o caridoso amigo chegou à benevolência de lhe encontrar alguns méritos. Muito pode a generosidade de um virtuoso dignitário e diplomata eclesiástico! Certamente elogiava o discurso para, afinal, poder descobrir o fundo do seu pensamento:
– “Bom discurso, bom discurso, mas um tanto longo...” segredava-me carinhosamente ao ouvido. Olhou-me. Sorriu. Eu, em reverência, beijava o seu anel, profundamente reconhecido a tão inestimável lição amiga.
Espectro de discurso longo, a quanto obrigas!
Já no dia seguinte, felizmente, emendava eu a mão, ganhando o prêmio sacerdotal. Que Deus me ajude, neste momento, nem só a ganhar outra faixa verde de animação, mas também a sua bênção cheia de graças.
Mas, repito, não é fácil conciliar a conveniência de quem vos fala e, também, de quem o ouve, a todos nós aproveitando a brevidade da oração, com o dever, bem agradável, aliás, de caracterizar e comentar uma personalidade tão complexa, tão facetada como a do recipiendário desta noite.
É evidente que ele nasceu predestinado às letras jurídicas, as quais na sua copiosa obra, tanta vez se confundem com as suas belas-letras, cultivadas a cada passo, ao sabor dos pendores da sua ativa e admirável intelectualidade.
Plantou no Brasil o tronco dos Macedos esse Julião Rangel de Macedo, doutor em leis e um dos primeiros juizes de direito da Terra de Santa Cruz, a que veio ter em meados do primeiro século da Colônia e em cujo governo geral substituiu temporariamente ao famoso Salvador de Sá.
A vossa árvore genealógica transplantava-a assim ao Brasil um magistrado, ocasionalmente seu administrador maior também, e desse ilustre antepassado correm, sem dúvida, no vosso sangue, algumas das componentes do jurista e político que iria florescer, quatro séculos mais tarde, na terra já governada pelo seu antepassado Julião.
De certo, a mesma fatalidade hereditária igualmente marcava Antônio Joaquim de Macedo Soares, alma vibrante de libertador, cuja trajetória agitada e faiscante iria culminar numa cadeira do Supremo Tribunal de Justiça, com tal relevância ocupada pelo vosso tio que, no dia do seu desaparecimento, um ardoso companheiro naquele egrégio Colégio Judiciário, brilhante membro ali e benemérito fundador desta Academia, Lúcio de Mendonça, exclamava em plena Corte: “Senhores, morreu o maior Juiz de Direito do Brasil.”
Outro vosso tio era médico, mas um médico de consciência social, distribuidor incansável e igualitário de assistência a quantos nesta cidade lha solicitavam e que, rebentada a guerra estrangeira, corre, qual impulsivo semeador de alívios para os campos de batalha.
O Dr. José Eduardo de Macedo Soares, vosso pai, fez-se educador –, ainda uma consciência social agindo noutro sentido – o de modelar almas. E tão bem as soube ajustar que formou no coração dos seus discípulos uma das mais difíceis construções da cultura moral – a gratidão – a cada instante sacudida e ameaçada pelo instinto egoístico...
E aí está por que os filhos espirituais do educador de São Paulo continuam a venerar a memória do mestre, vosso pai. Também o filho de sangue, vós, por força, havíeis de sair um sensível às belezas da Vida.
E por isso mesmo que sabeis receber seus influxos, sabeis transmiti-los. Ainda estudante da Faculdade de Direito de São Paulo vos impúnheis à escolha dos companheiros para presidente da tradicional associação de classe, aquele Centro Acadêmico Onze de Agosto, a que têm pertencido tantas gerações passadas sob as arcadas do antigo Convento de São Francisco e cujo estandarte, na data própria, cada ano, a cidade aclama durante a passeata, em que já desfilou, pelo Triângulo, uma boa parte da nata intelectual do Brasil.
Fostes, mais tarde, presidente, em segundo grau, se assim posso dizer, do mesmo Centro Onze de Agosto, continuando a brevíssima série dos seus presidentes de honra – apenas dois..., e que dois! – o Barão do Rio Branco e o Conselheiro Rui Barbosa. Ambos pertenceram também a esta Academia. Seguis-lhes os traços luminosos. Estais em bom caminho...
Inata sensibilidade às belezas morais havia, necessariamente, de vos fazer um verdadeiro e puro amante da assistência social. Capítulo sobremodo difícil de ser desenvolvido assim em público... As omissões voluntárias têm de ser inúmeras, – cuidado, aliás, de mera formalidade, pois que toda a gente as apontaria e por si mesma poderia completar as lacunas do capítulo.
É lícito, entretanto, aludir francamente aos hospitais de Campos do Jordão, cuja existência a vossa generosidade e, com ela, os vossos esforços e desvelos tornaram possível. Pode-se também citar em público a obra imensa de Santo Ângelo – um leprosário totalmente isento do que poderia fazer lembrar aos seus hóspedes e aos seus visitantes o triste destino daquele recolhimento de lázaros que, mais do que um sanatório, é uma verdadeira cidade, onde os enfermos, de quem toda a gente foge, vivem, como nós outros, na liberdade e nas distrações de uma comunidade, parecidas com as da humanidade sã.
Informado melhor do que ninguém, pela sua quotidiana missão espiritual, da vossa atividade filantrópica – habitual na esmola discreta, mas às vezes denunciando-se em cometimentos públicos do gênero de Santo Ângelo, – um grande pastor de almas não pôde, certa vez, conter o seu espanto admirativo, exprimindo-o nesta exclamação, tão significativa na sua simplicidade: “Este José Carlos, que homem! Em seus Jazeres, constrói uma cidade!” manifestava-se assim o Arcebispo de São Paulo, esse amado Dom Duarte Leopoldo, cuja alma há pouco voou para o Céu.
Mas, se nos hospitais de Campos do Jordão e na cidade sanitária de Santo Ângelo concorrestes decisivamente para o amparo ao corpo, doutra parte, amparastes, comovedoramente, o espírito na restauração, que vos propusestes realizar, e realizastes, da biblioteca da Faculdade de Direito. Verdadeiro amor aos livros! Ao antigo aluno compungia grande piedade por aqueles quarenta mil volumes, cuja maior parte o tempo e o descaso ameaçavam para sempre sacrificar. E, assim, lá se iria, entre outras preciosidades, a mais bela coleção de Direito Canônico reunida na América. Felizmente, porém, nada se perdeu, graças ao magnânimo salvador daquele opulento manancial de pensamento impresso e manuscrito.
Limpeza, reencadernação; catalogação, enfim a longa e custosa obra de restituir, aos olhos ávidos de se instruírem, muitos milhares de livros – eis o que tivestes a iniciativa e a abnegação de fazer ali executar.
Guarda-se ainda hoje, vinte séculos depois, o nome do destruidor da biblioteca de Alexandria; mais lógico e justo será que, no Brasil, se venha a relembrar perpetuamente o do restaurador da biblioteca de São Paulo. Para honra desta Academia, ele é um dos seus membros.
A cidade de São Paulo evocaria ainda muitas outras formosas ações do vosso magnânimo coração. Entre tantas, uma, porém, há mais formosa ainda, mais expressiva da vossa abnegação pública. Não hesito em a comentar neste trecho em que me ocupo da benemerência, em vez de a associar aos vossos atos políticos.
Não o cálculo partidário, mas o ímpeto da bondade vos lançou à empresa prodigiosa de preservar de um ataque furioso a vossa cidade natal nos dias negros de 1924.
Providenciastes incansavelmente para abastecer, até com as contribuições do vosso próprio bolso, uma população sitiada; improvisastes meios de transporte; energicamente refreastes os ímpetos dos exaltados; parlamentastes com os dois campos, na idéia fixa de preservar a cidade; enfim, num desvelo que desafiava os imperativos da resistência corporal e os riscos da morte, destes uma prolongada e soberba prova de patriotismo e espírito de sacrifício.
A vossa robusta fibra de homem público pôde então vencer o perigo, a fadiga e as intrigas tecidas para despertar uma ambição que soube resistir às tentações. O provento pessoal que tivestes de tanta abnegação foi terdes de abandonar São Paulo e ali só poderdes voltar três anos mais tarde. O vosso desvelo foi mal interpretado, mal compreendida a vossa atividade.
A paixão nunca permite ver claro. Viu-o, porém, um homem do estofo moral e intelectual do Ministro Firmino Whitaker, a quem tive a honra de suceder em sua gloriosa cadeira do Supremo Tribunal Federal, e que, depondo como testemunha no processo, no processo em que éreis réu – às vezes é uma honra ser réu – assim se exprimiu:
O que sei a respeito do Dr. José Carlos de Macedo Soares, presidente da Associação Comercial e de quem faço conceito muito elevado, é que durante a revolta de julho prestou serviços relevantes a esta cidade. Para mim, ele não foi um revoltoso; foi um benemérito!
No processo instaurado contra os implicados no movimento sedicioso, em cujo rol fostes incluído, proferiu sentença o Juiz Federal, de toda a gente respeitado e admirado, Sr. Washington de Oliveira, recentemente elevado, em felicíssimo decreto governamental, à nobre curul do nosso Supremo Colégio Judiciário.
Testemunha ocular dos fatos sobre que sentenciou, nada mais significativo do que um tal magistrado assim se pronunciar sobre esse réu:
Seus únicos objetivos, segundo a prova dos autos, foram os de acautelar do melhor modo possível os altos interesses das classes conservadoras, como lhe cumpria, na qualidade de presidente da Associação Comercial de São Paulo, a qual nele depositou sua máxima confiança, foi solidária com todos os seus atos, que aprovou em sessão solene, e ainda depois de sua prisão o reelegeu presidente; e os de socorrer a inerme população da capital, levado por impulsos bons de seu coração, educado na prática da piedade cristã.
E o notável magistrado prossegue:
Os próprios atos apontados na promoção do Dr. Procurador Criminal como característica de auxílio aos rebeldes revelam antes essa feição de seus sentimentos do que uma intenção criminosa. Esforçava-se por obter a terminação da luta fratricida, o que é uma aspiração de todos os brasileiros, sem praticar ato algum de insubordinação, desrespeitoso, ou violento, contra as autoridades constituídas, a que assegurou seu apoio.
Sentença absolutória essa que é uma homenagem definitiva – pelos seus termos e pela assinatura a eles sotoposta.
Três anos após os terríveis acontecimentos, São Paulo vos fazia uma acolhida festiva. Entretanto, conserváveis o mesmo sorriso triste do dia em que tivestes de vos exilar da cidade natal – o sorriso compreensivo dos que serenamente julgam esta podre humanidade, que tanta vez se transvia, mas acaba por fazer justiça, às vezes –, ai das vítimas! – bem tardia.
Vós esperastes três anos. A consciência tranqüila com que aguardáveis a reabilitação fazia-vos sorrir tristemente quando a recebestes unânime e completa. “A humana gente é assim, aceitemo-la assim”, dizíeis certamente a vós mesmo. E estais pronto a recomeçar o sacrifício, se for necessário – quod Deus avertat.
A provação de 1924 vós a devestes não somente à grandeza do vosso coração e às injunções de um patriotismo viril, mas também à vossa competência em assuntos econômicos, financeiros e sociais.
Explico-me. Sem esse acabado preparo técnico, cimentado em anos de leitura sistematizada e de experiência dos negócios, não vos teriam chamado à presidência da Associação Comercial, posição de onde vos sentistes no dever de agir como agistes, para bem de uma cidade agoniada por transe que tinha tanto de horrível como de inesperado.
Volumosa e variada é a vossa produção escrita e falada – os discursos e conferências, na sua quase totalidade, felizmente, fixados em impressos e de subido valor. Sois um escritor e um orador como se querem para assuntos sérios: sensato, ordenado, de alto descortino, perfeito senhor do vernáculo, versando os problemas nacionais e internacionais com a maior segurança. Tendes ademais um atributo que nem sempre adorna a quem fala ou escreve – conheceis as questões de que vos ocupais...
A esses títulos e com essas credenciais, sois aqui um digno e brilhante sucessor de Victor Viana, erudito que infatigavelmente lia e meditava e, quanto mais refletia, mais sentia necessidade de continuar a ler, para melhor expor e transmitir os seus conhecimentos, nesse quase apostolado de sociologia e política de princípios, que exerceu, trinta anos, pelas colunas do Jornal do Commercio. Na tradicional linha de austeridade dessa folha, mais que centenária, a qual, por assim dizer, se tornou uma voz tutelar do nosso país, achou o vosso admirável antecessor, como tão bem dizeis, o habitat propício à sua profunda inteligência e à sua inabalável fé nos destinos do Brasil.
Possuís o saber, a experiência e a reflexão do estudioso apaixonado pelas ciências políticas e econômicas, em cujo íntimo trato vos tornastes uma personalidade apta para a vida pública e sempre tão a gosto nas eminentes situações a que já fostes chamado – uma extensa e variada folha de serviços à Nação, na qual se marcam em fulgurante destaque a chefia da delegação brasileira à Conferência Internacional do Desarmamento em Genebra, a da representação brasileira na Conferência Pan-Americana de Buenos Aires e a exímia e notável gestão dos Ministérios das Relações Exteriores e da Justiça e Negócios Interiores.
Só porque essas situações episódicas da vossa vida pública foram sobremaneira elevadas é que se podem chamar menores tantas outras que ocupastes em São Paulo e na capital do país. Ainda agora se desdobra à vossa competência técnica um amplo campo de atividade na presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estais ali (se me é permitida a vulgaridade da expressão) como o peixe n’água.
Na vossa abundante produção econômico-financeira os entendidos acham sempre muito que aprender e meditar. Quanto a mim, nuli-técnico, dir-vos-ei que especialmente me impressionou o estudo sobre Política e Finanças da República.
O vosso agudo olhar de perito estendeu-se sobre os sucessivos governos nacionais até 1930, e dessa larga inspeção resultou uma suculenta síntese: “Na história das crises financeiras da República (dizeis) um fato se impõe imediatamente à atenção do observador: as crises financeiras do governo federal têm sido sempre de origem política e são, em geral, agravadas e envenenadas por acontecimentos de natureza também política.”
É uma verificação a que chega a fria e imparcial pesquisa de um técnico. Mas, não fosse conhecida a vossa bondosa tolerância, dir-se-ia o trecho propositadamente escrito para reavivar remorsos nos sobreviventes responsáveis pelas perturbações geradoras de tais crises.
Mais grave ainda: o moderado e cauteloso autor da monografia sobre Política e Finanças da República encerra um dos seus capítulos com este fecho ao mesmo tempo tranqüilizador e alarmante: “Tal é o poder recuperador das forças produtivas do Brasil sobre o erro de seus governos que um programa clássico de administração moderadamente abstencionista se tem mostrado o melhor e o mais útil na prática do regime republicano. O nosso destino político, porém, sofre a fatalidade da florescência dos planos de governo, que constituem, não raro, o único entrave sério à prosperidade e grandeza do Brasil.”
Com o devido respeito aos nossos ilustres estadistas, devo tomar nota dessa conclusão do competentíssimo e habitualmente discreto mestre Macedo Soares, “nota” apenas, pois que a réplica, acaso presumível, aos técnicos pertence, não a mim, Senhor, que sou o que sabeis – cego, sem poder ler no pontifical das finanças em que se emaranha a excelsa sabedoria dos financistas.
Contudo, eu não quereria estar na vossa pele. Fostes mexer numa colméia em que são inflamados os zangãos. Bem conheço a sensibilidade desses sábios lunares, intransigentes, e que, curvados, vivem a ler hieróglifos nas pedras misteriosas das cifras e dos cifrões, gente que nunca dá o braço a torcer, mas boa gente, que, bem sabeis, salvou as finanças do mundo inteiro, deixando-as nesse belo estado em que se vê por aí afora, em todo o planeta...
Cuidado, Sr. Macedo Soares, cuidado!
Pagam caro os homens públicos de todas as terras. Aqui mesmo, nesta bem amada cidade maravilhosa, numa opereta de companhia estrangeira, rindo a platéia gostosamente, já se ouviu dizer com jocosidade – “que um ministro que se diverte é mais útil ao seu país do que um ministro que trabalha”.
Revivendo essa burlesca tirada, declino desde já de qualquer responsabilidade se algum futuro ministro alegre vier a justificar-se assim da pouca atividade nos negócios da sua pasta.
O Sr. Macedo Soares, cativo dos seus estudos e do seu labor incessante, pouco se diverte; não obstante..., muito trabalhou e fez muito de útil para a nação.
De indústria, e muito de indústria, reservei para o fim desta saudação a vossa profícua e fertilíssima atividade no Itamarati, pedra de toque do valor e da grandeza dos homens públicos da nossa terra. Aquele palácio seria um posto propício à expansão tanto do jurista, sempre inclinado às soluções humanas do Direito, quanto do sociólogo, bem ao corrente da situação do mundo moderno.
Na direção dos negócios estrangeiros, começastes por uma reorganização interna, que redobraria a eficiência dos seus tradicionais serviços, e terminastes por um belo, ruidoso e comovedor triunfo na política internacional. Triunfo pessoal, triunfo nacional, triunfo americano. Valeu-vos o cognome de “Chanceler da Paz”. Não conheço mais recomendável título.
Duque da paz! Como se regozijava Caxias quando a nação inteira lhe recordava mais esse adorno para o seu peito glorioso!
Existe neste continente uma região – o Chaco – de nome breve, mas que ficará marcado na história por um longo martirológio. A principio, túmulo de afoitos conquistadores, dispostos a furar por ali a rota para o Alto Peru – a encantada região da prata, cuja miragem desvairava as cabeças obcecadas pela ambição da riqueza ou perturbadas pelas fantasias do espírito de aventura.
Mais tarde mudou o objeto da cobiça: em vez de prata, madeiras preciosas e o preciosíssimo petróleo. E os incidentes entre vizinhos foram se agravando até se tornarem caso de honra nacional, considerado solúvel somente pela guerra.
Rompeu o conflito armado entre Bolívia e Paraguai, exércitos lutaram no Chaco, e só assim havia de ser percorrida em todos os sentidos a zona de lendas que vai desde os rios Paraguai e Pilcomaio até aos primeiros contrafortes andinos, lá nos confins da Bolívia.
Sobre uma área de 300.000 quilômetros quadrados reinava até antes das hostilidades o mistério das paragens que os imaginosos sonham paraísos e os pobres exploradores verificam serem infernos.
Mas, para os que lutavam ali, o Chaco já não encerra segredo algum, e, certo, brevemente, publicações oficiais divulgarão o que os estados-maiores verificaram, na mais sinistra das oportunidades de aprender topografia, geologia, etnologia, zoologia e climatologia. Por tal preço, melhor fora, sem dúvida, continuar a humanidade na ignorância de quase tudo o que concerne ao ontem tenebroso Chaco – amanhã, campo de risonha atividade pacifista.
Bismarck disse, um dia, displicentemente – ele, responsável por duas ou três guerras –, que estas servem, ao menos, para ensinar a geografia. É verdade: confesso-vos que só vim a saber algo do Chaco mercê da terrível luta que o ensangüentou.
Inflamados de um patriotismo quase supersticioso, impelidos por uma bravura jamais excedida em qualquer tempo, bolivianos e paraguaios trucidavam-se implacavelmente, em luta de um hemoísmo épico, mas a que a consangüinidade racial dos combatentes dava insuportável cunho fratricida.
Detalhe expressivo: os jornais brasileiros, naturalmente, no quotidiano relato dos acontecimentos, não lhe chamavam a Guerra, mas a Tragédia do Chaco. Assim a viram todos os outros povos do continente americano, que como tal a deploravam e ansiavam por sustar a continuação do terrível conflito em família.
A luta do Chaco, simultânea e correlatamente com o horror que produzia, ia gerando sugestões, tentativas de acordo, mediações, intervenções, – enfim, as múltiplas formas de iniciativas de fito humanitário tendentes a pôr um paradeiro ao tremendo morticínio que sangrava duas nobres nações nas suas mais vitais artérias.
Já dezessete vezes falhara o solene apelo ao ensarilhamento das armas, tentado improficuamente até pela Sociedade das Nações.
Ao Brasil coube a honra de promover o décimo oitavo grande esforço no mesmo sentido em que haviam dolorosamente falhado os anteriores, assinalado cada fracasso por um novo desalento e um novo recrudescimento da carnificina.
Cem mil vidas, quase todas em flor, já a luta ceifara nas paragens chaquenhas.
Na empresa pacificadora a que o Ministro Macedo Soares se iria lançar com a sua serena resolução, que é o fundamento do seu caráter, suave nas maneiras e firme nos desígnios, o Itamarati propunha orientação e processos seus. Aceita pelos governos dos Estados Unidos, Argentina, Chile, Peru e Uruguai a fórmula brasileira, caminhou-se rapidamente para a cessação do fogo.
O Ministro das Relações Exteriores do Brasil propôs inicialmente o encontro em Buenos Aires, onde já se achava o Chanceler Macedo Soares, dos seus colegas beligerantes. O Ministro das Relações Don Tomás Manuel Elio trouxe do presidente Don José Luiz Tejada Sarzano uma carta autógrafa para o Presidente Getúlio Vargas, na qual transmitia, em nome da Bolívia, agradecimentos por la parte muy noble y muy activa que el ilustre Gobierno del Brasil ha tomado en la iniciación de las gestones de paz.
Desde a primeira reunião dos mediadores, a 27 de maio, na residência da Senhora de Olmos, que hospedava o Chanceler brasileiro, até ao dia 13 de junho, quando se assinaram os protocolos de paz, manteve-se evidente a ação pertinaz, simultaneamente prudente e enérgica do negociador brasileiro.
Foi então que o Embaixador Gibson, chefe da delegação dos Estados Unidos, publicamente declarou, na sala de trabalhos da Conferência Internacional, que somente no derradeiro dia das negociações o Ministro Macedo Soares havia duas vezes salvo a meditação de um malogro certo.
Sinto especial satisfação em ser agora o divulgador de um episódio, ainda inédito, ocorrido naqueles dias de emoção, o qual bem caracteriza o tipo de ação do Itamarati e o valor da presença do seu ilustre chefe.
Alcançado afinal em Buenos Aires o acordo procurado decidiu-se que, imediatamente após a assinatura dos Protocolos, um titular de cada país mediador partiria para a frente de batalha, a fim de se proceder à separação dos exércitos beligerantes, tornando assim possível a cessação do fogo em toda linha.
Os militares que partiriam no dia seguinte pediam notas e as indispensáveis instruções. Uma noite febril a de 11 de junho. Os delegados estrangeiros foram descansar, mas os brasileiros – notadamente o chefe Macedo Soares, o depois Ministro Acir Paes, os cônsules Carlos Carvalho e Sousa e Odette Carvalho e Souza – permaneceram, trabalhando sem alívio. Na manhã seguinte, já às 10 horas, mediadores e oficiais militares estavam a postos, todos com o desejo de que fosse apagado o pavoroso incêndio, ocasionais bombeiros que eram de um gênero especial, o mais nobre e imaginável – a salvação urgente de vidas humanas. Não havia um instante a perder.
Eis que o general argentino, perfilado, pede instruções escritas, com que deviam partir ele e os seus companheiros da missão humanitária. Célere, responde Saavedra Lamas – que as instruções eram os próprios textos dos Protocolos. O general não se conforma. Respeitoso, insiste: – que era indispensável uma precisa relação de esclarecimentos, explicações e ordens – na tecnologia diplomática, instruções orientadoras da missão militar. Treplica o chanceler argentino que tais instruções não haviam sido redigidas.
– Sem elas não poderemos partir –, diz, adiantando-se, o general ainda desta vez, reverente, mas incisivo, depois de lançar um olhar consultador aos camaradas de comissão.
Bem avaliará a ansiedade em que ficaram os mediadores responsáveis quem considerar que o retardamento na execução da tarefa cometida aos militares seria o sacrifício de mais alguns milhares de paraguaios e bolivianos lá no Chaco sinistro, quando já combinada a cessação de fogo –, um sacrifício odiosamente vão e desnecessário.
Foi nesse inesquecível minuto, em que pairava no ambiente a insuportável visão da hecatombe inútil, foi nesse patético instante que o Ministro Macedo Soares tirou da pasta as instruções que uma noite de previdente e fecunda vigília havia felizmente preparado. Sua leitura acalmou subitamente os nervos tensos por aquela perspectiva atroz. Unânime aprovação recebeu o documento salvador de tantas vidas... e de uma situação vexatória e penosa para a Conferência.
Daí a pouco o delegado uruguaio perguntava ao Ministro Macedo Soares como, em tão curto prazo e após um dia e uma noite de tão afanosos trabalhos, conseguira a representação do Brasil discutir e redigir aquelas instruções.
– Métodos de trabalho do Itamarati – respondeu o Chanceler brasileiro, num suave meneio de costumeira modéstia.
Tão destacada fora em Buenos Aires a ação do Ministro Macedo Soares que o Presidente General Justo, como honra excepcional, quis que o regresso do Chanceler brasileiro se fizesse sob a gloriosa bandeira da Nação que tão fidalgamente o hospedara durante as negociações da Comissão mediadora.
E foi de bordo do cruzador argentino 25 de Maio que o Ministro Macedo Soares desembarcou aqui, no Rio de Janeiro, entre aclamações populares, expressivas de que também cá, de longe, fora bem seguida e julgada a ação de quem partira chefe da diplomacia brasileira e voltava “Chanceler da Paz”, como o sagrou o reconhecimento nacional.
Sim, a obra da Comissão mediadora plantou o marco decisivo da pacificação do Chaco, obtida num ambiente de confraternização americana – e, mais particularmente, argentino brasileira –, exaltada ali pela presença atraente e popular do Presidente Getúlio Vargas, que fora, como tendes com muito acerto e justiça declarado em expansões públicas –, o mentor máximo, o condutor devotado e constante da nossa política internacional na atualidade e, pois, o daquela vitória do Brasil no continente.
O fato de haverem fracassado as dezessete anteriores intervenções no mesmo sentido veio dar ao pleno êxito da décima oitava um relevo ofuscante. Esta fez cessar o fogo, que durava havia mais de dois anos. Escusam interpretações quando se levanta um ato assim esmagador.
Sem dúvida, os Protocolos de junho não resolviam toda a situação, mas obviariam ao mais urgente, ao capital –, pois que, no fim de contas, quando se quer acabar uma guerra, o essencial é começar conseguindo que ela não continue a matar gente e destruir o país.
Ficaram para resolver, é verdade, graves questões de soberania e direito; mas caberia ao Brasil contribuir poderosamente para dirimir estas também, graças ao apostolar espírito americanista de um grande e brilhante chefe da diplomacia brasileira, o Ministro Oswaldo Aranha, e à consagrada habilidade do Embaixador Rodrigues Alves.
Eis aí, senhores, um capítulo da história diplomática brasileira, que, afinal, pouco perde por ficar assim mal exposto, – já que toda a sua fulgurante beleza emana dos próprios acontecimentos. Estes, caro confrade, ainda uma vez o digo, vos consagraram Chanceler da Paz.
Sois um grande brasileiro. Pertenceis, pois, legitimamente ao nosso grêmio. A Academia é a mansão da serenidade; há mesmo quem diga – da imortalidade. Sê-lo-á, talvez; mas, por cautela, fostes, de antemão, garantindo a vossa, lá por fora..., pelo Brasil inteiro, e até no seio de outras nações civilizadas.