Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Evaristo de Moraes Filho > Evaristo de Moraes Filho

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Josué Montello

Estamos na idade em que o centenário de nascimento de velhos amigos e conhecidos começa a nos assustar. De vez em quando, pelo aviso de amigos comuns, ou pelo noticiário dos jornais, somos informados de que este ou aquele confrade, com quem convivemos ou conversamos, estaria a completar 100 anos, se não houvesse dado as costas à vida, na hora própria, cumprindo determinação superior.

Entretanto, o susto do centenário alheio, embora nos faça correr um leve frio pela espinha dorsal, já não será tão forte e surpreendente quanto os sustos de outrora, por igual motivo.

A esta altura do tempo, esses centenários se tornaram tão usuais e comuns, que há mesmo quem prefira, como é o caso de nosso Presidente, festejá-los em vida.

Instalados na idade dos cabelos brancos, ou da falta deles, sentimos que somos mais prudentes, mais compreensivos, mais humanos ao mesmo tempo em que se aviva em nós certa vontade irreprimível de dar lição aos mais novos. Daí o reparo de La Rochefoucauld, lembrado por mim há vinte e nove anos, naquela tribuna: quando não podemos mais dar maus exemplos, passamos a dar conselhos. Sim, é verdade, e infelizmente fazem conosco o que fizemos com os mais velhos, na hora adequada: não nos ouvem nem nos levam a sério. Porque é da lei da vida que cada geração dê as respectivas cabeçadas, por conta própria. A aprendizagem é sempre mais segura.

Como conquistastes, na noite de hoje a vossa imortalidade, Sr. Evaristo de Moraes Filho, convém que eu, um pouco mais moço na idade, e bem mais velho na experiência dessa mesma imortalidade, transitória, vos advirta em tempo para as emoções que vos aguardam.

No tempo de José de Alencar, conforme se verifica pelos seus romances, os anciãos tinham cinquenta anos; hoje, conforme vós e eu assentamos, têm de ter pelo menos oitenta. O Presidente Reagan, que já empurrou para trás os setenta, não quer deixar a presidência dos Estados Unidos, por ainda sentir-se capaz de bem exercê-la. Do outro lado do mundo, na União Soviética, é nessa faixa etária que o Partido Comunista vai buscar seus líderes. Cumpre-nos recordar os pinheiros do poema de António Nobre:
   
Altos pinheiros septuagenários
E ainda empertigados sobre a serra!
   
Nesse ponto, não precisamos criar dívida externa. Temos experiência própria, oferecida também por esta Academia. Setenta anos são para nós a juventude em flor. O mais velho, aqui, tem 92 anos e recebeu um prêmio de Poesia, na semana passada: Menotti del Picchia. Quanto aos demais – silêncio. Vosso antecessor, Sr. Evaristo de Moraes Filho, já beirando os noventa, deixou-nos esta lição: velho mesmo é o moço que pinta os cabelos.

Vede agora o que escreveu Maurice Goudeket, com a sua autoridade de grande médico e de exemplar companheiro de Colette:
   
Jovens, que temeis a perspectiva da velhice, sabei por mim que não há estado mais aprazível. Fausto era um louco que trocou essa condição contra a vossa e se deu mal. De início, deixai que vos revele um segredo, eu que terei 75 anos antes de concluir este livro: não é verdade que se envelheça. E vós, septuagenários, antes de contribuir, como é de vosso hábito, para difundir um erro que se baseia em falaciosas aparências, interrogai a vós mesmos: o eu de vossa primeira maturidade mudou? Essa respiração mais curta, esse movimento mais lento, essa espinha menos flexível, pertencem ao nosso corpo. Que ele se arranje. Porque o ser impalpável, que anima nossa estrutura ameaçada, não tem, não terá jamais uma ruga.

Quando o nosso companheiro Afonso Arinos aqui chegou pela primeira vez, espantou-se, à mesa do chá, com a vivacidade dos seus confrades. E, como estava ao lado de Barbosa Lima Sobrinho, fez-lhe este reparo:

– Ninguém diz, ouvindo estas cabeças claras, que uma tem setenta, outra oitenta, outra noventa anos. Parecem jovens, na vivacidade da conversa.

Logo Barbosa Lima acudiu com a voz da experiência:

– Quando você quiser saber a idade de um acadêmico, não o ouça, no Plenário ou à mesa do chá – vá esperá-lo na porta, para ver como sobe a escada. É pelos pés, e não pela cabeça, que se sabe a idade de um acadêmico.

Chegais a esta casa, Sr. Evaristo de Moraes Filho, para enriquecê-la com a vossa vida e a vossa obra, ainda de pés ágeis, para galgar os degraus da entrada, e de cabeça clara e culta, para nos aligeirar o fluir das horas com o vosso saber.

Sucedeis àquele que era, entre nós, o maior de todos e dele traçastes o perfil exato, no discurso que acabamos de aplaudir. Um de meus mestres me advertiu, num de seus livros, que, de confrade a confrade, o louvor é atestado de identidade. Vossa identidade com Alceu Amoroso Lima é o vosso discurso. E esse discurso nos dá a certeza de que, ao longo do tempo, na cadeira que hoje vos pertence, sabereis zelar pela glória de vosso antecessor. Esse zelo póstumo é que é a glória das Academias.

José de Alencar nos adverte, no fecho de Iracema, que tudo passa sobre a Terra. Machado de Assis, ainda, moço, logo retrucaria, no fecho de outro romance, Iaiá Garcia: “Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões.”

Nas Academias, se passam as obras, desfeitas pelas alterações do gosto literário, e se passa o rumor da glória à vossa volta, apagado pelas novas glórias que vão despontando, o que realmente perdura, com o sabor e o sentido das efemérides, é esta noite de apoteose, com o companheiro que chega para louvar o companheiro que se foi, na eminência da tribuna em que nos exibistes o ouro da vossa prosa e o dourado de vosso fardão.

Por isso, trazido por vossa compreensão intelectual e por vossa palavra, Alceu Amoroso Lima acaba de responder à vossa chamada, presente a este Salão de Festa, tanto pela nobre vida que viveu, refletida nas suas obras e nas suas atitudes, quanto pela imagem que dele guardamos, como escritor, como mestre, como companheiro.

Quem conhece a história das Academias sabe que estas nem sempre põem na Cadeira vazia alguém que tenha afinidade com o confrade que ultimamente a ocupou. Um agnóstico, como R. Magalhães Júnior, sucedeu a D. Aquino Correia, arcebispo de Cuiabá. Uma figura mundana como Ataulfo de Paiva cedeu lugar a José Lins do Rego, grande romancista. Daí a perplexidade de um de nossos confrades, na solenidade de sua posse, quando indagou, em tom patético, daquela tribuna, referindo-se ao seu antecessor, por quem não morria de amores:

– Senhores, que é que eu vou fazer deste homem?

No vosso caso, Sr. Evaristo de Moraes Filho, ficou demonstrado que, no giro das sucessões acadêmicas, vos coube a figura adequada. Nenhuma outra mais rica de conteúdo humano e de saber universal. Alceu, para caber num discurso acadêmico, vos obrigou à habilidade paciente do presidiário que consegue meter um navio no interior de uma garrafa. E com que habilidade o fizestes, sem prejuízo de vossa liberdade. Mas não proferistes um mero panegírico, em que as palavras dançassem em redor de seus assuntos. Não. Estudastes a alta figura singular do mestre de Mitos de Nosso Tempo, e o analisastes, e o louvastes, no tom superior com que ele soube escrever muitas e muitas páginas fundamentais de nossa Crítica Literária.

Toda a vossa vida, Sr. Evaristo de Moraes Filho, é uma escalada de triunfos. Da escola primária à colação de grau, na velha Faculdade de Direito. Não esperastes a solenidade da formatura para terdes um nome. Adolescente, já éreis escritor. Com o gosto dos grandes temas. E o desembaraço de discorrer sobre eles. Ora vos atraía a Filosofia, ora o Direito, ora a Literatura. Mas sem esquecer a Política. O Socialismo, que trazíeis no sangue, como uma herança paterna, andou a chamar por vós, ao longo de vossos caminhos. Entretanto nunca vos orientastes pela militância política. Ficastes no puro terreno especulativo das grandes doutrinas. A teoria, para o verdadeiro teórico, não é uma renúncia, na ordem da vida prática. E um modo de ser e de existir. A atuação fecunda, no plano das ideias.

Andei a ler, e a reler, toda a vossa obra, para escrever este discurso. E o que me espanta, e o que me surpreende, é que não tivésseis chegado mais cedo a esta Casa. Já devíeis estar aqui.

A Academia, ao contrário do que presumem alguns de nossos companheiros que não chegaram até aqui, é também abrigo, na hora dos desencontros de opinião, quando o País procura mudar de caminhos. Protege. Tem a respeitabilidade de sua tradição. Como deixar de levar em conta que por aqui passaram Rui e Machado de Assis, Nabuco e Rio Branco? Valemos pelo que somos e também pela Instituição que nos acolheu para o resto da vida, sensível à obra ou à vida que realizamos.

Há um pouco de ridículo nesse chapéu de plumas e nessa espada inofensiva? Sim e não, desde que se confrontem os pontos de vista. Entretanto, convém advertir para esta lição de um mestre francês, quando nos diz que as instituições tendem a perecer, quando se desfazem do cerimonial que lhes é próprio.

Um de nossos saudosos confrades, quando no exercício da Presidência, ouviu, certa vez, a conversa afetuosa de um funcionário da Casa com um acadêmico. Conversa de velhos amigos, com você para cá, você para lá, e mesmo um tu mais efusivo. Quando o acadêmico se foi, o Presidente chamou o funcionário para advertir-lhe que, aqui, no recinto da Academia, os acadêmicos só devem ser chamados de doutor e tratados por Vossa Excelência. E o funcionário, depois da reprimenda:

– Sim, Excelência.

Dias depois, morre na Itália um dos grandes poetas de vossa devoção: Gabriel d’Annunzio, sócio correspondente de nossa Academia. Logo o funcionário, prestativo, expedito, telefonou para a casa do Presidente, chamou-o ao telefone, para dizer-lhe, em tom de voz desolada:
 
– Senhor Presidente, estou comunicando a Vossa Excelência que ontem, em Roma, faleceu o Dr. d’Annunzio.

Pondo de lado o leve ruído do riso, ou do sorriso, saibamos reconhecer que, no exercício da vida, o mistério da própria vida nos leva naturalmente à austeridade, à revelia da recomendação chinesa, que nos diz: “Quem não sabe rir, que feche a loja.”

Pessoalmente, sois inclinado ao bom riso sadio, a que se associa frequentemente a pitada de pimenta das irreverências necessárias. Mas toda a vossa obra é austera. Nos temas. No modo de debatê-los. Nas conclusões.

Era assim também o vosso antecessor. Pessoalmente, no convívio diário, Alceu gostava de rir, trazendo ao rosto acolhedor a risada envolvente e sadia, de que participava todo o seu ser, no movimento das mãos, na luz do olhar.

Escrevendo, sabia transmitir à sua prosa fluente as sobrancelhas contraídas. Não escrevia por escrever – escrevia para cumprir a sua missão. E essa missão trazia em si um sentido apostolar. Mesmo na Crítica Literária. Mesmo no texto de uma conferência. Estou certo de que Mestre Alceu sempre escrevia com uma intenção de eternidade. Como deve escrever todo escritor que tem a consciência de seu ofício. Intenção, vede bem. Porque a palavra, para o escritor genuíno, é um privilégio. Deve durar. Deve sobrepairar ao efêmero, como substância da obra de Arte Literária. Ou como chave para nossos mistérios.

Sou testemunha de que, nos últimos meses, só vos consagrastes ao estudo da vida e da obra de Alceu Amoroso Lima. Hoje, sabeis mais sobre ele do que saberia talvez o próprio Alceu, repassando as suas recordações. E por uma razão muito simples: nossa memória é essencialmente antológica: tem pendor seletivo, guarda apenas o que deve ser guardado e ainda passa uma camada de verniz sobre imagens e figuras, para nos proporcionar aquilo que Machado de Assis chamava, num de seus romances, o prazer das dores velhas.

Descestes às camadas mais profundas da obra de vosso antecessor. Nem seus versos vos escaparam. Um de nossos antecessores, Medeiros e Albuquerque, sempre que desejava troçar de um velho inimigo e seu confrade, Carlos de Laet, aqui na Academia, recitava o poema de juventude em que o grave líder católico confessa à namorada o desejo de ser o seu gatinho.

Felizmente, no caso de Alceu, se encontrastes os versos da mocidade apaixonada, ali não descobristes o gatinho de Laet. Sempre encontrastes o espírito austero, mesmo nos seus momentos líricos, embora Alceu também soubesse rir, e rir a seu modo, como quando me dizia, a propósito de Augusto Frederico Schmidt:

– A amizade com o Schmidt é difícil. Temos de provar, todos os dias, que somos amigos dele.

Estou inclinado a vos dizer, Sr. Evaristo de Moraes Filho, que essa busca de Alceu, nos livros, nos jornais, na lembrança dos amigos, foi, em boa parte, a busca de vós mesmo. Saístes em busca de Alceu Amoroso Lima e encontrastes Evaristo de Moraes Filho, com o mesmo gosto das ideias, a mesma paixão literária, o mesmo pendor para os ensaios, o mesmo gosto da reflexão sobre o texto alheio e, também, a claridade da mesma fé.

Quando procuro dentro de mim as mais antigas recordações de nosso convívio, vejo-vos na redação do Dom Casmurro na Praça Marechal Floriano, no Rio de Janeiro, como meu companheiro de geração literária. Que fazíeis por esse tempo? Escrevíeis sobre Goethe, Schiller, Keyserling, Balzac, Zola, Flaubert, Machado de Assis, tanto no jornal de Álvaro Moreyra e Brício de Abreu quanto nos suplementos literários do Correio da Manhã, do Diário de Notícias, de O Jornal, de O Estado de S. Paulo.

No transcurso do vigésimo quinto aniversário da morte de Proust, fostes chamado a colaborar na polianteia organizada por Saldanha Coelho, Proustiana Brasileira. Ali vos achei, ombro a ombro com Alceu, assinando um primoroso ensaio, Marcel Proust e o Realismo. Sinal de que os vossos espíritos, orientados por idênticos motivos, já estabeleciam a concordância que vos traria a esta Casa, a este Salão, a esta noite, para a glória desta investidura.

Na verdade, sois um escritor. E que é o escritor? É a sensibilidade que faz da palavra escrita o seu pretexto para a obra de Arte. Sois assim por determinação da natureza.

Vosso livro de estreia, Profetas de um Mundo que Morre, publicado em 1946, é mais do que o indício veemente (para falar aqui à maneira do velho Evaristo de Moraes) é a prova irrecusável de vosso pendor literário. Estudais ali três figuras, que correspondem a três caminhos: Alexis Carrel, Hermann von Keyserling e Gabriele, d’Annunzio.

Neste último, poderíeis ter encontrado a consolação de nossas cabeças luzidias, que as lâmpadas deste Salão parecem ter o gosto perverso de torná-las mais brilhantes. Porque foi d’Annunzio quem deu esta resposta, quando um de seus admiradores se espantou de que o poeta fosse tão calvo:

– A erva não cresce na cratera.

Não, não cresce. Como que as ideias em ebulição lhe crestam as raízes. Por isso, à medida que flui o tempo, mais a erva se vai, mais o brilho se alastra e permanece.

Deixai que vos faça aqui uma revelação. Eu, no tempo do Dom Casmurro, estava certo, certíssimo, de que chegaríeis à Academia antes de mim. Tínheis uma obra e grandes planos. Jamais eu poderia presumir que, como vosso amigo, e companheiro de geração, seria o confrade escolhido para vos dar as boas-vindas, nesta hora única, em nome de nossos colegas.

Entretanto, como tenho o gosto de acordar cedo, e cedo dar começo ao meu dia de trabalho, aqui cheguei aos 36 anos, para pedir que me deixassem entrar. E entrei. Logo ao bater da primeira pancada na aldrava da porta. Só não digo que tenha entrado a crédito, como de si próprio disse Graça Aranha, porque a benevolência de meus futuros confrades, sob a liderança de Alceu Amoroso Lima, já me tinha conferido os prêmios de Teatro, de Romance e de Ensaio, além de ter publicado um de meus livros, o estudo bibliográfico sobre Gonçalves Dias.

Em 1946, quando publicastes o vosso primeiro livro, o País entrara numa nova fase de normalidade democrática. Obrigados ao silêncio político, no período do Estado Novo, convivemos durante largo tempo com a censura, a repressão, o culto da personalidade na pessoa do chefe de Estado e assistimos, um tanto perplexos, à volta da liberdade. A monarquia de Vargas, com o hiato da eleição indireta de 1934, se não nos levou à clandestinidade no período mais agudo da repressão política, como que nos deixou desorientados, assim que voltaram a funcionar as instituições democráticas. Que íamos fazer de nós mesmos, nessa claridade de meio-dia, depois de ajustar os olhos às sombras demoradas?

Esse o drama de nossa geração. Procurei fixá-lo em alguns de meus romances, notadamente em A Coroa de Areia. Não apenas eu, como romancista, estou ali. Estão meus mestres, meus colegas, meus amigos, meus companheiros, vítimas do arbítrio que antecedeu à implantação do Estado Novo.

Tudo me leva a crer que, na adolescência, quando se traça para o futuro o caminho que devemos seguir, foi nas Letras que projetastes a vossa estrada real.

No entanto, cabe aqui dizer que é preciso estar de sobreaviso para as eventuais mudanças de rota, impostas pelas astúcias de nosso destino. Sem sair da Academia, quero lembrar neste momento a lição de Machado de Assis. Sabeis que este nosso Patrono, convidado pelo Barão de Ramiz Galvão para chefiar a Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, declinou do convite com a justificativa de que estava bem encaminhado na contabilidade do Ministério da Viação. Indagareis, com espanto:

– Trocar a Biblioteca pela contabilidade?

É verdade. Agora, vede o desenrolar da lição Teixeira de Melo, o notável poeta romântico de Sombras e Sonhos, aceitou o convite que Machado de Assis recusara e foi zelar pelos manuscritos da Biblioteca Nacional. Apaixonou-se por eles. Deixou de lado a Poesia. Nunca mais escreveu versos. Em vez de compor poemas, publicou as Efemérides Nacionais, em três volumes.

Sobre as rumas do poeta romântico, medrou e floresceu o pesquisador erudito em Teixeira de Melo. Imaginai agora o nosso Machado de Assis. Em vez de Dom Casmurro ou do Quincas Borba, teríamos de sua pena graves estudos de inspiração histórica por força da atmosfera erudita da Biblioteca Nacional. Preso à contabilidade como funcionário público, o mestre das Várias Histórias desforrou-se dela, em casa, e talvez mesmo na repartição, escrevendo contos, crônicas, romances, poesias, e com isto salvou-se o escritor.

No vosso caso, Sr. Evaristo de Moraes Filho, o destino se valeu de outro recurso, para vos trazer da adolescência à maturidade plena, realizando o sofisma matemático que faz da linha curva o caminho mais curto entre dois pontos. O escritor da juventude haveria de reencontrar-se com o escritor de hoje, na eminência desta Academia, depois de toda uma vida consagrada à Filosofia, à Sociologia e ao Direito do Trabalho. Mas sem que o escritor se esquecesse das Belas-Letras. A verdade é que continuastes a lembrar-vos delas e a cultivá-las, lendo, escrevendo, tendo-as sempre ao alcance da mão, na vossa primorosa biblioteca. Lá estão os mestres de todas as grandes literaturas, ora para a vossa reflexão, ora para o vosso lazer, ora para o vosso carinho, porque os livros também reclamam o nosso afago. E é com esses afagos que não envelhecem.

Trouxestes do berço, para os vossos ombros viris, a glória do velho Evaristo de Moraes, que conheci por volta de 1937, à porta do Instituto Nacional de Música, por trás de seus vastos bigodes, sobraçando uma pasta escura. Mestre Evaristo não se contentou em transferir-vos o seu nome ilustre – transferiu-o também a outro filho, e fez bem, porque a glória que vos transmitiu, ressoante de sucessivas lutas e vitórias, podia ser perfeitamente repartida entre os dois fraternalmente.

Enquanto vosso irmão recolhia a glória do criminalista, para lhe dar continuidade na mesma linha de triunfos, recolhestes as glórias do historiador, do jornalista, do político, do jurista, para acrescê-las com o pendor das Letras, outro traço de consanguinidade com o mestre paterno que escreveu o grande livro sobre A Campanha Abolicionista.
 
Por largo tempo, dir-se-ia que vos havíeis esquecido de vossas Letras literárias. Por onde andava o companheiro que se debruçava sobre Goethe e Shakespeare, Dante e Molière, Cervantes e Balzac, Castro Alves e Machado de Assis? Tínheis o direito do trabalho a defender, quer como mestre, na cátedra universitária, quer como jurisperito, na elaboração das leis e normas complementares daquele Direito. Toda uma vida consagrada ao estudo, e com o aplauso e o reconhecimento universais – na mesma fase em que vosso irmão, sabendo que o direito do cliente é a razão básica do advogado, se fazia a voz daqueles que a Revolução de 1964 ia punindo com a ira dos convictos e dos exaltados.

De repente, numa tarde de céu sereno, fostes surpreendido com a notícia de vossa aposentadoria sumária, na cátedra que havíeis conquistado com distinção, na velha Faculdade Nacional de Direito. E por quê? Não sabíeis. Ninguém sabia. Que tínheis feito para que desabasse sobre a cumeeira de vossa casa o raio punitivo? Tratastes de saber. Investigastes. Perquiristes. Os amigos acorreram, estarrecidos. Como? Era mesmo verdade? Afinal, tivestes acesso às fontes secretas de onde emanavam as punições. Foi então que, com espanto, dissestes à autoridade que vos permitira a pesquisa:

– O advogado dos cassados não sou eu. É meu irmão, que tem o mesmo nome. Eu sou apenas professor e jurista.

E o vosso interlocutor, com espanto ainda maior:

– E há dois Evaristo de Moraes Filho? Não é só o senhor? E o advogado é o outro? Valha-nos Deus!

Mas nem Deus, nessa hora, poderia valer-vos. Os atos da Revolução, insusceptíveis de revisão superior, eram a própria fatalidade que vos desfazia a vida, sem levar em conta os altos serviços que já havíeis prestado ao País. De Paris, mandei-vos minha palavra de solidariedade e apontei-vos o caminho desta Academia.

Em vosso discurso, tivestes a bondade de recordar minha palavra solidária, como se se tratasse de algo excepcional.

Não, não tinha esse relevo, por ser o dever natural do amigo e companheiro, no momento das injustiças. Fiz assim com todos aqueles que precisavam de meu amparo, na hora sombria e disto dei ciência ao meu embaixador, Bilac Pinto, pondo-o à vontade para promover o meu regresso ao Brasil. Registro, aqui, com emoção, a altitude com que me fez guardar a carta que seria o ponto final de minha missão em Paris.

Nosso companheiro Aurélio de Lyra Tavares, que lhe sucedeu, teve para comigo a mesma linha de grandeza, instando para que eu continuasse no meu posto, quando os meus já me chamavam, do outro lado do mundo. Por isso mesmo, o nosso comum amigo Edmundo Moniz, ali, durante o seu exílio, nunca deixou de receber minha visita. Nunca. Como nunca o meu dileto amigo Juscelino Kubitschek deixou de frequentar meu apartamento, no Bouvelard Saint Germain, e eu o dele, na sua reclusão altaneira.

Quando o ex-presidente foi atingido pelo ato político que o excluía da vida pública brasileira, não fiz mais do que o meu dever de amigo, quando solicitei ao então ministro Flávio de Lacerda que me dispensasse de minhas funções na direção geral do Museu Histórico e de membro do Conselho Federal de Educação, e publiquei meu protesto, no dia seguinte, na minha coluna do Jornal do Brasil.

Nesses instantes decisivos, é o velho meu pai que está em mim, com seu rigor presbiteriano e a norma de conduta que me transferiu como seu legado. Se vos digo estas coisas íntimas, é porque sabeis o que é isso. Tendes no sangue o brio viril da dignidade paterna. Nos vossos impulsos, nas vossas decisões meditadas, está convosco o velho Evaristo de Moraes, inflexível na sua linha de conduta. E daí não terdes aceitado a volta à vossa cátedra, quando a anistia acudiu a reparar o irreparável. Não aceitastes esse regresso. Mas aceitastes o título de professor emérito que a própria Universidade vos conferiu por unanimidade.

Estou em dizer-vos agora que a reparação suprema é a apoteose desta noite. Como já o havia sido para Hermes Lima, retirado do Supremo Tribunal pelos mesmos excessos. E como já havia sido também para Antônio Houaiss, nosso confrade ilustre. Aos que não compreendem a função das Academias, conviriam guardassem essas lições – a mesma lição que soube dar a Academia Francesa, quando o grande Chateaubriand, aceitando medir-se com a onipotência de Napoleão, foi tirado de seu ostracismo altaneiro para ter a glória de sua Poltrona na Casa de Richelieu.

Não sucedeis a Chénier, que se apagou nas voltas do tempo, sem dar a Chateaubriand o pretexto para louvá-lo. Sucedeis a uma figura que o tempo não apagará. Ao mestre desassombrado que sempre protestou contra as injustiças. Ao líder que fez de sua grande vida uma lição de altivez e dignidade, a serviço dos valores fundamentais da condição humana. Recolheis esse legado e tendes altitude para merecê-lo. Daí o vosso triunfo, na hora adequada à reparação pública a que tínheis direito. Neste instante, nós acadêmicos não somos intérpretes apenas de nosso voto, mas de toda a Nação.

Repasso as obras com que balizastes esta ascensão e vejo que sobem a oitenta títulos os vossos trabalhos, sem contar os artigos e conferências com que vos dispersastes nos jornais, nas revistas e nas tribunas, correspondendo à convocação de vossos alunos e admiradores, orgulhosos do mestre de que hoje nos orgulhamos.

Não direi que as Letras, ao longo de vossa estrada real, foram lenitivo e companhia. Não. Elas continuaram a constituir emanação de vossa pena, trazendo-vos ao nosso convívio. Completastes a longa volta e aqui chegastes para o nosso aplauso.

O poeta Heine nos ensinou, num de seus reparos à margem da vida, que o escritor, em casa, para trabalhar, precisa contar com o silêncio da companheira. Não tivestes apenas o silêncio, a mesa limpa, tudo em seu lugar. Tivestes sobretudo a solidariedade, na hora polêmica, e aquela confiança na reparação da própria vida, para desfazer os tropeços do caminho. Ileda nunca vos faltou. Nem os vossos filhos. Tampouco os vossos amigos verdadeiros. Isso consola? Consola. E dignifica. Sinto que umedeci vossos olhos. E aqui vos repito a lição de Gonçalves Dias:
   
Corram livres as lágrimas que choro,
Estas lágrimas, sim, que não desonram.
   
Permitis que conclua este discurso de boas-vindas, recordando uma passagem da vida de meu saudoso e grande amigo Juscelino Kubitschek, a quem tanto esta Casa fez falta na hora da reparação necessária. Guardei a data, no meu Diário da Tarde: 5 de outubro de 1965. Conforme registro de O Estado de S. Paulo, no dia seguinte, eu tinha acompanhado o ex-presidente ao local em que se realizava o inquérito das supostas relações de seu Governo com o Partido Comunista. Ali encontramos, vigilante, combativo, o grande Sobral Pinto, ao lado do exemplar Tancredo Neves. Enquanto a inquirição se processava, Tancredo Neves e eu ficamos a caminhar na Rua Barão de Mesquita, na vigília dos passos perdidos, ao longo da nesga de sombra que a tarde ia alargando.

Ao fim da demorada inquirição, ao ver o ex-presidente sair, com ar fatigado, e sereno, ainda com as sobrancelhas travadas, eu lhe disse, tentando confortá-lo:

– O senhor precisa ter um pouco de orgulho do que fez e realizou pelo Brasil, para suportar melhor esta provação.

E ele, senhor de seus nervos:

– Basta-me a simplicidade que eu trouxe de Diamantina.

Também a vós, Sr. Evaristo de Moraes Filho, bastou a vossa simplicidade e o vosso mérito intelectual, para chegar a esta Academia. São vossas as palmas que ides ouvir.
   

4/10/1984