AMLETO FERREIRA
Salvador da Bahia, 17 de março de 1839.
Choveu a semana toda e amanheceu um dia tão feio quanto os precedentes. Às cinco da manhã, antes de passar a meia hora costumeira trancado no gabinete diante de uma bacia esmaltada e de um gomil cheio de água alfazemada, areando os dentes e lavando a cabeça, que havia atravessado a noite untada por uma camada espessa de caldo de babosa embaixo da touca para amaciar o cabelo, Amleto Ferreira entreabriu a janela e inspecionou seu jardim com desagrado. Quase sempre escuro sob a fronde emaranhada das árvores, que cobria uma conglomeração cerrada de folhas e ramagens de plantas baixas, o jardim estava ainda mais penumbroso, uma floresta gotejante, grandes bagos de chuva esparrinhando a água dos tanquinhos, onde até mesmo os uapés, as ervas-de-santa-luzia, as damas-do-lago, as jaçanãs, as jipiocas retorcidas como novelos de sucuris e as outras vegetações da água estavam excessivamente molhadas, afogadas na molúria que tornava tudo úmido, escorregadio e lamacento. O martelo contínuo de gotas gordas pingadas das favas dos ingazeiros, sobre as folhas ressonantes dos crótons, cocós e taiobas, reiterava uma espécie de desesperança monótona a um dia que devia ser de festa, e somente as maravilhas, os musgos, os limos, as brilhantinas e demais seres que medram na obscuridade encharcada é que não pareciam mangrados e tristes como as outras plantas. Mundo madefato e sem brilho, em que o colorido das folhagens lembrava adornos de funeral, mundo que trouxe a Amleto um ressentimento redobrado. Decidiu sair para ver o que prometia o tempo, embora não acreditasse que fosse melhorar. Enrolou-se num roupão, agasalhou o pescoço com uma manta de crochê, pôs um barrete na cabeça para não resfriar-se, abriu a porta dos fundos do gabinete, desceu os dois batentes procurando não escorregar, pisou com gosto na alfombra de grama e plantinhas rasteiras, sentiu o pé afundar-se na terra empapada. Não chovia mais, apenas os pingos das árvores continuavam a despencar, às vezes como rajadas de chuva, quando uma lufada agitava as copas. Amleto teve um arrepio de frio, temeu constipar-se, mas assim mesmo resolveu ir até o portão de ferro que dava para o Rosário, para olhar melhor o horizonte e avaliar o clima. Gostava de seu jardim, tinha uma satisfação inexplicável em passar horas sentado em frente às plantas, de olhos fixos nelas como se esperasse acompanhá-las crescendo e florando. E gostava também que fosse sombreado, pois o sol na pele lhe era uma agressão pessoal, caso pensado contra ele, para escurecer-lhe a cor sem piedade como já acontecera, virando-o mais uma vez num mulato. Tinha carinho pelas plantas, andou pela alameda de castanheiras prestando atenção a todos os troncos, levantando a vista para as flores-de-jesus tão leves como se apenas pousadas nas árvores mais ramudas, frágeis como passarinhos de papel, os fetos e samambaias, os jarrões de alvenaria enlaçados por trepadeiras, as estátuas das estações - e Verão, tão estranho, uma forma gregamente delicada, busto suave, ancas onduladas, feição nobre e mansa, fincada entre as raízes elevadas do grande pé de acácia, seria o Verão uma mulher e a Primavera um éfebo maneiroso, como agora se via, muito marmóreo contra o verdume salpicado de encarnado das bromélias? -, as colunas do talhe romano decepadas obliquamente ao meio como em velhos templos das gravuras antigas, a salsugem da água dos tanques, cadáveres de folhas, insetos e flores fanadas, se arrumando suavemente pelas bordas como enfeite, uma cigarra disparando um zizio repentino. Parou para olhar as trepadeiras grudadas na acafelagem rugosa dos muros, alisou algumas folhas, experimentou o molejo das gavinhas com as pontas dos dedos, chegou finalmente ao portão. Para um lado e para o outro, as nuvens continuavam fechadas e baixas, o vento cessara, o ar se tornara opressivo. Amleto arrepiou-se outra vez, fez meia-volta para tornar a trancar-se no gabinete.
Teve portanto uma surpresa, ao sair à sala e ver pelas janelas abertas para a varanda principal que o sol havia despontado e uma claridade cortante cintilava sobre as plantas molhadas. Correu à varanda, pôs as mãos na balaustrada, somente uma moldura evanescente de nuvens permanecia em torno do céu, esmaecido como se também lavado pelas chuvas. Sorriu, bateu na balaustrada com satisfação. Estivera sorumbático lá dentro, entristecido pelas injustiças que a vida lhe aprontava. O batizado de Patrício Macário Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, seu sétimo filho, quarto vivo, teria pelo menos um belo dia a servir-lhe de pano de fundo. E também uma bela festa - já podia aspirar o cheiro dos biscoitos assando nos fornos, sabia que se misturavam massas, que se batia o alfitete, que se cozinhava toda espécie de comida. Isto, assim como esta bela casa e todo o seu conforto, não lhe podiam tirar, não podiam dizer que não era direito seu. Pensando sobre como ganhara tanto dinheiro, já nem admitia para si mesmo, a não ser vagamente e a cada dia com menos freqüência, que desviara os recursos do barão e se apropriara de tudo em que pudera pôr as mãos, em todo tipo de tranquibérnia possível. Não, não fora bem assim, precisava acabar com a mania de ser excessivamente severo consigo mesmo, chegava a parecer uma propensão ao martírio. E o tino comercial empregado a serviço do barão, as dificuldades sem fim, as soluções heróicas encontradas para problemas insuperáveis? E o sangue, isto mesmo, o sangue e o suor dados ao barão? E a situação tranqüila da baronesa, hoje empobrecida, é verdade, mas vivendo com toda a dignidade, ainda na mesma casa do Bângala, assistida em todas as suas necessidades e as de seus filhos? Não tinha mais tantos negros, é também verdade, apenas três negras e dois negros, pois a dureza dos tempos atuais e os azares que por todos os lados perseguiram os negócios do barão aconselharam a que a escravatura fosse reduzida ao mínimo indispensável. Que queriam? A pesca da baleia piorava a cada ano, era cada vez mais coisa do passado que o progresso soterraria, e a venda da Armação do Bom Jesus fora um excelente negócio, apesar do preço aparentemente baixo. Não contara à baronesa haver sido ele mesmo, oculto numa associação com dois comerciantes franceses, quem comprara a Armação e agora efetivamente a venderia com bom lucro. Afinal, fora uma venda como outra qualquer e de que maneira iriam enfrentar as despesas que se avultavam, com a crise da lavoura e do comércio flagelando todos os negócios do berço? Alguns amigos da baronesa haviam mesmo concordado em que tinha sido bom negócio, como acontecera com o Bacharel Noêmio Pontes de Oliveira, hoje prestando serviços de advocacia a Amleto, depois de, com a estreita colaboração deste, realizar o inventário do barão - inventário, por sinal, decepcionante, com tantas dúvidas, ônus e gravames que, não fora a dedicação de Amleto, trabalhando à frente de tudo até mesmo sem remuneração durante muitos meses, a baronesa e seus filhos talvez tivessem sorte muito triste. Ela herdara do pai, realmente, mas os negócios dele já de muito vinham sendo prejudicados não só pela doença como pelos grupos de mata-marotos, pelos radicais que chegavam mesmo a atacar corporalmente os portugueses e a depredar-lhes as propriedades. Amleto, num artifício jurídico que laboriosamente engendrou junto com o Doutor Noêmio para salvaguardar os interesses da baronesa contra a ganância dos herdeiros portugueses do pai dela, conseguiu vender com astúcia a maior parte do patrimônio antes de terceiros lhe deitarem as mãos - a preços certamente não tão compensadores, mas as circunstâncias da transação demandavam expediência, depois do fato é que tudo fica fácil. Para não falar nas despesas e negociações delicadíssimas, havidas para obter a compreensão e apoio dos ouvidores e fiscais da Fazenda, da Junta do Comércio e do Poder Judiciário, gente de respeito e trato que não se podia abordar com leviandade. Agora, o Empório e Trapiche, bem como os outros negócios, estavam na posse de terceiros, pois Amleto, depois de comprá-los com Noêmio, através de seu cunhado Emídio Reis, achou mais prudente passá-los adiante do que administrá-los, ainda que por meio de testas-de-ferro. As casas deixadas pelo velho continuavam a render, bem como outras propriedades, mas tudo coisa minguada, uns vinténs que ele usava para pagar as despesas da baronesa, muitas vezes, o Céu é testemunha, tirando algo de seu próprio bolso para inteirar o que não era bastante. Os engenhos, por seu turno, não iam bem, os problemas do açúcar estavam cada vez mais graves, salvava-se apenas a escassa produção de aguardente, mal suficiente para custear o trabalho, no aguardo de melhores dias.
- Pois é - pensou Amleto, deixando a varanda para ir tomar café -, a verdade é que estou em paz com minha consciência, nunca fiz mal a ninguém, sou um homem prestante.
E por isso mesmo não deixava de revoltar-se por não poder arriscar-se a chamar a atenção dos maledicentes e invejosos, capazes até de encher os ouvidos da baronesa de falsas insinuações e mesmo calúnias, com gastos à altura de sua posição na sociedade. Não importava que todos soubessem - e todos sabiam, pois havia sido ele mesmo quem contara, embora não fosse verdade, mas disto eles não sabiam - que Teolina herdara uma fortuna de seus tios-avós portugueses de Trás-os-Montes. Assim mesmo se falava, se comentava. Que caminhos ásperos, quantos obstáculos em cima de obstáculos, quantos escolhos insuspeitados! Cuidava-se de uma coisa, aparecia imediatamente outra, resolvia-se um problema, nascia outro logo a seguir. Quanto tempo perdido com os latinórios, as citações e as palavras decoradas, dura senda que não levava a lugar nenhum, a não ser a pobreza agravada pela inveja dos ignorantes, pobres ou ricos. Agora que achara o rumo certo, que cavara com as unhas sua fortuna, ainda tinha de enfrentar o problema da aparência racial, a aceitação das pessoas gradas, as restrições impostas pelos mesquinhos - a ponto de até a festa do batizado de Patrício Macário, que podia ser suntuosa como poucas na Bahia, ter virado, por cautela, praticamente uma festa íntima, para os parentes e amigos mais chegados. E o pior era que não podia evitar que lhe bafejasse a sorte, lhe desse a mão a Providência e o recompensasse o destino pela capacidade de trabalho e tirocínio. Comprara terras no sertão, baratas, quase de graça por causa da seca de 35, agora se falava que o gado por lá faria ricaços da noite para o dia. Plantara fumo na fazenda que adquirira através de Emídio, em São Félix, e já os lucros dos negócios feitos com os alemães se avolumavam. Cortava madeiras de lei nas terras abandonadas do barão e não tinha mãos a medir para as encomendas. Previra que as novas construções, que todos os dias começavam na cidade, iam aumentar em muito a demanda de cal e assim, na contracosta da Ponta das Baleias, demarcara os grandes depósitos de calcário debaixo do mar raso e agora, dia e noite, os negros, manejando pás com a água lhes chegando aos queixos, abarrotavam de cascas de ostras a frota de saveiros que as levaria a caieira de Porto Santo. E até mesmo a cal refinada encontrava serventia a mais da conta, inclusive nas plantações de coco, como a sua mesmo, no Conde, onde em breve estaria fabricando óleo, sabão e gordura sólida, além de vender a fibra para os importadores ingleses.
- Ah! - exclamou com enfado. - Isto um dia vai ser resolvido, isto vai ter que ser resolvido, a vida não pode somente de sacrifícios!
Pensou gulosamente no primeiro almoço. Tivera dificuldade em acostumar as negras da cozinha e a própria Teolina a essa refeição, que não impunha a ninguém mas exigia para si, e revelava freqüente desgosto por não ser imitado pela mulher e pelos filhos, pelo menos a mais velha, Carlota Borroméia Martinha Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, que educava como uma inglesa, mas que não aceitava seu desjejum de rins grelhados, arenques defumados, mingau com passas, pãezinhos fofos, chá, e torrada com geléia. Havia saído tão branquinha, tão alemoada, com sua tez diáfana, seus cabelos claros e finos, seu porte esbelto e frágil como devia ser o de uma jovem senhora da Corte de São Tiago, era tão dócil de maneiras, mas se rebelava contra aquilo, tinha náuseas, ia escondido pedir broas, cuscuz, mingau de tapioca, bolinhos de carimã e café com leite às negras. Um dia, porém, haveria de aprender, afinal não era mentira, tratava-se de uma inglesa de origem, uma Dutton. Recordou com prazer o dia em que o padre-adjutor do Vigário Geral o procurou no escritório, enfiando com nervosismo a mão pelas dobras da sotaina para sacar a certidão de batismo falsa, tão meandrosamente obtida.
- Aqui a tem Vossa Excelência! - dissera o padreco, um desses velhos que não conseguem rir mesmo quando têm vontade, fazendo apenas uma caretinha débil e fibrilante, os lábios tremelicando como se temessem afastar-se um do outro durante mais que um segundo.
- Reverendíssimo! - respondera Amleto, que, poucos minutos antes, tinha relido, no topo da lista das providências: "Certidão Dutton". Tomou o papel, chegou a fazer-lhe um pequeno rasgão numa das margens, tal a avidez com que o desenrolou, leu em voz alta. - Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton! Ferreira-Dutton! Não acho Vossa Reverendíssima que soa bem, soa muitíssimo bem?
O padre não respondeu, tentou sorrir outra vez, bateu delicadamente a bainha da manga direita contra os cantos da boca, para enxugar os filetinhos de baba que não paravam de lhe correr das comissuras dos lábios. Mas percebeu que o momento requeria um comentário menos desentusiasmado.
- Sim, sim, tem um belo som. Ferreira-Dupom!
- Não, não, Ferreira-Dutton. Dutton, Dutton, é um nome inglês, não sabe? Do meu pai, John Dutton, John Malcolm Dutton.
- Ah, sim, queira Vossa Excelência desculpar-me, julguei tratar-se de um apelido francês.
- Não, não, inglês. Meu pai era inglês, acho até que parente distante de uns ingleses que ainda têm negócios aqui. E minha mãe era Ferreira, dos Ferreiras de Viana do Castello.
- De Viana do Castello?
- Sim, sim. Vossa Reverendíssima também é de lá?
- Não, não, sou ribatejano.
- Ribatejano, hem? Fica distante, fica bem distante.
- Pois. Pois, se bem percebo, Vossa Excelência, antes desta correção, chamava-se tão-somente Amleto Ferreira.
- Sim, pois, vicissitudes, coisas das questões religiosas tempo de Dão João, incúria talvez dos padrinhos, as guerras napoleônicas... Eram tempos conturbados, estas coisas não eram de tão perfeita organização quanto o são hoje.
- Sim, pois.
- Mas a correção é necessária, de há muito que se faz necessária e, graças à compreensão de Vossa Reverendíssima e do Excelentíssimo Senhor Vigário... Vossa Reverendíssima compreende, em primeiro lugar era preciso restaurar a verdade dos fatos, a herança histórica de nossa família - afinal, nossa linhagem perde-se no tempo, tanto em Inglaterra como em Portugal -, que se espelha tão bem no nome. E, em segundo lugar, costumo emprestar grande significado ao nome, grande relevância. Não se deve escolher um nome ao capricho, ao acaso. Meu nome, por exemplo, é Amleto, escolhido por minha mãe em homenagem a meu pai; Henrique é pela velha tradição das casas reais de Inglaterra - Henrique, Jorge, Carlos, Guilherme, Eduardo e assim por diante -; Nobre porque este é sempre o terceiro apelido de nossa família portuguesa e, finalmente, Ferreira-Dutton, que é o nome correto da nova família, é resultado da união portuguesa.
- Sim, pois.
- No caso de meus filhos, que, graças também à compreensão que sempre mereci da Igreja, já pude batizar com seus verdadeiros nomes... - Releu a certidão, beijou-a. - Sim, meus filhos não têm nomes escolhidos ao deus-dará. Nomen est omen, não concorda Vossa Reverendíssima?
- Sim, pois, de certa maneira...
- Os primeiros nomes de meus filhos são os de dois santos: o do dia do nascimento e o do dia do batizado. É assim com Carlota Borroméia Martinha Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, que nasceu a 4 de novembro, portanto no dia de São Carlos Borromeu, e foi batizada no dia 11, dia de São Martinho. Assim como foram batizados segundo este critério o Clemente André, de 23 também de novembro, o Bonifácio Odulfo e os três anjinhos também, o nome Reis, que vem da minha mulher, da família Reis de Trás-os-Montes, chamados assim imemorialmente por terem sempre estado a serviço real.
- Pois. Muito justo, pois.
Amleto percebeu que o padre podia estar com pressa, tinha até mesmo deixado de sorrir aquele sorrisinho curto a cada anúncio de um novo nome. Sim, claro. Já tinha o envelope pronto, bastou tirá-lo da gaveta, onde tinha estado desde o dia anterior. Apalpou-o ao longo das bordas, entregou-o ao padre.
- Dá-me Vossa Excelência licença? - disse o padre, abrindo o envelope e começando a contar as notas sem esperar resposta.
- Sim, naturalmente. É um modesto óbolo para as obras paroquiais, um contributo de coração.
- Pois - disse o padre, terminando de contar o dinheiro. - Pois, se me concede vênia Vossa Excelência...
Sim, estava no cofre, muito bem trancada, aquela certidão, estava tudo, afinal, a correr muito bem. Sim, por que aborrecimentos? Certo que a vida apresenta percalços a todo passo, mas há também que esquecê-los, num dia como este. Não saiu o sol, não já devia estar tudo praticamente pronto, desde a pia batismal toda burnida, às flores pela casa, às toalhas de linho branco refulgindo, a festa em todo o ar? A esta hora, os rins grelhados sangravam em cima da chapa, a chaleira de ferro sibilava esplendidamente sobre as brasas, o mingau, frio como ele gostava, o esperava numa terrinazinha de porcelana fina, coalhado de passas descaroçadas uma a uma pelas negras. Entrou pela grande copa, a mesa estava posta, a mucama Luzia passou os olhos por tudo quando o viu, para verificar se havia alguma coisa errada.
- Hoje, quero o rim um pouco malpassado - disse ele, sentando-se depois de cheirar as rosas do vaso do centro da mesa.
- Nhô, sim - disse Luzia, e correu para dentro arrastando os pés.
Mordiscando um brioche, Amleto pensou que já chegava a bandeja com os rins, ao ouvir passos atrás de si, na direção da porta da cozinha. Virou-se em antecipação alegre, fechou uma carranca logo em seguida.
- Que é que estás a fazer aqui hoje? Logo hoje? Já não te disse para não vires aqui a não ser quando te chame? Que queres hoje, não tens tudo arranjado?
Uma mulher pequena, mulata escura, cabelos presos no cocuruto por dois pentes de osso, se deteve, fez menção de que ia voltar para a cozinha, terminou em pé diante dele, as mãos encolhidas no colo.
- Eu não vim atrapalhar - disse. - Podes ficar sossegado.
Amleto levantou-se, pareceu não conseguir conter a impaciência, cobriu os olhos com as mãos, ficou muito tempo assim.
- Dona Jesuína - falou, como se estivesse repetindo à força alguma coisa que o molestava muito. - Dona Jesuína, que quer a senhora, Dona Jesuína? Que mais quer que diga, que mais quer que fale, que mais quer que dê?
- Chamas-me de Dona Jesuína e estamos sós.
- Pois claro que te chamo Dona Jesuína, pois claro que tive de habituar-me a isto, pois claro!
- Mas disseste que só me chamarias assim quando nos visse ou ouvisse alguém.
- Está certo, está certo, disse-te isto. Mas que há de mais em que te chame respeitosamente de Dona Jesuína, pois que és Dona Jesuína, não te chamas Jesuína?
- Jesuína sou, mas também sou tua mãe.
Amleto estacou, revirou os olhos, levantou as mãos abertas, bateu os pés no soalho. Alguém havia esquecido disso? Que filho tão malnascido quanto este, ou mesmo os bem-nascidos, os muito bem-nascidos, que filho fazia pela mãe o que ele fazia? Tinha casa? Tinha. Tinha criadas? Tinha. Tinha comida farta, da melhor, da mais cara? Tinha. Tinha jardineiro para arrancar-lhe o capim dos canteiros, agora que não podia mais curvar-se? Tinha. Tinha tudo por que suspirava, por que sonhava, por que ansiava? Tinha. Não lhe bastava um bilhete - remeta pelo portador vinte meadas de linha, uma cesta de frutas, um quintal de verduras, dez libras de carne, dez libras de peixe, quatro galinhas gordas, o que lá fosse! - não lhe bastava mandar um bilhete, mandar um recado de boca, para que tudo lhe chegasse? Que queixa tinha, que coisas remoía, seria possível que nunca estivesse satisfeita? Se continuava com sua escola, era porque queria e, por isso mesmo, quanto não custava a ele comprar lousas para aqueles meninos miseráveis e imprestáveis, comprar mais comida que para um batalhão - então, então, então, a Senhora Dona Jesuína fazer ares de que era boa mãe filho mau? Vamos e venhamos, vamos nos enxergar!
Dona Jesuína pareceu arrepender-se de alguma coisa, talvez de tudo. O rosto já se pregueando para chorar, estendeu os braços na direção do filho, pediu entre soluços que a perdoasse, se fazia aquilo era por tanto amor que lhe tinha, por tanto orgulho e admiração que ele inspirava. Se tivesse sabido que seu filhinho, nascido em berço mais que humilde, mestiço e bastardo, chegaria àquelas alturas, um homem importantíssimo, teria estourado de felicidade antes de conseguir criá-lo. Não ficasse com raiva dela, eram fraquezas próprias de um coração de mãe - como poderia ela jamais esquecer o desvelo e a atenção que lhe votava o filho, a preocupação em que nada lhe faltasse? Não, não era ingrata, é que lhe doía tanto, embora compreendesse perfeitamente as razões, que não pudesse dizer a todos, como gostaria, que o comerciante e respeitado cidadão Amleto Ferreira era seu filho, seu próprio filho, por ela parido, amamentado, limpado, curado, sofrido e criado. Já lhe doía tanto que, ao saber do batizado de seu novo neto - como se chamava ele? -, não pôde resistir à vontade de vê-los, mesmo que, como os outros, fosse crescer sem saber que era neto dela, não tinha importância, queria somente vê-lo. Mas agora compreendia como havia sido uma imprudente metediça, por favor a perdoasse, não se aborrecesse, fora somente uma coisa impensada, um ato que não se repetiria nunca, ele podia ter certeza.
Amleto enterneceu-se, tremeu-lhe o queixo, andou para a mãe, tocou-lhe as mãos, quase a abraçou. Ah, senhora minha mãezinha, se pudesse abraçar-te e envolver-te em meus braços, era o que fazia agora! Ah, mãezinha, bem sabes quanto me dói também esta situação, pensas que não tenho sentimentos, que não choro à noite em pensar na minha mãezinha lá sozinha e eu sem poder nem sair à rua com ela! Se não fossem essas malditas negras tagarelas que aqui podem entrar a qualquer momento, ou algum dos meninos, que hoje é domingo e de nada se ocupam, se não fosse isso, cobrir-te-ia agora de beijos e afagos, bem sabes que o faria, adorada mãezinha! Mas não sabes, diz-me, diz-me, por caridade diz-me, não sabes que isto, esta horrível situação, é para o nosso próprio bem? Sabes nada, sempre parece que não sabes! Mas entendes, não entendes, mãezinha adorada? É para o nosso próprio bem, não sabes?
Sim, ela sabia e sabia também dos seus dele sofrimentos, pois lhe conhecia de sobra os bons sentimentos e não lhe ocorria um sequer defeito. Mas não poderia, talvez, assistir ao batizado, mesmo discretamente, à distância, sem se meter nas conversas, sem sair de seu lugar, apresentada talvez como uma ama-de-leite da infância dele, uma criada mais chegada, uma ama-seca ou governanta?
- Governanta? - exasperou-se Amleto, revirando os olhos para o forro. - Senhora Dona Jesuína, meus filhos têm uma governanta inglesa e uma preceptora alemã! Meu Deus do céu, que recheio há na cabeça da Senhora Dona Jesuína? Governanta, essa agora! Meus filhos com uma preta por governanta, não vês, não enxergas a realidade? O mundo não é tal qual o queremos, mas tal qual é!
- Desculpa-me lá, falei errado. Mas uma criada, uma ama-seca...
- Não, não, muito arriscado. Podem bispar semelhança entre nós, é possível que já alguém tenha ouvido um comentário ou outro e agora o venha a confirmar. Não, não, por que não deixas dessas idéias tontas e não vais à tua missa como sempre e depois não vais cuidar de tuas flores? Olha, mando-te umas mudas de cravo que me vieram de Portugal, mando-te uns livros, uns folhetins dos que tu gostas, fica isto esquecido. Então?
- Mas não vejo mal, como criada, como ama velha... Depois, quem ia ver parecença entre nós, tu tão branco, tão alvo, cabelo tão liso...
Amleto passou a mão sobre a cabeça.
- De fato - concordou. - Os cabelos lisos e meus traços, que saíram finos... Mas não, não, ainda acho que seria uma temeridade. Esquece tua idéia, anda, esquece.
- Já não tens o que argüir, bem sabes que a presença de uma ama velha no batizado é até coisa de ricos, coisa de família, de tradição, que agracia seus negros e criados.
Amleto fez uma pausa nos passos que continuava a dar ao longo da mesa.
- Bem, o que não faço por ti? Mas vê lá, hem, vê como te portas, és a ama que me criou e assim te portarás, não te perdoarei se me traíres a confiança!
Os rins chegavam, Luzia pôs o prato na mesa, ficou de pé junto à cadeira onde Amleto se sentou.
- Pois então, Dona Jesuína, pois estamos entendidos - falou ele, enfiando o guardanapo pelas dobras do colarinho. - Agora, se me dá licença, tenho o meu repasto a fazer, esteja à vontade. Luzia, o molho de cheiros-verdes?
(Viva o povo brasileiro, 1984.)
A VIDA É UM ETERNO AMANHÃ
As traduções são muito mais complexas do que se imagina. Não me refiro a locuções, expressões idiomáticas, palavras de gíria, flexões verbais, declinações e coisas assim. Isto dá para ser resolvido de uma maneira ou de outra, se bem que, muitas vezes, à custa de intenso sofrimento por parte do tradutor. Refiro-me à impossibilidade de encontrar equivalências entre palavras aparentemente sinônimas, unívocas e univalentes. Por exemplo, um alemão que saiba português responderá sem hesitação que a palavra portuguesa "amanhã" quer dizer "morgen". Mas coitado do alemão que vá para o Brasil acreditando que, quando um brasileiro diz "amanhã", está realmente querendo dizer "morgen". Raramente está. "Amanhã" é uma palavra riquíssima e tenho certeza de que, se o Grande Duden fosse brasileiro, pelo menos um volume teria de ser dedicado a ela e outras, que partilham da mesma condição.
"Amanhã" significa, entre outras coisas, "nunca", "talvez", "vou pensar", "vou desaparecer", "procure outro", "não quero", "no próximo ano", "assim que eu precisar", "um dia destes", "vamos mudar de assunto", etc. e, em casos excepcionalíssimos, "amanhã" mesmo. Qualquer estrangeiro que tenha vivido no Brasil sabe que são necessários vários anos de treinamento para distinguir qual o sentido pretendido pelo interlocutor brasileiro, quando ele responde, com a habitual cordialidade nonchalante, que fará tal ou qual coisa amanhã. O caso dos alemães é, seguramente, o mais grave. Não disponho de estatísticas confiáveis, mas tenho certeza de que nove em cada dez alemães que procuram ajuda médica no Brasil o fazem por causa de "amanhãs" casuais que os levam, no mínimo, a um colapso nervoso, para grande espanto de seus amigos brasileiros - esses alemães são uns loucos, é o que qualquer um dirá.
A culpa é um pouco dos alemães, que, vamos admitir, alimentam um número excessivo de certezas sobre esta vida incerta, número quase tão grande como a quantidade exasperante de preposições que freqüentam sua língua (estou estudando "auf" e "au" no momento, e não estou entendendo nada). São o contrário dos brasileiros, a maior parte dos quais não tem a menor idéia do que estará fazendo na próxima meia hora, quanto mais amanhã.
Talvez tudo se reduza a uma questão filosófica sobre a imanência do ser, o devenir, o princípio de identidade e outros assuntos do quais fingimos entender, em coquetéis desagradáveis onde mentimos a respeito de nossas leituras e nossos tempos na Faculdade. No plano prático, contudo, a coisa fica gravíssima. Se o Brasil tivesse fronteiras com a Alemanha, não digo uma guerra, mas algumas escaramuças já teriam eclodido, com toda a certeza - e a Alemanha perderia, notadamente porque o Brasil não compareceria às batalhas nos horários previstos, confundiria terça-feira com sexta-feira, deixaria tudo para amanhã, falsificaria a assinatura oficial no documento de rendição, receberia a Wehrmacht com batucadas nos momento, mais inadequados e estragaria tudo organizando almoços às seis horas da tarde.
Falo por experiência própria. When in Rome do as the Romans do ditado que deve ter uma versão latina muito mais chique, mas, infelizmente, não disponho aqui de meus livros de citações, para dar a impressão aos leitores de que leio Ovídio e Horácio no original. Mas, em inglês ou em latim, acho esse um pensamento de grande sabedoria e procuro segui-lo à risca, na minha atual condição de berlinense, tanto assim que, não fora minha tez trigueira e meu alemão abestalhado, ninguém me distinguiria, fosse por traje ou maneiras, dos outros berlinenses bebericando uma cervejinha ali na Adenauerplatz.
Fica tudo, porém, muito difícil em certas ocasiões, como hoje mesmo. O telefone tocou, atendi, falou um alemão simpático e cerimonioso do outro lado, querendo saber se eu estaria livre para uma palestra no dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20:30h. Sei que é difícil para um alemão compreender que esse tipo de pergunta é ininteligível para um brasileiro. Como alguém pode marcar alguma coisa com tanta precisão e antecedência, esses alemães são uns loucos. Mas não quis ser indelicado e, como sempre, recorri a minha mulher.
- Mulher - disse eu, depois de pedir que o telefonador esperasse um bocadinho. - Eu tenho algum compromisso para o dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20:30h?
- Você está maluco? - disse ela. - Quem é que pode responder a esse tipo de pergunta?
- Eu sei, mas tem um alemão aqui querendo uma resposta.
- Diga a ele que você responde amanhã.
- E quando ele telefonar amanha? Ele é alemão, ele vai telefonar amanhã, ele não sabe o que quer dizer amanhã.
- Ah, esses alemães são uns loucos. Você é escritor, invente uma resposta poética, diz a ele que a vida é um eterno amanhã.
Achei uma idéia interessante, mas não a usei, apenas disse que ele telefonasse amanhã. Mas claro que não sei o que dizer amanhã e fui dormir preocupado, tanto assim que ainda incomodei minha mulher com uma cotovelada. Afinal, os alemães são organizados, é uma vergonha a gente não poder planejar as coisas tão bem quanto eles. Que é que eu faço?
- Ora - respondeu ela, retribuindo já cotovelada -, pergunte a ele se os alemães planejaram a reunificação para agora. E, se ele for berlinense, pergunte se ele não preferia deixá-la para amanhã.
- Touché - disse eu, puxando o cobertor para cobrir a cabeça e resolvendo que amanhã pensaria no assunto.
(Um brasileiro em Berlim, 1993.)