A revolução integral, no sentido da lição de Francisco de Assis, tanto é uma revolução religiosa e moral, em suas raízes confessionais ou não confessionais, como uma revolução que atinge as próprias estruturas e instituições sociais, de tipo político, econômico ou cultural.
AAL, São Francisco de Assis, Rio, 1983, p. 69-70
1. A 3 de outubro de 1226, exatamente há 758 anos, falecia São Francisco de Assis. O dia de hoje lhe é consagrado. Foi o santo que de mais perto tocou o coração de Alceu, “o mais exemplar dos santos”, como escreveu em 1972. De meu conhecimento, pelo menos nove acadêmicos, já desaparecidos, lhe dedicaram belas páginas, em prosa e verso, de veneração e afeto, como que o fazendo o Patrono da Casa – Carlos Magalhães de Azeredo, Constâncio Alves, Augusto de Lima, Afrânio Peixoto, Fernando de Magalhães, Gustavo Barroso, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto e Alceu Amoroso Lima. “Réplica humana de Jesus, [...] a maior lição que o homem já deu à humanidade: a perfeição é possível neste mundo”, segundo Afrânio. “Onde o despotismo duro cimentava servidões, a sua alegria sonora reclamava liberdade”, na frase de Fernando de Magalhães.
Por escolha ocasional, vejo que não poderia ter sido mais feliz ao marcar a data desta minha posse na vaga deixada pelo maior de todos nós – a quem simplesmente sucedo, mas que não o substituo. No ensaio que escreveu sobre o Santo quando do sétimo centenário de sua morte, retomado na última década de sua vida, mostra Alceu que os dias de hoje assemelham-se aos do século XIII, nos quais viveu Francesco Bernardone, pelo luxo e pela violência. Se por milagre voltasse à vida, teria de recomeçar a mesma luta – pela simplicidade das coisas, contra o desenfreado espírito de ganho, pela paz e pela fraternidade, contra as rígidas hierarquias, pela justiça e pela igualdade. Só a fé de uma criança, como a sua, poderia renovar a alma do mundo moderno, como renovou a do seu tempo.
É sob a inspiração “desse desajeitado ermitão de Rivo Torto, cuja estatura era pequenina e, entretanto, não coube dentro de sua época”, cujo poema místico “Cantico di frate sole” inaugura praticamente a Literatura Italiana, que me dirijo a vós, senhores acadêmicos, sumamente agradecido por me haverdes acolhido como vosso par nesta Casa. A vós, Sr. Josué Montello, quero vos agradecer e vos declarar que não está esquecida a carta que me endereçastes de Paris, em janeiro de 1970, consolando-me do ato arbitrário e me indicando generosamente o caminho desta Academia.
A despeito do brilho e da riqueza do fardão – que me perdoe São Francisco, ele que havia celebrado “santas núpcias com a Senhora Pobreza” –, o meu estado de espírito é de humildade e de simplicidade, desajeitado e surpreso. Por mais que a Ciência progrida no sentido de afastar o insólito da vida humana, como pregava Descartes, não há negar que imensa será sempre a margem do inesperado e do surpreendente. Talvez seja esse, afinal, o desafio da vida, cercada de mistério e de fragilidade em cada minuto. Tive a ventura de viver o bastante, de trabalhar um pouco, de haver realizado alguma coisa, parcos títulos com que me apresento ao vosso convívio. E o momento era este, e não outro. Quase ao fim do prefácio da sua Crítica à Filosofia do Direito, lembra Hegel que é ao entardecer, no crepúsculo, que o mocho de Minerva inicia o seu voo. Se é uma hora de melancolia, é também de meditação. É um tempo de balanço e de retomada de novo impulso. De nenhum modo, é o fim, pois ao cair da noite só os pessimistas e os moribundos deixam de acreditar no sol...
Em seu discurso de posse, a 14 de dezembro de 1935, escreveu Tristão que são de duas ordens as funções literárias da Academia – de tradição, de manutenção do que ficou de bom e que mereceu ser conservado; e de criação, de renovação da Cultura Nacional. Ambas se completam. Pois bem, normalmente costuma-se atentar somente para a primeira delas, quando a segunda é igualmente importante e necessária. Na verdade, a Academia não dá nem tira talento a quem quer que seja. Por si só, não cria uma obra para quem nela ingressa, nem dele a retira ou impede de realizá-la. A Academia, afinal de contas, meus senhores, são os próprios acadêmicos, em sua diversidade de temperamentos e vocações, não somente os atuais, mas os de todos os tempos – passados, presentes e futuros. Como um corpo poroso, nunca opaco, aberto a todos, por ela passam ou podem passar os escritores de todos os gêneros literários do País: da Poesia, da Ficção ou do Ensaio. Há, sem dúvida, em pequeno número, os tímidos ou hesitantes e os que jamais desejaram candidatar-se à Academia, têm medo de perder a liberdade e receiam assumir compromissos até o fim de seus dias, como num casamento indissolúvel. Esses são indiferentes à Academia, dela não precisam para o maior brilho de sua glória, mas há ainda os nostálgicos, que aparentam desprezá-la, quando na realidade são apaixonados por ela... A Academia é aquilo que os acadêmicos fazem dela, pois não é uma entidade estática, hipostasiada, per se stante. Nela não há cânones literários nem normas de comportamento cultural; é possível a convivência de todas as escolas. Respeitados certos padrões normais de conveniência social, cada um é senhor de si e do seu destino intelectual, de suas opções, de suas crenças religiosas, de suas ideias filosóficas, políticas e sociais. Cada qual constrói por si a própria fortuna crítica; afinal, a Academia não é nenhum batismo coletivo com um só padrinho.
2. Em seu discurso de posse, não dedicou o grande morto de agosto de 1983 nenhuma palavra ao Patrono da Cadeira 40, Visconde do Rio Branco. Nisso, não lhe poderia seguir o exemplo, tamanha é a admiração que dedico ao primeiro Paranhos, herdada de Evaristo de Moraes: como político, como diplomata, como brasileiro.
Rio Branco – escreve Joaquim Nabuco em Um Estadista do Império – foi a mais lúcida consciência monárquica que teve o Reinado, e se, como estadista, ele precisasse de outro título além desse, teria o de ter sido o mais capaz diretor da nossa Política Externa em uma época em que ainda dependia dela a união do Brasil.
Recorde-se também o artigo de Rui Barbosa, no Diário de Notícias de 7 de março de 1889, aludindo à campanha pela Lei do Ventre Livre: “Desenvolveu (Rio Branco) qualidades parlamentares que entre nós nunca foram excedidas, adquirindo, incontestavelmente, jus à admiração agradecida com que a posteridade para sempre lhe associou o nome aos dos poucos benfeitores desta terra.”
No seu ensaio de história parlamentar da Lei de 28 de setembro, anotou Evaristo de Moraes a soma de 21 discursos proferidos por Paranhos, o que o levou a escrever, depois de analisar esse esforço imenso:
Em verdade, nada existe na história das instituições monárquicas e na crônica parlamentar do Brasil, que possa ser equiparado ao trabalho de Rio Branco, para fazer vingar o projeto emancipador de 1871. Nunca, no Brasil, foi uma ideia servida por vontade mais persistente.
Só a benemérita lei emancipadora de 1871 vale todo um programa, toda uma vida. Ao fim da Guerra do Paraguai, julgando o País pronto para a reforma, dizia Rio Branco: “Asseguro que empenharei todas as minhas forças para que triunfe quanto antes esta causa, que é a causa da humanidade, e também a causa dos verdadeiros interesses e do futuro engrandecimento da minha Pátria.” Nos estertores da morte, a 1.º de novembro de 1880, em delírio, pedia que não perturbassem a marcha do elemento servil, em palavras recolhidas pelo Visconde de Taunay, que lhe assistira aos últimos momentos, vindo a exclamar, por fim: “Confirmarei diante de Deus tudo quanto houver afirmado aos homens.” Essa bela frase, que poderia ter sido também proferida pelo último ocupante desta Cadeira, mereceu transcrição no Dictionnaire des Citations du Monde Entier, 1960, de Karl Petit, no qual aparecem referidos somente mais dois brasileiros: Rui Barbosa e Manuel Bandeira.
3. Rio Branco não pode ser esquecido, porque é exatamente nele que se inicia, na Cadeira, “essa tradição humanista integral”, considerada por Alceu “a mais bela expressão da Cultura sobre a face da Terra” e apontada por ele em seus antecessores. “Essa ‘humanidade’ profunda” já estava no Patrono.
Os quatro ocupantes da Cadeira 40 foram grandes espíritos universais, de sólida formação cultural, mas nunca descurados dos problemas do seu País. Pela vida, pelos livros e pela ação nunca abandonaram as suas raízes e sempre colocaram a sua cultura a serviço do povo brasileiro. Encontra-se nesse entranhado e permanente sentimento do povo a nota que os reúne na mesma família espiritual, sob a mesma coerência fundamentadora. De Rio Branco a Amoroso Lima, passando por Eduardo Prado, Afonso Arinos e Miguel Couto, foram todos tocados pela mesma vontade de servir, pela mesma vocação humanitária de ser útil e de elevar a dura condição dos pobres e dos humildes. Servindo ao povo, serviam a Deus. Viram a miséria do seu povo, do litoral ou do sertão, e a denunciaram, pregando a necessidade de uma reforma social. Nunca praticaram a Arte pela Arte nem a Literatura como mero divertimento. Não cabe a nenhum deles, nem ao próprio autor da frase, o dito pessimista de Voltaire, tão do agrado de Schopenhauer: Nour laisserons ce monde-ci aussi sot et aussi méchant que nous l’avons trouvé en y arrivant. O mundo, sem dúvida, pelo contrário, ficou melhor depois deles, pelos seus exemplos e pelas suas lições, que não foram em vão.
Com exceção de Miguel Couto, de origem modesta – mas que também veio, por esforço próprio, a pertencer à elite –, Prado, Afonso e Alceu, de origens nobres ou burguesas, tiveram nítida compreensão do papel das elites e de suas responsabilidades sociais. Todos e cada um poderiam assinar estas palavras de Alceu, datadas de setembro de 1960: “Um dos ideais do regime democrático é precisamente integrar elites e massas na mesma resultante: Povo. Massas e elites, sociologicamente falando, são conceitos relativos e subordinados a essa entidade superior, o Povo, que é o corpo da nacionalidade.”
De Rio Branco, nada mais precisa ser acrescentado. O Patrono dita o mote da Cadeira. Sobre Eduardo Prado, são muito repetidas certas frases feitas a seu respeito: monarquista, católico, nacionalista, aristocrata, homem fino e de sociedade, amigo de Eça de Queirós, a quem inspirara o Jacinto, de A Cidade e as Serras: Quase como dândi, amante das boas viagens pela Europa, passeando o seu tédio, quando na verdade era um apaixonado da sua terra e da sua gente. Viajava, mas era no seu sertão que ficavam o seu espírito e o seu amor. Quando da publicação, em 1893, da primeira edição da A Ilusão Americana, seu livro mais conhecido, foi expedida ordem de prisão contra ele. Informa Capistrano de Abreu (Ensaios e Estudos, I, 1931, p. 343): “Atravessou os sertões de Minas Gerais e Bahia, onde tomou o paquete. Talvez devido a seu estado de espírito, esta jornada gravou-lhe profundamente a imagem da pobreza e da esterilidade dos sertões por onde andou.” Ardentemente católico, “deu a seu proceder um tom cristão, socorrendo compassivo os pobres, atenuando a ironia, de que, aliás, nunca foi pródigo, vendo as coisas com mais caridade”... “Considerava o Brejão sua verdadeira e única morada; o mais eram pousos passageiros; quadros, livros, armas, curiosidades, tudo ali concentrava.”
De A Ilusão Americana, quase todos só se lembram da sua denúncia do imperialismo americano, pois este é um livro do qual muito se fala, mas que poucos o leram realmente. Dando seguimento à coerência do que seria esta Cadeira 40, escreve: “O ódio não cria cousa alguma. Só o amor é criador.” Estamos a ouvir Alceu Amoroso Lima! E em outro passo, mais diretamente:
Sem dúvida, a questão operária é de todos os países e o problema da riqueza e da pobreza é tão antigo como o mundo. Todas as soluções desse problema são soluções muito relativas e sempre provisórias. [...] Na vida moderna o capital cresce por si mesmo, cada vez mais se avoluma, e é fora de dúvida que a fatalidade faz com que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. [...] A Igreja patrocina o socialismo cristão, e não o faz somente por palavras, [...] procurando estender a mão aos operários, que afinal são a força, são o número, são a justiça e serão o poder amanhã.
Notai bem, senhores acadêmicos, que estas são palavras de Eduardo Prado, aqui substituído por Afonso Arinos, seu amigo e correligionário de ideias, crenças e sentimentos, que se casa em 1897 com Antonieta Prado, sobrinha de Eduardo. No mesmo ano, Afonso escreve um artigo sobre o epílogo da campanha de Canudos, mostrando que o movimento não era político nem de banditismo:
O Brasil Central era ignorado; se nos sertões existe uma população, dela nada conhece, dela não cura o Governo; e eis que ela surge, numa estranha e trágica manifestação de energia, afirmando sua existência e lavrando com o sangue um veementíssimo protesto contra o desprezo ou o olvido a que fora relegada. [...] Esses que foram mortos ou subjugados pelas armas nacionais fazem parte do grande conjunto de homens espalhados pelos 8 milhões e 300 mil quilômetros quadrados da superfície do nosso território, que vivem ignorados e esquecidos e não tomaram parte nas especulações da bolsa, não ganharam em contrabandos, não fizeram deposições, nem motins, nem contratos lucrativos; nem de longe lhes chegou a ação civilizadora do Governo.
Ficou o ensinamento, dizia Afonso.
Em 1898, publica Pelo Sertão, o seu livro mais célebre, que lhe daria notoriedade, reunindo contos sertanejos que, em sua maioria, já haviam sido publicados em revistas. Também no mesmo ano edita por O Comércio de S. Paulo, em forma de folhetim e com o pseudônimo de Olívio Barros, a “novela sertaneja” Os Jagunços. A sua ficção não é romântica, mas realista, de quem conviveu desde a infância com os seus personagens e os conhecia em cada fibra da alma. Polemizou em defesa deles, da sua autenticidade, tidos como falsos ou exagerados por alguns críticos da Rua do Ouvidor. Afonso os conhecia, sentia por eles uma grande empatia, limitara-se a recriá-los em sua arte, na mesma linha literária regionalista, cujo ponto mais alto será Guimarães Rosa. E é pensando neles, fora da Ficção, que deixará talvez a sua página mais forte, de protesto contra a miséria e o abandono dessas populações. Leva o significativo título de A Unidade da Pátria, conferência feita em Belo Horizonte em favor dos flagelados do Nordeste, publicada postumamente em 1917. Alguns passos, breves:
Esse dever de aliança para a ação compete tanto mais à classe culta, quanto, até agora, quem ainda mantém a união brasileira não são os homens superiores, mas o povo [...] Sem ter parte no Governo, o povo não tem culpa nem dos abalos políticos ou das revoluções, nem da desorganização administrativa, nem dos desmandos de toda ordem, nem da consequente penúria financeira. Ele não tem culpa e ele sofre mais do que os grandes, visto como nas calamidades é sempre o pobre o mais atingido. Ele continua resignadamente a lavrar a terra, a plantar o milho, a criar suas galinhas, seus porcos, suas vacas, a benzer as bicheiras do gado, a rezar o seu Pai-Nosso e a ser mais ou menos chupado de barbeiro e de impostos [...] Não é, pois, de esforço popular que depende a salvação do País: o povo faz o que pode e dele não se deve esperar mais. O exemplo vem do alto. É preciso um grande esforço das classes cultas.
Dois passos mais, que até parece foram escritos para os dias de hoje:
É preciso que esses elementos dispersos se ponham em contato diário, congregando-se e organizando-se para reerguimento do Brasil, taganteado pela Imprensa do mundo como caloteiro e falido fraudulento. A hora é decisiva. A própria soberania nacional está em risco e não poucos homens de responsabilidade contam certo com a tutela estrangeira, meta onde parará a nossa crise.
Falecendo em Barcelona a 19 de fevereiro de 1916, para a sua vaga foi eleito Miguel Couto, grande médico e professor. Foi recebido nesta Academia a 2 de junho de 1919, respeitado e consagrado por toda a Nação. De origem humilde, foi uma criança sem infância, entregando remédios e varrendo a farmácia do irmão para poder manter os estudos. Era conhecido por “Miguelzinho da Botica”. Depois de formado, trabalhou durante treze anos no bairro pobre da Prainha, acostumando-se ao espetáculo da miséria e do sofrimento. Conjugou o verbo “servir” em todos os tempos e por toda a vida, nas palavras de Alceu ao substituí-lo. Marcado pela bondade e pela ternura humana, dizia Miguel Couto, às primeiras palavras da sua posse, que a convivência do sofrimento lhe ensinara a humildade e lhe fizera presente a cada dia que o homem nem ao menos é uma sombra, senão apenas “o sonho de uma sombra”, como advertiu Píndaro. Referindo-se a Arinos, escreveu ele, páginas adiante, que a verdadeira bondade é “a que faz o bem pelo bem que logra, porque sente o mal alheio como próprio”. Também a si mesmo caberiam tais palavras.
Preocupou-se desde cedo com a saúde e com a educação do povo, a fim de tirá-lo da miséria, da subnutrição e da ignorância, elevando-o na escala social e lhe dando melhor qualidade de vida. Fixou-se na Educação, enxergando nela o único problema nacional: “Ensino e higiene são o mesmo e os nossos patrícios mergulhados nos sertões do Brasil não podem permanecer no desamparo dos poderes públicos. [...] É dolorosa esta necessidade de repetir, monotonamente, a cada hora, que a maior riqueza de uma nação é o homem.” Propunha a criação de um Ministério da Educação, com dois departamentos, o do Ensino e o da Higiene. E no parágrafo único, para que não pensassem que era candidato: “Nunca, jamais, em tempo algum, sob nenhum pretexto será Ministro o Dr. Miguel Couto...”
Tudo isso se encontra na sua conferência, de 1927: “No Brasil, só há um problema nacional: a educação do povo”, mandada imprimir a requerimento de Maurício de Lacerda, na sessão do Conselho Municipal do Distrito Federal, de 8 de julho daquele ano, a fim de que fosse distribuída pelas escolas públicas, normal e institutos profissionais, para leitura pública a seus alunos, em classe aberta, segundo os termos da proposta.
Coerente e fiel à sua pregação, eleito deputado à Assembleia Nacional Constituinte de 1933 pelo Estado do Rio de Janeiro, foi magna parte na elaboração do capítulo referente à Educação e à Cultura como direito de todos, com ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória, extensivo aos adultos, além da tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de torná-lo mais acessível. É do seu próprio punho a redação do art. 156 da Constituição de 16 de julho de 1934, em mandamento pioneiro: “A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos.” A Constituição de 1946 manteve o mesmo percentual (art. 169) e somente pela Emenda Constitucional n.º 24, de 1983, foi acrescentado o § 4.º ao art. 176 da Carta de 1967/1969, que era omissa a respeito, aumentando os percentuais, respectivamente, para 13% e 25%.
4. Mas, agora, já é tempo de lembrar aqui as palavras de Alceu no discurso de posse. “Como falar de Miguel Couto, que foi um mundo, nos escassos limites de alguns minutos?” “Não perdendo tempo”, direis vós. “E com razão”. Maior ainda é a minha perplexidade, se a esse mundo se soma o imenso universo que foi Alceu Amoroso Lima. E a resposta é a mesma: não perdendo tempo. E voltareis a ter razão.
“Foi Miguel Couto um belo exemplar de Humanismo científico ou de Ciência humanizada”, na síntese feliz de Alceu, ao suceder-lhe e substituí-lo em 1935. Estava mantida a coerência fundamentadora da Cadeira 40, que chegaria a seu ápice exatamente com o novo ocupante. Ninguém mais representativo desse Humanismo – quer na Crítica Literária, quer no pensamento social, quer na pregação política ou na prática religiosa. Desde os seus primeiros ensaios, a partir de 1916, foi essa a constante da sua vida: a busca incessante de um Humanismo Brasileiro, sem o dogmatismo de uma rígida caracterologia nacional, nunca descurado da universalidade da Cultura, mas voltado para o homem do seu País, da elite ou da massa, do litoral ou do sertão, no que tenha de mais profundo e singularizador em suas camadas anímicas. Globalista, partindo do todo para as partes, mas sem desprezar estas em suas individualidades, nunca foi unilateral nem reducionista, buscou sempre o homem todo em todos os homens, com humildade, sem jactância, mas com coragem, bravura, sem medo. Como no Conselho de Goethe – com quem mantém grandes afinidades espirituais –, meteu a mão em cheio na vida, vivendo-a intensa, resoluta e belamente. Foi, em todos os terrenos, um perfeito modelo desse Humanismo Brasileiro que ajudou a construir pelo seu exemplo e pelos seus escritos. Viveu como que a se consumir na própria chama, na permanente e inquieta busca da Verdade, procedendo sempre com os olhos fitos nela, coerente consigo mesmo em cada etapa percorrida, fosse qual fosse a aparência do jogo político, sem reticências mentais de nenhuma espécie. A verdadeira coerência está na sinceridade de propósitos e na elevação da causa a que se serve. Em tudo o que fez ou escreveu, por onde passou, deu-se inteiro, de coração aberto, com dignidade total. Se todo homem deve ter uma marca, nem que seja do diabo, na conhecida frase de Júlio Maria – padre redentorista muito do seu afeto e admiração –, Alceu sempre a teve e não foi a do diabo: foi a de Deus e de Cristo. Nunca foi um furta-cor nem um hesitante, embora nunca houvesse sido radical nem sectário pelo prazer de sê-lo. Simplesmente foi firme, nada mais. “A agressividade não é um sinal de Deus. A energia na defesa, sim”, disse-o Alceu em 1944.
Como São Francisco de Assis, via no amor o caminho para a verdadeira construção da morada do homem, na Terra ou na vida eterna. Fez do amor o seu instrumento da crítica, da compreensão e do perdão para todas as criaturas. Deus é amor. À maneira de São João da Cruz, optou pela sapientia cordis, pelo conhecimento do coração e não da pura razão. Onde não houvesse coração, talvez fosse melhor também que não houvesse cérebro.
A fé, afirma Alceu, não é apenas um poder de afetividade, mas representa o amor como forma de conhecimento da verdade. Essa é a força do Cristianismo, que sustenta que o amor não é apenas afetivo, mas cognoscitivo, capaz de levar ao conhecimento.
O amor de Alceu pela humanidade é tão grande, tão profundo, que se arrisca a assumir uma posição que não é muito ortodoxa e, com Orígenes e Papini, “deseja e pensa que haverá um perdão no juízo final, [...] porque todo pecador antes de pecar tem no fundo o arrependimento de ter pecado”. De pouco vale pregar a fé sem realizá-la, se não se “tirar dela a sua essência que é o amor”.
Alceu viveu às claras, numa típica transparência de homem de bem. Jamais teve nada a esconder, por isso a sua biografia é quase folclórica por este Brasil afora, tenham-no ou não lido, porque a sua história é quase uma lenda. Dos seus primeiros artigos na Revista do Brasil, em 1916, até aos últimos no Jornal do Brasil, em 1983, transcorreram 67 anos de produção ininterrupta, sob qualquer forma de comunicação, em livros, jornais ou revistas, em aulas, debates ou conferências. A Cadeira 40, nesta Academia, foi por ele ocupada durante 48 anos, tempo somente superado pelo Fundador da Cadeira 9, Carlos Magalhães de Azeredo, que a ocupou por 66 anos.
Grande ledor, devorador de papel impresso, dominando, pelo menos, seis línguas vivas, além do Latim, mantinha-se a par do que de melhor se produziu ou se vinha produzindo no mundo. A minha geração habituou-se, na segunda metade da década de 1930, a buscar nos seus livros, notadamente nas cinco séries dos Estudos, o ensinamento da Cultura nova. Muitos foram os autores divulgados entre nós por ele, cabendo-lhe as primícias de citá-los e situá-los. A isso já se referia Nestor Victor em 1927, com evidente má vontade, onde há, como disse um crítico atual, “saborosa mistura de admiração e despeito” (no meu entender, mais este do que aquela):
Ainda mais: ele é cheio de novidades, como eu já disse, em consequência de sua Cultura. Ler o escritor de Estudos é, a cada passo, aprender-se o que quer que seja de que ainda não estávamos informados. Ora, a maior parte da gente, nisto, por exemplo, de Geografia, de História, de Filosofia, de Física, de Química, de Ciências Naturais, está muito pela antiga, isto é, pelos sistemas ainda de ontem. Ele já passou uma revisão geral, minuciosa e profunda, em tudo o que aprendeu, quando ainda há pouco estudava seus preparatórios. E fala de tudo, conforme as cousas estão assentadas neste momento. Assentadas ou reviradas. Causa tudo isso verdadeira delícia aos que não dormiram de todo e de tudo isso já sabiam algo, embora mais ou menos pela rama. Mas a maior parte, que é sempre de vadios ou de preconceituosos, embezerrados, há de enraivecer-se, o que perturba a necessária retentiva para chegar-se ao fim, lembrando-nos do começo.
Obra Crítica de Nestor Victor, Rio de Janeiro, 1973, v. 2, p. 370.
Nem por isso, deixou Alceu de lhe reconhecer, em 1936, o justo valor na Crítica Brasileira, no caminho de uma crítica verdadeiramente estética, pois até então não lhe havia ainda sido “feita toda a justiça na história das nossas letras”.
Como dizia, Alceu viveu às claras. Numa das suas últimas entrevistas, prestada a Lourenço Dantas Mota (1983), declarava ele: “Toda a minha vida é de janelas e portas abertas. Evidentemente, cada um de nós tem a sua vida interior, particular, que nos diz respeito exclusivamente, mas, afora isso, não tenho reservas interiores.” Essa vida interior, particular, ele a defendia com todas as suas forças: era a sua intimidade, o seu lar, a sua privatividade. Esse homem aberto e franco precisava de recolhimento para o estudo, a meditação e a oração. Só esses momentos são verdadeiramente criadores. Em suas palavras, num trecho significativo:
Só na solidão encontramos o nosso verdadeiro eu. Só na solidão descobrimos o verdadeiro sentido da vida. Só na solidão nos abeberamos na fonte de verdadeira renovação. A vida interior não existe sem o amor da solidão. A vida ativa não tem sentido se não se renova na solidão [...] É no silêncio que ouvimos a voz das coisas, como ouvimos as vozes profundas do nosso próprio eu e como chegamos a ouvir a voz de Deus. (Meditação sobre o Mundo Interior, Rio, 1955, p.75-6, 67).
Em artigo no Jornal do Brasil, de 18 de dezembro de 1982:
O sentido profundo do mistério é o silêncio. Fazendo silêncio em nós, tocamos a essência do mistério. E com ele em nós e fora de nós, na humildade de cada passo e cada ato, estamos carregando a nossa pedra obscura para a construção de um mundo melhor, mesmo que destinado a morrer como morrem as civilizações.
Assistia à santa missa todas as manhãs e, de volta, escrevia longas cartas à filha monja beneditina, abadessa em São Paulo, que lhe respondia semanalmente.
Andarilho habitual, inventor do método Cooper avant la lettre, deslocava-se nesta cidade do Rio de Janeiro, que tanto amou, de um ponto para outro de seus compromissos diários, sempre apressado, em passos rápidos, a carregar uma enorme e pesada pasta preta, bojuda e surrada. Logo reconhecido, pouco se detinha, mas para todos tinha um sorriso e uma palavra amável. Homem alegre, sempre renovado, expansivo, paciente e atento, vivia em constante empatia com a humanidade. Sabia-se comprometido com o destino dos humanos, seus irmãos e semelhantes. Inteiramente sem pose, a simplicidade era o seu natural. Vejam-se estas linhas irretocáveis de Álvaro Lins (Notas de um Diário de Crítica, Rio, 1943, p. 181):
Almoço com Tristão de Athayde. Estou-me lembrando, agora, de o ter visto, pela primeira vez, em outro almoço, há seis anos, quando o encontrei com a emoção de um provinciano em face de uma figura gloriosa. O que me surpreendeu naquele momento, ainda hoje, que o conheço de mais perto, constitui uma surpresa: a espécie de inocência, de bondade natural, com que ele se coloca em face de todas as coisas. Ao contrário de Mallarmé – ele leu todos os livros e ficou alegre.
Essa alegria de viver, essa alegria de estar vivo, esse otimismo, essa confiança na existência está no cerne mesmo da sua personalidade, decorre do seu temperamento saudável, hígido de corpo e de espírito e de sua fé religiosa, principalmente desta. A vida é o maior dos bens, como dádiva de Deus, deve ser amada e não amaldiçoada. O Cristianismo não é uma filosofia de tristeza e de morte, como queria Nietzsche. É uma filosofia de alegria e de vida, de vida terrena e de vida eterna, esta prolonga aquela e entre si fazem uma perfeita unidade. Em 1962: “Esse o sentido do meu invariável otimismo, apesar de todos os pesares. Da minha resistência ao pânico”; e em 1983: “Meu temperamento é antipessimista.” De forma exemplar, na Estética Literária (1945); “Viver é alegria. Se a vida nos faz sofrer é que foi mutilada, em sua natureza original, pelo uso ilegítimo feito pelo homem do mais belo dos dotes com que Deus o distinguiu – ‘a liberdade’.” E em Tudo é Mistério (1983):
Gostaria de contar quantas vezes a palavra “alegria” se encontra nos Evangelhos. [...] A Alegria, portanto, como a Liberdade, não é apenas um direito congênito a cada ser humano, mas um dever naquela lei de perfectibilidade que a todo momento invocamos, como uma das leis essenciais da condição de todos os seres e em particular do “ser dos seres”, a criatura humana. Mas a tristeza não é um pecado em si, nem mesmo venial, mas uma omissão. A omissão do dever da alegria. E, acima de tudo, do seu “prazer sobrenatural”, como sinal de vida eterna.
Eis Alceu: na doutrina, na fé e na vida.
5. Desde os seus cinquenta anos, tornou-se hábito a comemoração de cada nova década, sempre com livros de homenagens, entrevistas, balanço da vida vivida, depoimentos. Preparavam-se grandes festas para 11 de dezembro do ano passado, quando completaria noventa anos. Tudo isso e mais as Memórias Improvisadas, de 1973, inteligentemente recolhidas e redigidas por Medeiros Lima, dão a história minuciosa da vida de Alceu, completadas agora pelas deliciosas Histórias de meu Avô, de Xikito Affonso Ferreira. Por isso mesmo, a este respeito, serei breve. Mas a notoriedade de Alceu, quase lendário, produziu o risco da repetição superficial e leviana; a frase passa de boca em boca, por ouvir dizer, e poucos são os que lhe vão diretamente aos textos. Viu-se ele classificado, catalogado e metido nas páginas dos livros, nem sempre de boa-fé, como borboleta seca espetada a alfinete no quadro pelos entomologistas. Pela sua vida de permanente liderança e de compromisso com a liberdade, poucos têm sido, neste País, tão vítimas dos enganos e dos equívocos como o grande autor de O Espírito e o Mundo. Em Testemunho, publicado em sua homenagem quando dos cinquenta anos, deplorava ele que nem sempre era bem compreendido, talvez até por incapacidade sua, vendo-se, não raro, “refletido em espelhos deformantes”. “O que mais devemos saborear em nossos próprios pensamentos é o caminho pitoresco que vão fazendo pelo mundo afora, nessa sarabanda de verdades soltas e enlouquecidas, em que Chesterton via o segredo da inquietação contemporânea”. Em 1973, nas Memórias, como que retomando estas palavras de trinta anos atrás: “Devo, aliás, a esses erros de interpretação a maioria das dissidências ou das calúnias, que de resto nunca faltam a quem, por mais de sessenta anos, vive de pena na mão e de janelas abertas.”
Alceu Amoroso Lima nasceu a 11 de dezembro de 1893, em plena revolta da Armada, numa ampla chácara, que subia pelo morro, no Cosme Velho. A Casa Azul nunca mais o abandonaria, pelo resto da vida estaria sempre presente em sua memória como Rosebud, o pequeno carro de esquiar do Cidadão Kane, de Orson Welles. A saudade levou-o a compor a obra-prima, que é o “Adeus à Casa Azul” (1940), página do mais puro sabor proustiano. O livro de memórias, que não chegou a escrever, teria como título A Casa Azul e outras Casas. Sua mãe, D. Camila, natural da cidade do Porto, pertencia à tradicional estirpe Peixoto da Silva. Sua bisavó, pelo lado paterno, era nascida no Curral d’El Rei e batizada em Sabará em 1802. A filha “da nobre matrona mineira”, avó de Alceu, casara-se com o Visconde de Amoroso Lima, também de velha cepa lusitana. “Na verdade – escreve meu antecessor –, nossa gente vinha dos trabalhos da terra, sem nenhuma linhagem aristocrática”. Seu pai, Manuel José de Amoroso Lima, mais tarde comendador, era brasileiro. Fora caixeiro ainda no Império, participando dos movimentos da classe dos empregados no comércio. Fundara um centro caixeiral no Rio, tomando parte na agitação em favor da melhoria da classe. Republicano histórico, jacobino ardente, formou entre os seguidores fanáticos de Floriano, cujo nome quis dar ao seu único rebento varão.
O menino aprendera a ler com a mãe e foi aluno – talvez mais companheiro menor do que aluno – de João Köpke, grande educador e revelador dos profundos mistérios da alma infantil. Foi ele um precursor da Escola Nova, praticava o ensino intuitivo, com participação ativa do educando, nos moldes das lições de coisas, aqui difundidas por Rui Barbosa. Colaborou com o professor, aos nove anos, num pequeno livro de leitura, por ele conservado por longo tempo, mas que, infelizmente, veio a perder-se. Aos oitenta anos, confessava Alceu que seu grande sonho de infância era ser motorneiro ou baleiro de bonde, pelo que significavam de liberdade e de aventura. Vizinho de Machado de Assis, o viu muitas vezes em passeio com a doce Carolina, ficando-lhe marcada na memória a cena do enterro do criador de D. Casmurro em 1908. Teve uma infância cercada de afeto e conforto, própria de um lar bem constituído de família de classe média superior. Era verde o seu vale, cortado pelo rio Carioca. O pai, ex-seminarista, conservou-se amigo dos padres por toda a vida, vindo a falecer em 1923. A mãe, cética, menos afeita às coisas da religião, morta em 1938, não escondeu a sua preocupação quando da conversão do seu ilustre filho. Teve Alceu uma educação católica rotineira, convencional, meramente social. Se jamais foi rígida a sua formação religiosa, nunca chegou ele a ser agnóstico, ateu ou irreligioso. Sua babá e seu padrinho constituíram-se em dulcíssimas figuras da sua infância, inesquecíveis. Na sua lembrança ficaram as imagens de Cesário Alvim e de Manuel Vitorino, moradores do bairro, que passavam frequentemente pela Casa Azul. Recorda-se de Rui Barbosa, em visita à família, “um velhinho branco e curvo, de fraque claro, que olhava as plantas com imenso carinho”. Sob as mangueiras da chácara, deliciou-se, ouvindo anedotas de Gastão da Cunha, mas “foi à sombra dos sapotizeiros que Afonso Arinos povoou a sua (nossa) infância de um sonho sertanejo, cheio de bravura e de poesia”.
Apesar de todas essas boas lembranças que lhe ficaram gravadas para sempre, surpreendentemente, confessa Alceu que não teve uma infância feliz, porque nenhuma criança é verdadeiramente feliz. Prometeu a si mesmo desmentir o mito e o cumpriu no seu livro preferido, autobiográfico, Idade, Sexo e Tempo, segundo ele o seu livro mais bem feito, com dezenas de edições, “onde – como disse – deixou a experiência de uma vida”.
Aos seis anos de idade, em 1900, viajou para a Europa pela primeira vez, lá voltando, até a Guerra, em 1909, 1913 e 1914. Na terceira viagem, assistiu a cursos de Bergson (Filosofia) e de Louis Dimier (História) no Collège de France, e o primeiro se constituirá numa das suas admirações permanentes e sobre o qual dará um curso no Centro D. Vital em 1928. Esteve com Graça Aranha em Paris na mesma ocasião, recebendo dele o conselho de que fundasse no Rio o Clube Goethe, “na linha do romântico Sturm und Drang, do século XVIII”, a fim de agitar o meio literário nacional, tirando-o do marasmo em que se encontrava. No mesmo ano em que a guerra foi deflagrada, de passagem pela Itália, sofreu grave crise existencial na cidade de Veneza, sentindo-se inteiramente desinteressado da vida e chegando até a pensar em suicídio. Nas suas andanças pela cidade, por certo não teria deixado de visitar, no Grande Canal, a casa em que morrera Richard Wagner, em 1883, um dos gênios musicais da sua predileção. O outro era Claude Debussy. Pela educação musical que recebera do maestro Alberto Nepomuceno estava bem à altura de compreendê-los.
No Ginásio Nacional, Alceu fora aluno de Coelho Neto e Fausto Barreto, vindo a formar-se em Direito a 20 de dezembro de 1913. Sílvio Romero, paraninfo da turma, fora seu professor de Filosofia do Direito, impressionando-o fundamente como caráter e como mestre. Transmitira-lhe a doutrina do evolucionismo spenceriano e acabara por lhe sacudir as frágeis práticas católicas da infância. Dirigiu a revista A Época e com o seu amigo Ronald de Carvalho dera-lhe um sentido mais literário do que jurídico, publicando nela alguns contos de sua autoria. A sua ficção era fraca, como reconhecerá mais tarde. Surpreendido, em 1915, por Afonso Arinos na elaboração de um conto, cujos título e tema eram franceses, recebeu deste o conselho para ocupar-se com assuntos brasileiros, da sua terra: “Não se desnacionalize. Volte-se para o seu País.” Perguntara-lhe se já havia lido o Conde de Abranhos. Com a resposta negativa, exclamou surpreso: “Que homem feliz, ainda não leu alguma coisa de Eça de Queirós.” A verdade é que, em 1973, confessava Alceu que se recordava dos seus contos “com humilhação e remorso”.
Aos 14 anos, já havia lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, tendo descoberto com Afonso Arinos “a literatura regional de sabor popular”. Nessa mesma época, ainda ginasiano, lera Shakespeare, de quem já ouvira falar nas lições de João Kopke. Ainda no que chama de período da Belle Époque – que só vai terminar com as hostilidades de 1914 – teve em Rui, pela campanha civilista, o seu herói e se decepcionara muito com a sua derrota. Eça, Anatole e Machado foram os seus autores prediletos, três céticos e negativistas religiosos, mestres da ironia e do estilo. Iam ficando cada vez mais distantes as crenças, já por si tênues, da sua infância. Faziam parte ainda da sua leitura e do seu encantamento as obras de Balzac, Dickens e Stendhal. Minha Formação, de Joaquim Nabuco, era lida em voz alta – mais pela forma do que pelo fundo – por ele e seus amigos.
Praticando esportes e muito afeito à dança, mais tarde ele próprio chamaria a esse período de sibaritismo. Depois de formado, trabalha no escritório de advocacia de João Carneiro de Sousa Bandeira, seu antigo professor de Direito Administrativo, discípulo de Tobias Barreto e tio de Manuel Bandeira. Sousa Bandeira, falecido em 1917, fora membro desta Academia. Sabia de cor largos trechos de Goethe e os recitava em alemão. Sua casa constituiu um dos últimos salões literários do Rio e era frequentada por Olavo Bilac, Afrânio Peixoto, Aluísio de Castro e Carlos Peixoto. Com a morte do chefe do escritório, ingressou no Itamarati, servindo a dois ministros, Lauro Müller e Nilo Peçanha, reencontrando-se com seu amigo e colega, Ronald de Carvalho. Permanece no cargo somente por um ano e, como tinha pouco o que fazer, passava o tempo dedicado a leituras, a longas conversas e a grandes planos literários.
6. A guerra, porém, pelos seus horrores e pelo seu realismo trágico, dava fim à Belle Époque; as doçuras do bom viver iam ficando para trás. A humanidade despertava de seu sonho de paz permanente. A razão cedia aos instintos, o homem se desesperava e assistia perplexo à transmutação dos antigos valores. Em 1932 dirá Alceu: “Fomos sacudidos até o fundo de nossas entranhas!” Quanto ao Brasil, que se vira obrigado a participar da guerra, voltava-se para dentro de si mesmo, numa introspecção capaz de lhe indicar os novos rumos a seguir. Fazia-se forte o sentimento nacionalista, de busca às raízes brasileiras. É nessa época que Alceu visita velhas cidades de Minas com o seu amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade e sobre a viagem escreve um artigo, “Pelo passado nacional”, na Revista do Brasil, em dezembro de 1916. Era um artigo nacionalista, preocupado com a tradição brasileira, com a sua memória, e, sobretudo, com a sua arte religiosa. Revela grande sensibilidade mística, em defesa das velhas capelinhas em ruínas, denunciando as suas desastradas e ineptas restaurações. Dizia em certo passo:
A missão suprema do brasileiro de hoje é reunir os materiais para preparar um espírito nacional, em todas as manifestações de sua atividade. [...] A Arte, a Literatura, o estilo, a organização verdadeiramente nacionais serão uma consequência lógica do nosso meio, do nosso clima, da nossa filiação, das nossas tendências.
Já se vislumbra aí o grande ensaísta e crítico que desabrocharia menos de três anos depois. Em artigo do ano seguinte, na mesma Revista, refere-se à “ilusão cientificista” do século XIX, o que já representa uma reação contra Sílvio Romero e será uma das aquisições definitivas da sua concepção filosófica em todas as etapas da sua vida. Em artigo subsequente, aparecem também algumas ideias econômicas e sociais que o acompanharão até o derradeiro dia da existência. Estávamos em 1917, diante de um jovem de 23 anos. Prega “a conjuração no berço (do nosso desenvolvimento econômico) da guerra das classes”. E acrescenta, ao fim do período: “O meio prontamente acessível de se chegar a esse resultado parece ser a distribuição mais equitativa das riquezas, evitando a miséria.”
E quanto ao nacionalismo, bem mergulhado no seu tempo: “Pode-se dizer que, hoje, o trabalho útil do País é o que tender a torná-lo cada vez mais livre. Eis a pedra de toque para julgarmos dos homens e dos atos brasileiros.” Tudo caminhava neste sentido, vislumbrando o jovem Alceu a renovação da Literatura e o seu reflorescimento em São Paulo, como seu futuro centro dinâmico. Aqui está, sem dúvida, uma intuição, pré-modernista, que cinco anos mais tarde se confirmará:
Em nossos dias, libertou-se a Literatura daqueles atavios; a feição nacional das “Letras” é hoje uma necessidade da inteligência e não um esforço do sentimento. [...] Hoje, a mesma lei da história, que tem encontrado entre nós, como vemos, confirmação plena, nos autoriza a prever que o futuro movimento intelectual no Brasil vai irradiar de São Paulo. Vivendo em pleno germinar da ideia regionalista, desfrutando metade da fortuna nacional, possuindo uma aristocracia da terra, tendo herdado os seus filhos a altivez e o bom senso dos “Paulistas” de Piratininga, prepara-se São Paulo para a realeza da República... [...] O século XVI pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII a Minas Gerais, o XIX ao Rio de Janeiro; o século XX é o século de São Paulo. Dessa diversão pela nossa história literária se conclui que os povos precisam ser livres para ser ricos, e ricos para ser inteligentes.
Os tempos, realmente, eram outros, e Alceu mudava com eles. Tempora mutantur et nos mutamur in illis – mudam-se os tempos e nós mudamos com eles. E assim procederia Alceu ao longo da vida, sempre sensível e alerta, coerente com a causa que se propunha. O seu antigo sibaritismo – uso o termo empregado pelo próprio Alceu, embora me pareça exagerado – ia ficando para trás. Já não se podia mais disfarçar a existência da questão social entre nós. Aumentava o proletariado urbano, e era grande a agitação operária. A carestia da vida crescia assustadoramente, chegando à sufocação das classes pobres. As maiores greves de todo o período republicano eclodiam no Rio de Janeiro e em São Paulo e em outras capitais do País. As ideologias de mudança social se multiplicavam e se digladiavam entre si. O impacto da revolução russa sacudira a Nação; temia-se uma greve geral, como noticiavam os jornais, para tomada do poder pelos trabalhadores. A repressão do governo foi imediata, com medidas de segurança ostensivas. Estávamos em 1918 e a sociedade brasileira sentia-se assustada, receosa do dia de amanhã.
Nesse mesmo ano, a 27 de agosto, casa-se com Maria Teresa, filha de Alberto de Faria. O namoro iniciara-se em Petrópolis no ano anterior. Por 63 anos, Tristão e Isolda – como mais tarde eram chamados em família – seriam absolutamente felizes, numa das uniões mais perfeitas de que se tem notícia. Edita ainda, por sua conta, em 1918, uma bela plaqueta de Poesia, Redenção – que chegou ao meu conhecimento, com empréstimo do exemplar, pela gentileza de Rubens Porto –, com versos líricos e românticos, dedicados à noiva: “Tibi, Maria Thereza, dulcis”. Sabia-se do próprio Alceu que havia ele publicado um soneto, numa revista de cujo nome não se lembrava, com o pseudônimo de Vasco de Athayde. É que, na ocasião, já se encontrava trabalhando com o pai à frente do seu empreendimento industrial em Petrópolis e não desejava ser identificado como o autor do soneto. Daí lhe sairá o pseudônimo, Tristão de Athayde, quando convidado por Renato Lopes para ser o titular da coluna bibliográfica de O Jornal em 1919. A prole de Alceu foi numerosa, sete filhos: Maria Helena, Sílvia, Lia (atual Irmã Maria Teresa), Jorge, Alceu, Paulo e Luís. Ao falecer, deixou dezessete netos e um bisneto. Em longevidade, em produção intelectual, em apostolado católico, em bondade, enfim, em tudo, Alceu foi múltiplo e exuberante.
7. Iniciando-se na crítica literária propriamente dita a partir de 17 de junho de 1919, nem por isso deixou o jovem crítico de se ocupar e preocupar com os problemas sociais e econômicos do seu tempo, quer no âmbito universal, quer no âmbito nacional. Ingressávamos, como nunca mais se cansará de dizer, na fase de grande transformação oriunda da Guerra, da Revolução e da Crise. Escrevia no artigo do dia 28:
A influência da guerra sobre a Literatura é o problema literário do momento [...] Esse duplo caráter – nacionalista e socialista – distingue a nossa corrente contemporânea. Foi a guerra que determinou o movimento. A visão da Europa e do mundo em luta aproximou-nos de nós mesmos. Todas as guerras produzem uma revisão de valores. Esta nos obrigou a cogitar de nossa terra, com mais interesse e carinho.
E, já prevendo a nova Ficção e a nova Poesia dos anos de 1930:
Inspirada pela terra e apiedada pelo homem, a nossa Literatura de amanhã viverá num largo sopro de naturalidade [...] A guerra nos veio libertar o pensamento de muitos preconceitos. Se o momento é de regionalismo na inspiração e no ambiente, é de humanitarismo nas ideias. A paz, sem a revolução ou talvez ainda com ela, aproxima os homens.
Onde o diletantismo? Acaba aí definitivamente La Belle Époque, o liberalismo descuidado dava o seu adeus como possível forma de organização política da vida social. As terapêuticas que se ofereciam, em sua maioria, eram radicais e violentas. O diagnóstico estava feito, havia que escolher o tratamento. Alceu, mais uma vez, fazia-se presente e não omitia a sua opinião, a despeito de pertencer, social e economicamente, à classe burguesa. Os quatro primeiros artigos e muitos outros posteriores versam temas mais de Política e Filosofia Social do que propriamente de Literatura em sentido estrito. No artigo de estreia, prega a “individualidade nacional” e dirige-se aos que “amam esta terra e confiam neste povo”. O quarto artigo nada mais é do que uma simples recensão do Clarté, de Henri Barbusse, “cuja frase poderosa La révolution c’est l’ordre resume o seu idealismo positivo”. Pela piedade, diz Alceu, Barbusse chegou à razão, “ao amor pelo homem do povo sofredor, vítima do mecanismo social”. E completa:
Sua fé na remodelação social não é utópica. Ele não crê que qualquer regime social possa influir na felicidade – paraíso íntimo e pessoal –, mas a ‘vida equilibrada e cuidada é necessária ao homem para construir a mansão isolada da ventura’, para viver a paz e o trabalho justo, a doçura do lar, o conforto geral, para os inventos, os acordos, as virtudes. Não é idílico o seu quadro futuro: é justo e razoável.
Não deve ser esquecido que o autor do artigo se encontrava à frente de uma empresa industrial...
Contra “a guerra de classe”, como vimos, colocava-se Alceu a favor da reforma social sem violência, conquistada por meios pacíficos e evolutivos, nunca revolucionários. Esta será a sua posição pelo resto da vida, em todas as etapas por que tenha passado. Sob a inspiração de Barbusse e Anatole, aspirava a uma social-democracia plena e humana, a um suave socialismo, espiritual e democrático. A influência maior, àquela época, foi a de Anatole, a quem adjetiva de “incomparável” mais de uma vez. Dirá, mais tarde, nas Memórias:
O que mais me atraía em Anatole France era a combinação, o contraste, a complexidade desse espírito conservador, digamos assim, do ponto de vista da expressão literária, e o homem de ideias revolucionárias, pois, como se sabe, era um socialista. Combinava, paradoxalmente, um estilo clássico com uma ideologia libertário-romântica. Digo libertário-romântica, porque nunca chegou a ser um revolucionário no sentido atual do termo. O revolucionário de hoje, disciplinador de ideias e de política, certamente o horrorizaria. [...] Estilisticamente me ensinou o Humanismo Clássico através de seus livros. Sociologicamente, despertou-me para o problema da transformação social. Filosoficamente, atenuou a importância de Sílvio Romero, transmitindo-me a sua visão cética da vida e do mundo.
Pela seriedade, pela cultura, pelo trato dos assuntos nacionais e universais, pelas novidades e, sobretudo, pelo equilíbrio, o novo crítico impôs-se de imediato. Chegou e venceu. Percebeu-se desde logo que seria o sucessor e o substituto da admirável trindade – Araripe, Sílvio e Veríssimo –, que desaparecera de cena com a morte deste último, em 1916. No ano seguinte, nas conferências que fez sobre Machado de Assis, escrevia Alfredo Pujol:
Com José Veríssimo, desapareceu a Crítica no Brasil. A quem caberá receber o legado, que vem de Machado de Assis? O glorioso cetro tem de passar às mãos de Oliveira Lima. A ele compete, com as suas preciosas qualidades de historiador e filósofo, e com a sua extraordinária cultura literária, prosseguir nos seus trabalhos de crítica impressionista, reacendendo o facho que a morte extinguiu nas mãos de Machado de Assis e José Veríssimo.
O sucessor, porém, já fazia, ao tempo, os seus primeiros ensaios na Revista do Brasil: chamava-se Alceu Amoroso Lima, que só irá adotar o pseudônimo ao estrear em O Jornal em 1919. Escrevendo mais tarde sobre essa vacatio da Crítica, dirá Xavier Marques que Tristão de Athayde estava “para aquele momento da inteligência crítica no País como Tobias Barreto para a mentalidade crítico-filosófica anterior a 1870”. João Ribeiro, porém, que praticava com bonomia uma crítica impressionista, temia pelo seu futuro, pois o achava demasiado erudito para a simples crítica semanal de rodapé.
O crítico se impôs e, como viria a declarar Mário de Andrade nos anos de 1920, era seu hábito todos os domingos à noite “comprar O Jornal e ler Tristão o que diz”. Alceu estreia em livro no ano de 1922, com o ensaio sobre Afonso Arinos, fiel à adoração que por ele nutria desde a infância. Já é um ensaio denso e novo sobre a Literatura Brasileira, mormente sobre o problema do regionalismo literário em face das ideias universais, tema que será uma constante na sua obra. Mas é na “Introdução” que dá o seu recado sobre o que entende por Crítica Literária. Desfaz-se do impressionismo inicial que seguia, dos seus mestres franceses. Filia-se ao objetivismo de Croce e inventa o neologismo ‘expressionismo crítico’. Ao invés da mera impressão subjetiva do crítico, por mais brilhante que seja, deve-se buscar a expressão objetiva do texto e do autor. Repousa essa crítica numa penetração mais profunda do espírito das obras, numa fusão preliminar da alma do crítico com a do autor, na transformação da análise objetiva em síntese expressiva, na indicação do juízo estético – nasce da eliminação dos preconceitos nas críticas parciais anteriores.
Essas críticas parciais eram: a Didática, a Acadêmica, a Histórica, a Moralista, a Verbalista, a Pedagógica, a Sociológica, a Psicológica, além do lirismo crítico e do diletantismo. Propunha-se Alceu a “concorrer um pouco para o arejamento da Crítica entre nós”. Foi modesto ou, em causa própria, foi mau profeta, não soube adivinhar o futuro, pois, como se sabe, concorreu muito para esse arejamento.
Mais do que uma simples reação a caminho da Crítica Estética, da qual foram precursores Nestor Victor e Ronald de Carvalho, inaugura-se ela com o próprio Alceu, significativamente, no ano de 1922. Procurava aplicar ao trabalho crítico “critérios propriamente literários”, libertando-o de todo e qualquer condicionamento determinista, externo ou interno. A tentativa mais forte anterior fora a Pequena História da Literatura Brasileira (1919), de Ronald – mais uma interpretação do que uma história narrativa da Literatura –, no sentido da Crítica Estética, que consiste – dirá Alceu em 1936 nesta Academia –
em olhar as obras literárias em função de sua beleza, de sua inteligência, de sua vida propriamente de obra de arte. Individualizava-se o critério crítico. Passava-se do Naturalismo ao Impressionismo ou deste ao Expressionismo – corrente ainda posterior –, para procurar nos livros o seu sentido estético.
Sem fazer parte de nenhuma igrejinha nem frequentar qualquer círculo literário, mantinha-se Tristão inteiramente livre e desembaraçado para bem julgar as obras que vinham aparecendo no Brasil de após-guerra. Os antigos ídolos dos primeiros quinze anos do século já pareciam esgotados; havia um certo marasmo por toda a parte, como que prenunciando alguma coisa de novo e de revolucionário. Os próprios simbolistas, já nos fins do século XIX, se haviam lançado agressivamente contra os parnasianos, demasiado formais e artificiais, segundo diziam. Mas a verdade é que nem bem o Simbolismo conseguia, ele próprio, firmar-se como movimento autônomo, quando já se vislumbravam as primeiras manifestações do que Tristão denominou Pré-Modernismo, na Poesia, na Ficção, nas Artes Plásticas e na Música. Valem como fontes primárias o próprio livro de Alceu, Contribuição à História do Modernismo Literário, I, O Pré-Modernismo (1939), e a sua continuação nos Estudos Literários (1966).
Embora com atraso e já esmaecidas, aqui chegavam logo no início da década de 1910 os ecos das rebeldias de Marinetti e de Paul Fort, autor de versos livres, eleito príncipe dos poetas franceses. Ecos trazidos, quando mais não seja, pela chegada de Oswald de Andrade, de volta da Europa em 1912, que conhecera o manifesto do primeiro, em Le Figaro (1909), e assistira ao coroamento barulhento do segundo. Manuel Bandeira praticava versos livres, com motivos estranhos ao Parnasianismo, desde A Cinza das Horas (1917) e principalmente em Carnaval (1919). De 1917 são Nós, de Guilherme de Almeida, e Moisés e Juca Mulato, de Menotti del Picchia, que, sob o pseudônimo de Hélios, no Correio Paulistano, será o cronista do Modernismo em São Paulo. Já em 1915, sem maior repercussão, é Dentro da Noite, de Cassiano Ricardo. A Flauta de Pã, parnasiano, é de 1917, como do mesmo ano é Há uma Gota de Sangue em cada Poema, também parnasiano, de Mário de Andrade. Na crítica de Alceu, iniciada em 1919, já aparecem os nomes de Graça Aranha, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira (o São João Batista do Modernismo), Adelino, Magalhães, Nestor Victor, entre outros. Estava-se em plena vigília modernista. Ainda não surgem os dois Andrades, Mário e Oswald, nem os nomes dos artistas plásticos, como Segall e Malfatti, que já tinham feito as suas exposições renovadoras, respectivamente, em 1913 e 1917. Di Cavalcanti, Mário e Oswald, entre outros, tomam a defesa de Malfatti contra os ataques de Monteiro Lobato. Com razão, em 1948, Lourival Gomes Machado chamaria Anita Malfatti de “a protomártir da nossa renovação plástica”.
A verdade é que a Semana de Arte Moderna, realizada nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, longe de significar o início do movimento modernista, era o seu coroamento. A crônica da Semana anda nos livros de História Literária Brasileira e em monografias especiais. Foi uma explosão, na qual se misturavam sob diferentes denominações – Futurismo, Desvairismo, Modernismo – todas as ânsias de renovação. Rompia-se com o passado imediato, como é próprio dos movimentos tidos como revolucionários, a despeito de algumas injustiças flagrantes. Os seus primeiros ímpetos eram de destruição, de abertura de caminhos, de libertação das regras tradicionais de Arte. Sabia-se somente o que não se queria, pouco importando o que viesse depois, pressentido vagamente.
Clara ou confusamente, baseava-se o movimento em três princípios fundamentais: “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora”, na síntese de Mário de Andrade. Ao grupo paulista inegavelmente vai pertencer essa etapa de ruptura, com os Andrades à frente e Menotti del Picchia, seu cronista atento, como ficou dito. Mais tarde Alceu chamará de “lúdica” à Semana, para ele “o maior acontecimento de nossa história literária no século XX”. Ludismo aí significa irreverência, inconformismo anticlássico, espontaneidade criadora:
Tudo isso representa um acesso de ludismo, de criancice, de brincadeira, de irresponsabilidade, de volta à infância e ao espírito infantil, extremamente sadio. Mesmo quando se deixou levar pela hipertrofia do primitivismo e da antropofagia. Essa infantilidade de espírito que presidiu à Semana e às suas obras efêmeras, mesmo quando sofisticada, foi precisamente o sinal de sua importância e de sua ressonância. Foi “rindo” que a Semana de 1922 entrou para a História. E nela permaneceu.
Na primeira noite, entre vaias e aplausos – aquelas mais do que estes –, Ronald recitou “Os Sapos”, de Bandeira, o maior protesto contra a redução da forma a formas. Este mesmo Ronald costumava citar, mais tarde, os versos de Mário, retratando a loucura da Semana: “[...] é louca, mas louca, pois anda no chão!”
Apesar de algumas obras, com esse espírito, dos seus corifeus, vai ser somente depois de 1924 que o movimento ganhará maior repercussão nacional, tendo como acontecimento principal a conferência de Graça nesta Academia, pregando o espírito moderno e rompendo com o tradicionalismo. Proclamava quase ao final do discurso: “Se a Academia se desvia desse movimento regenerador, se a Academia não se renova, morra a Academia.” Na expressão de Alceu, foi um gesto que fez levantar o voo dos pássaros na lagoa parada, um tiro na mata silenciosa. Entre os espíritos jovens citados pelo orador, encontravam-se os de Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Tristão de Athayde, Menotti del Picchia e Ribeiro Couto, os quais, ao longo do tempo, candidataram-se à velha Casa e a renovaram. Foi uma tarde de Hernani, de luta entre clássicos e modernos, e, em meio ao delírio, Graça saiu do recinto carregado nos ombros de Alceu e de Murilo Araújo (talvez de Augusto Frederico Schmidt).
A partir daí, de maneira espetacular, recebia o Modernismo esses dois grandes aliados – Tristão e Graça –, vindos de fora de São Paulo e com inegável prestígio literário no País. Mas, ao mesmo tempo em que se firmava, começava o movimento a subdividir-se em diferentes correntes: Primitivismo Pau-Brasil, Antropofagia, Dinamismo, Nacionalismo, Totalismo, Desvairismo, Tristão manteve-se independente de todas elas, criticado praticamente por todas, que lhe reclamavam a filiação com uma opção definitiva. Não aderiu a nenhuma, colocando-se numa posição de equilíbrio, aceitando o que havia de bom no moderno sem abandonar o que merecia ser conservado do clássico. Era contra os extremos, os desvairismos e os primitivismos, por julgá-los falsos, artificiais e meros produtos de importação. As mais duras críticas de Tristão eram dirigidas contra o Primitivismo, a Antropofagia e o Dinamismo panteísta de Graça Aranha, seu amigo e mestre de mocidade, “o traço de união com a velha geração”. Em artigo de 1925, é veemente na análise dos irracionalismos e desvairismos de certas correntes:
E começamos a observar conscienciosamente tudo que chega. Cegamente. Sem seleção. Sem critério de deterioração. [...] Não penso que o mundo moderno seja apenas esse desvario suprarrealista. De muitas formas novas que ele trouxe à tona devemos nos prover. Estamos num período capital do nosso pensamento [...] E por isso é que mantenho o meu ponto de vista. Nunca tivemos, como hoje, tanta necessidade de consciência, de lucidez, de disciplina, de predomínio da claridade sobre o obscuro. Nada disso impedirá a fordização da Poesia pelo Sr. Oswald de Andrade, nem todos os delírios do subjetivismo e da anarquia.
Por isso mesmo, por essa orientação da crítica de Alceu, é que o grupo espiritualista de A Festa reclamava o seu ingresso em suas hostes e não compreendia o seu afastamento. Mas, a despeito da veemência da análise, escreveria Alceu em 1944 que havia 25 anos que ele e Oswald conservavam plena liberdade de crítica, sem “anistias” nem “colaborações”, mas nunca como desafetos.
O ano de 1922 foi da maior significação na história da renovação nacional. Alceu indica-lhe três revoluções: a estética, com o Modernismo; a política, com o início do Tenentismo e do ciclo revolucionário; a religiosa, com a publicação das obras fundamentais de Leonel Franca e Jackson de Figueiredo. Esquece ele, no entanto, de incluir duas outras manifestações também da maior importância, que se podem subsumir naqueles títulos maiores: a criação do Partido Comunista e o seu próprio ensaio, renovando a crítica, sobre Afonso Arinos. Como aconteceu com o Romantismo – já houve quem chamasse o Modernismo de Neorromantismo –, vivia-se uma época de manifestos e programas estéticos de toda ordem. Cada grupo tinha a sua revista e a sua cartilha estética; cada criador era ao mesmo tempo um crítico. Não há negar, contudo, que Mário e Tristão foram os dois maiores críticos do Modernismo; aquele, engajado, também criador, em plena liberdade de suas pesquisas estéticas; e este, mais sereno, era, como foi em todas as etapas de sua vida, o observador participante. Getúlio Vargas, em discurso pronunciado na Universidade do Brasil, na presença do então Reitor Pedro Calmon, acabou por associar as duas primeiras revoluções, indicadas por Tristão, que se iniciavam no ano da Independência:
As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na Literatura Brasileira, que se iniciou com a Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo, foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução vitoriosa de 1930. A inquietação brasileira, fatigada do velho regime e das velhas fórmulas que a rotina transformara em lugar-comum, buscava algo de novo, mais sinceramente nosso, mais visceralmente brasileiro. Por outro lado, a evolução econômica do mundo, o progresso técnico e industrial, a ascensão do proletariado urbano como força ponderável na decisão dos fatos políticos estavam a exigir nova estruturação da sociedade e novas leis, capazes de atender com eficiência a essas necessidades. Uns e outros fatores se congregaram para forjar o movimento, que aos poucos se dilatou, criou raízes e finalmente amadureceu, determinando, de um lado, a renovação dos valores literários e artísticos, de outro lado, a renovação dos valores políticos e das próprias instituições. Na verdade, o movimento modernista, nas Letras e nas Artes Brasileiras, foi um impulso revolucionário que cresceu e extravasou, como o foi o movimento político causador da Revolução de 1930.
E ninguém mais do que Alceu, como crítico, acompanhou e registrou todas as etapas desses movimentos. Em carta a ele dirigida, de 19 de junho de 1928, dizia-lhe Mário: “Respeito a Crítica e considero você especialmente o melhor crítico que possuímos hoje.” Em 1933, escrevia a seu respeito Alcântara Machado, com quem se havia desentendido mais de uma vez: “Reabilitador da Crítica entre nós, Tristão de Athayde à autoridade de sua esplêndida cultura juntou a sua probidade inatacável... Não formando embora na vanguarda do chamado Modernismo, tomou partido por ele. Lia tudo. Procurava compreender tudo. Não ficava na superfície, mas descia bem fundo nas intenções e nas ideias.” Neste sentido, exatamente por não ser um modernista engajado é que Alceu foi o crítico do Modernismo. É o que, de certa forma, vai dizer Cassiano Ricardo bem mais tarde em Carta mais ou menos poema: “Mestre Alceu, a tua crítica feita de amor, de justiça, foi nossa luz em 1922. – Crítica criativa além de sábia. – E nós a seguimos depois, como se bebêssemos lições de beleza, em fonte pura.”
Ninguém como ele teve o privilégio, pela vida longa e pela capacidade de trabalho, de acompanhar todas as fases do movimento. Percebeu-o aos primeiros sinais e lhe deu forças antes de 1922; conviveu com ele, mantendo-se livre para melhor julgá-lo em sua ascensão e apogeu; demarcou-lhe o ano do esgotamento, simbolicamente, com a morte de Mário de Andrade em 1945. Começava o Pós-Modernismo. Em todos esses períodos, chegando até 1983, houve mais do que “meio século de presença literária” (título do livro de 1969) de Alceu. A sua obra crítica e ensaística é um verdadeiro inventário do que se fez no campo cultural deste País, com raros intervalos de ausência.
Ninguém o disse melhor do que Austregésilo de Athayde, em conferência feita nesta Academia em 1955:
Se desaparecesse o enorme monumento da Literatura Modernista e nada mais se soubesse da Poesia e do Romance Modernistas, e da catástrofe sobrerrestasse a obra de Tristão de Athayde, seria possível sem esforço refazer o mundo perdido, na essência de sua estética, nas suas repercussões sobre a vida brasileira, no que teve de revolucionário e de construtivo, de verdadeiro e de falso, de efêmero e de perdurável.
8. Mas em Tristão havia outra face oculta de sua vida espiritual. Em verdade, nunca fora agnóstico ou ateu, jamais blasfemara contra Deus ou a Igreja. Sua natureza mística e bondosa guardava a fé da infância, esmaecida só, não apagada, à espera de um sopro que a reacendesse. E esse sopro começou pelos espetáculos da guerra, da revolução e da crise, que o despertaram da disponibilidade em que havia vivido. Faltava-lhe uma causa que lhe justificasse a vida, como escreveu numerosas vezes. Quando da sua conversão ou reconversão – ou deoversão, na terminologia do Padre Penido –, em agosto de 1928, surpreendendo alguns amigos seus, dizia Alcântara Machado que esperava a sua opção, o seu engajamento, sim, mas a favor do Socialismo. Por muito tempo, hesitou, sem dúvida, mas apresentado a Jackson de Figueiredo em 1918 por Afrânio Peixoto, desde o ano seguinte, iniciou com ele uma longa correspondência, que se intensificou e se transformou em assuntos filosóficos e religiosos a partir de 1922, num crescendo de espiritualidade e transcendência. Eram duas almas que se abriam num debate em torno de Deus e da fé, e nele se assiste a um exemplo didático de catequese, como numa pescaria na qual durante muito tempo não se sabe quem vai levar a melhor, se o pescador ou o peixe. Nesta, Jackson, o pescador de almas, conseguiu a sua melhor e maior presa, ele que ajudaria muitos outros à conversão. Nos escritos de Alceu nos anos de 1920 – como o ensaio sobre São Francisco de Assis, de 1926 –, já se notavam sinais de mudança próxima. Finalmente, os argumentos de Jackson e as conversações com o padre Leonel Franca trouxeram-no de volta à Igreja, na confissão e comunhão. A 15 de agosto de 1928, recebe a Eucaristia da mão do padre Franca. Na verdade, como na conhecida frase de Newman, quem procura Deus já O encontrou. Daí haver escrito Alceu que “só Deus converte”. Joaquim Nabuco, outro grande convertido, já deixara escrito que “a fé é um pássaro que poisa no alto da folhagem, e canta nas horas em que Deus escuta”. E essa hora chegou para Alceu.
Com a morte inesperada de Jackson a 4 de novembro, seu nome é logo lembrado para substituir o seu amigo à frente do Centro D. Vital e da Revista A Ordem, o que equivale a dizer à frente do laicato católico. O convite é feito por D. Sebastião Leme, com quem se identifica sem reservas e com ele empreende a luta pela catolicização da sociedade brasileira. Com o Cardeal e sob suas ordens funda a Ação Católica e a Liga Eleitoral Católica, já na década de 1930, e entrega-se de corpo e alma à luta do apostolado em defesa da Igreja. No tremendo emaranhado ideológico em que viviam o mundo e o Brasil, pelos acenos de espiritualidade e de religiosidade dados pela direita – que defendia a Igreja e nela se apoiava, invocando-a a cada instante –, nessa direção caminhou Alceu com o ardor e o desassombro do cristão-novo, conhecidos de todo o País. Revestiu-se das ideias, dos ideais e da própria personalidade de Jackson, que não eram as suas na maneira de ser. Recolhendo-lhe o legado como recém-convertido que era, investe contra tudo que lhe parecesse contrário à fé havia pouco abraçada. A morte de Jackson, tão próxima da sua conversão, a gratidão que lhe devia, tudo o leva a querer ser o seu substituto total, na pregação e no temperamento. Contudo, ao assumir a presidência do Centro D. Vital, em novembro de 1928, dirige-se aos companheiros e dá como condição de aceitação do encargo “a que se tirasse ao Centro até mesmo as aparências de caráter político militante que lhe atribuem”. Sua atividade deveria ser unicamente cultural e apostolar, como irá fazer logo depois com as reuniões, conferências e criação de órgãos de estudo.
Não pôde, porém, cumprir os propósitos que almejava e, embora sem fazer do Centro um núcleo propriamente político, viu-se envolvido nos problemas políticos, sociais e religiosos de fins de 1920 e principalmente de depois de 1930, quando todos procuravam uma saída viável no caldeirão ideológico que era a sociedade brasileira. Colaborou em jornais, deu cursos, fez conferências, submeteu-se a concursos universitários, sempre com o mesmo espírito ardente de levar a fé aos incrédulos e de impedir a debandada de seus liderados. Se chefiava, era também chefiado. Não podia ficar no meio do caminho. Nessa fase, que vai até os primórdios da guerra de 1939, está bem à direita no terreno temporal. Vive com intensidade a sua fé e combate com ardor qualquer proposta que lhe pareça contrária. Os adversários também não o poupavam, bastando lembrar o livro de Carlos Süssekind de Mendonça, de 1934, Catolicismo, Partido Político Estrangeiro, desenvolvendo tese apresentada ao Congresso Regional da Liberdade de Consciência, realizado no Rio no ano anterior.
Combate os tenentes e o tenentismo, o manifesto da Escola Nova, prega o ensino religioso nas escolas, o casamento indissolúvel, a organização corporativa da sociedade, mas com autonomia e pluralidade sindicais. No campo cultural, propriamente dito, denuncia os exageros da liberdade de cátedra, pelo mau uso que dele podem fazer os inimigos da Igreja. No campo religioso, aponta no Protestantismo, no Judaísmo, no Espiritismo e na Maçonaria os inimigos a vencer. Desse período são os seus livros que tanto assustaram os seus amigos modernistas da antevéspera. Já eles haviam sido avisados pela carta, Adeus à Disponibilidade, a Sérgio Buarque de Holanda. Mas, em verdade, a carta não prometia toda a linha que haveria de ser seguida no futuro.
Contra a sua índole amável e tolerante, viveu Tristão os dez anos mais polêmicos e radicais da sua existência, como se fora Jackson redivivo. Mas, diga-se a bem da verdade: fazia-o em nome da fé, em defesa da Igreja. Pregava uma revolução espiritual, uma mudança de costumes e de atitudes religiosas, merecendo mais a sua censura os católicos acomodados e displicentes do que os irreligiosos declarados. Com o advento do Estado Novo, em novembro de 1937, inquieta-se com os prenúncios de autoritarismo e adverte:
Com a atual organização política, desaparece a função eleitoral da LEC, mas impõe-se o prosseguimento de uma atividade “cívica e social” da Ação Católica, para que o chamado Estado Novo, longe de ser um Estado anticristão, incorpore em suas leis os princípios gerais do Cristianismo, para o bem comum da sociedade brasileira. À Ação Católica, porém, caberá sempre manter-se em sua posição independente e extrapolítica, e o Estado saberá compreender que o Brasil só tem a ganhar com a união dos católicos em tudo o que interessar à penetração, na sociedade, das doutrinas sociais da Igreja, que são as do bom senso, da reta razão, da justiça social e da tradição moral mais pura da humanidade e de nossa Pátria. E, portanto, só podem concorrer para o bem comum, que deve ser o interesse supremo dos dirigentes do Estado (Elementos de Ação Católica, Rio, 1938, p. 242).
Contudo, dentro dessa filosofia, nunca se filiou ou se enquadrou a qualquer partido político. Nem no Integralismo, ao qual pertenceram grandes espíritos da Cultura e do Pensamento brasileiros. Sentia-se em grande afinidade com ele, pelo seu programa e pela sua resistência às correntes de esquerda, e quando ainda não se denunciavam nele as suas inequívocas tendências totalitárias. O primeiro bem da Ação Católica, dizia, é a sua “liberdade” e não este ou aquele privilégio. Junto com a Hierarquia, devem-se a Tristão os maiores êxitos religiosos da primeira década pós-revolucionária. Marcou-se, deixou-se marcar, mas traria uma só marca, a de Deus, que nunca mais o abandonaria até o momento final. Havia optado pela autoridade, mas a da Igreja, querendo-a cada vez mais alta e respeitada, nunca a do Estado, e jamais, ainda nessa fase, se esquecera dos propósitos de reforma social, de combate à miséria, de mudanças na sociedade, não deixando nunca de denunciar os abusos e as injustiças do regime capitalista.
No plano temporal, a mudança não fora só de Alceu, mas da própria Igreja. A partir da guerra, na linha das Encíclicas de Leão XIII (1891) e Pio XI (1931), cresceram as manifestações sociais, políticas e econômicas da Igreja, no sentido de maior abertura evangélica, até chegar ao ecumenismo e ao Vaticano II. Cada vez mais coincidiam as doutrinas mais liberais de Tristão com as que pregavam os novos documentos papais, vindo a culminar em João XXIII, a quem dedicou um livro da maior veneração. Contudo, já era de Pio XI a Ação Católica, fora e acima dos Partidos, que dera a todo o orbe católico a indicação do verdadeiro caminho a seguir na tremenda crise de perplexidade que agitava o mundo desde o fim da guerra de 1914. A Igreja recusava a sua incorporação a um dos extremos do anfiteatro político. Não se considerava nem à esquerda, nem à direita. Colocava-se no seu verdadeiro e único lugar possível – ‘no centro e acima’ de todas as divisões acidentais de ordem política. (T. de A., O Cardeal Leme, Rio, 1943, p. 200).
E esta, segundo Alceu (1973), foi a posição do Cardeal, que, “se vivo fosse com que fervor veria as suas ideias amplamente confirmadas e ampliadas pelo ecumenismo de João XXIII e do Concílio!”
O que pôde ocorrer com D. Sebastião Leme, por haver falecido em 1942, aconteceu com o autor da frase. Manteve-se firme na sua fé e nos serviços da Igreja, mas politicamente caminhou mais de Jackson para D. Sebastião Leme, de cujas personalidades escreve belas páginas de confronto. Durante toda a vida cobraram de Alceu o que acoimavam de contradição, como se ele fosse o único homem no mundo a mudar de posição. E, vede bem, posição meramente existencial, porque, no plano ontológico, manteve-se firme e coerente na mesma fé, nas mesmas crenças, na mesma Igreja. Depois de 1928, não mudara mais, espiritualmente. Ninguém mais do que o próprio Alceu tinha consciência da mudança, mas, ao contrário dos seus acusadores, lamentava justamente o tempo em que serviu mais à Autoridade e não à Liberdade. Com esta, passado “o espírito do dever para com o morto” (Jackson), deu-se “dentro da sua própria posição religiosa um processo de autonomia crescente”. Foi sobretudo com Maritain, Chesterton e Bernanos, e depois da leitura de um artigo do Padre Congar, francês, Dieu Est-il à Droite? que se convenceu de que a Igreja não está nem à direita, nem à esquerda, mas acima e além das duas, para ser “uma defesa da liberdade e da justiça”, onde quer que estejam ameaçadas. Já em 1938, colocava a Igreja fora dos extremos totalitaristas. Valem duas passagens, com a mesma pregação de sua fase final:
O que dá à ação social o seu sentido católico, é que ela é toda informada pelo espírito de verdadeira caridade. [...] Ação Católica é sacrifício, é mortificação, é renúncia. É esforço com o espírito de obra comum, sem vaidades, sem suscetibilidades, sem rivalidades, sem todo esse jogo mesquinho de paixões que nem ao menos tem a grandeza de ser violentas. Para fazer Ação Católica é preciso ter personalidade.
Alceu mudou. Em 67 anos de atividade intelectual e de vida pública, somente durante dez anos esteve numa posição que logo reconheceu não ser a sua, a do seu temperamento, a da sua formação. Caminhou para um “catolicismo aberto, democrático e reformista”. E concluiu nas Memórias: “Eis por que, nessa evolução que em mim se operou, terminei, de certo modo, ‘voltando às minhas ideias políticas liberais, anteriores à minha conversão’.” E, noutro passo:
Só quando a minha conversão ou reversão se impregnou em meu próprio espírito é que pude reatar o meu eu de 1938 com o meu eu anterior a 1914. Voltei, portanto, a reatar os dois extremos da corrente de minha vida. Com a assimilação de minha conversão, quando deixei de ser cristão-novo para ser cristão-velho, as minhas raízes tradicionais, as minhas raízes da infância e da adolescência haviam se acomodado em mim.
Em sentido inverso, a mesma coisa ocorrera com Bernardo Pereira de Vasconcelos, que caminhara da liberdade para a autoridade, do progresso para o regresso, e, quando acusado, defendia-se na Câmara em 1837:
Chamarei homem de caráter aquele que rende culto aos princípios, só por amor dos princípios; e que, por consequência, quando a observação, o estudo, a experiência mostram que esses princípios devem ser modificados, que alguns deles devem ser renunciados em obséquio à verdade, não hesita em sacrificar o erro.
(Cf. O. Tarquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil, Rio, 1957, v. 5, p. 189). Afinal, como no verso sempre repetido de Auguste Marseille Barthélemy – l’homme absurde est celui qui ne change jamais...
Escrevendo sobre Rui, quando do centenário de nascimento, Alceu como que falava de si próprio, pois ambos foram acusados de haver mudado. A glória de Rui – diz – consiste precisamente em não ter sido um fanático do antes quebrar que torcer. E completa:
Pululam hoje em dia os salvadores desse tipo, que se gabam de jamais ter variado uma linha em sua conduta política. Pululam os que pregam, para nossa salvação pública, a camisa de força, o regime da disciplina a todo transe. Venceu em quase toda linha, no século XX, a política do crê ou morre, do tudo ou nada, do homem subordinado à rigidez e à forma das instituições.
Pouco antes, já havia deixado manifestada esta profissão de fé democrática e antiautoritária, bem anterior aos acontecimentos brasileiros da década de 1960:
A Política moderna é essencialmente institucional e não humana. O que ela prega é a ordem, a disciplina, a obediência, a autoridade, o dirigismo. O que ela exalta é o homem de mão de ferro. O que ela procura é a uniformidade a todo transe, a segurança e a riqueza mesmo que seja à custa da liberdade e da justiça. A política moderna é desumana.
9. Em todas as etapas da sua vida, ainda no período em que se havia, com a Igreja, colocado à direita, nunca deixou Alceu de pregar a reforma social, no propósito de uma sociedade mais justa e mais humana. Em meio às aparentes contradições ideológicas, manteve-se sempre fiel a essa pregação de reforma social, diante do espetáculo da miséria e da má distribuição dos bens da vida. Sempre lhe desagradaram o espírito burguês, o culto do bezerro de ouro, a injusta desigualdade social baseada na fortuna e não no mérito nem nas virtudes. Contra o individualismo e o egoísmo, queria por meios pacíficos uma sociedade melhor, mais justa, mais humana, com a manutenção da propriedade, inerente à própria personalidade, mas de livre acesso a todos. Era preciso que a lei moral informasse a vida política e familiar. Daí o seu humanismo antiburguês, anticapitalista, antimaterialista, igualmente afastado de qualquer forma de Estado totalitário de esquerda ou de direita, que anulasse o indivíduo, cooptando-o e absorvendo-o. Contrário à violência, deseja essa mudança das relações entre os homens por uma revolução espiritual, que englobe a econômica e a social.
Nesses propósitos reformistas, reside a coerência da pregação de Alceu, sem esquerda nem direita, numa constante de sempre. Ele próprio o reconhecerá em palavras ardentes no prefácio de O Problema do Trabalho, datado de 1946: “Uma de minhas filhas, que teve o trabalho de datilografar as páginas deste ensaio, delas fez uma crítica que me parece inteiramente justa: ‘Papai, por que você repete todo o tempo a mesma coisa?’”
Escrito de um só jato, em quinze dias, não aspira este estudo nem à beleza literária, nem à concisão científica. Será quando muito um grito de desabafo. São as mesmas coisas que voltam todo o tempo. São os mesmos erros que se condenam a cada passo. São os mesmos remédios que tornam sem cessar. Não há nele novidade alguma. Não há preocupação de outra ordem que não seja ser fiel a um pensamento profundo, a um sentimento irresistível que vem do horizonte de muitos anos já ultrapassados. A obsessão da miséria. A visão das favelas. O contato diário com as mãos calosas, as faces macilentas, os pés descalços, as roupas em pedaços, as crianças desnutridas, as multidões madrugadoras, as palhoças enegrecidas, os trens superlotados dos subúrbios, a comida incomível das marmitas, toda a sombra trágica que acompanha, no Rio de nossos dias, o espetáculo de luxo e de grandeza dos arranha-céus que se multiplicam, dos automóveis suntuosos que enchem as ruas, dos teatros e das praias, das joias e das peles, dos cassinos e dos palácios, de tudo o que o luxo cosmopolita ou nacionalista exibe nas avenidas suntuosas da cidade ou nas ruas tranquilas dos bairros residenciais favorecidos. (O grifo não é do autor).
Realmente, essa “obsessão da miséria” vinha desde os seus primeiros escritos de 1916, quando pregava a distribuição da riqueza. No primeiro período da sua vida, mas já às vésperas da conversão, basta destacar justamente o seu escrito sobre o distributismo (forma usada por Alceu, aqui respeitada), diretamente influenciado por Chesterton. Sempre participante, aventura-se ao tema, propondo soluções econômicas e sociais, porque não quer ser “o odioso homem que olha apenas”. O distributismo parte do homem. E esclarece:
Precisamos atingir uma organização social que não mutile o pleno desenvolvimento da personalidade humana, que permita à liberdade individual uma expansão justa [...] A sociedade contemporânea chegou, pela acumulação de riqueza em um número cada vez mais restrito de mãos, à supressão daquela liberdade natural do homem e ao obstáculo à expansão normal da personalidade [...] O distributismo, como seu nome o indica, visa à distribuição do que se cristalizou com o tempo, à disseminação das riquezas que se concentraram. Pode-se dizer, portanto, que o distributismo vem restabelecer a propriedade. A propriedade, não no sentido romano, mas no sentido humano. A propriedade limitada e justa. A propriedade que é uma expansão da personalidade. A propriedade que é o núcleo econômico da família. A propriedade fornece o único fundamento para a liberdade. (Estudos, 2º série, 1928).
Ao receber a conferência sobre o distributismo, dizia-lhe Jackson, em carta de 22 de julho de 1927, que ele lhe havia dado “as melhores alegrias dos últimos tempos”. Pois bem, quatro anos mais tarde, já depois da conversão, em 1931, confirma Tristão a sua pregação distributista como solução racional, nacional e cristã. A propriedade, os bens e os serviços devem ser disseminados ou prestados a todas as camadas da sociedade e não somente a um pequeno número de privilegiados. “O distributismo – conclui – baseia-se na disseminação da propriedade” (Preparação à Sociologia).
No ano anterior, com Esboço de uma Introdução à Economia Moderna – Tese de concurso para a cátedra de Sociologia do Instituto de Educação, que não chegou a defender devido ao irrompimento da revolução de outubro –, Tristão estuda a gênese do ‘proletismo’ (termo seu) e o aponta como um produto negativo do Capitalismo, citando em seu apoio o livro do pensador católico Goetz Briefs, O Proletariado Industrial, aparecido na Alemanha em 1926: “Essencial para o destino de toda vida proletária é o caráter de mercadoria que o trabalho assume, a subordinação individual do trabalho e o fato que esse trabalhador é livre mas sem propriedade e por isso condenado, permanente e hereditariamente, ao trabalho.” E depois, com palavras suas:
A mão de obra passa a figurar nos cálculos e balanços, como um elemento equiparado às matérias-primas. O trabalho desumaniza-se radicalmente. Materializa-se [...] De modo que o resultado foi suprimir as servidões jurídicas, os laços jurídicos aparentes, e deixar prevalecer as servidões profundas, os laços econômicos invisíveis que fazem parte do proletariado moderno, em sua maioria, uma nova forma de escravidão, a escravidão oculta, a escravidão econômica de homens politicamente livres (grifo do autor).
Esta é uma das concepções de Alceu que permanecerão em sua filosofia social. Em livro da mesma época, de 1932, já em plena ação social católica, o seu programa ainda é mais nítido e concreto. Mantém essa denúncia da contradição da sociedade burguesa, que dá liberdade política à classe operária, mas a priva da propriedade, mantendo-a num estado de subordinação econômica real, afastada dos postos de orientação e direção política e econômica. E completa:
A situação social do mundo contemporâneo era e ainda é a de uma ordem social existente na maioria das nações em que uma classe, a burguesia, domina geralmente as demais, absorvendo a estabilidade social para si [...] De modo que o resultado espantoso a que chegou é o de uma humanidade que morre de miséria no meio de uma hipertrofia de riquezas.
Entre os remédios para a possível correção desses males, indica: a intervenção do Estado, a legislação do trabalho, a regulamentação dos preços, a limitação da propriedade privada em benefício da coletividade, o auxílio às pequenas propriedades, a nacionalização de certos serviços públicos, a participação dos grupos econômicos e profissionais no Estado, o restabelecimento das relações mais íntimas entre o Estado e a Igreja (Problema da Burguesia).
Nos anos de 1933 e 1934, procurando influenciar a Assembleia Constituinte que então se reunia, escreve Alceu uma série de artigos indicando os princípios que devem constar da nova Carta. Organizados na Liga Eleitoral Católica, conseguem os católicos grandes conquistas legislativas no novo texto, como nunca as haviam obtido ao longo da República. Alceu foi o chefe da campanha, comparecendo quase diariamente ao recinto da Assembleia. Em defesa da liberdade e da autonomia sindicais, em favor da pluralidade contra a unidade sindical, polemiza com Oliveira Viana, consultor jurídico do Ministério do Trabalho e mentor do que se vinha fazendo na legislação do trabalho. No seu programa de reivindicações, encontra-se o que de mais avançado existia à época em matéria social. Basta a transcrição do primeiro tópico:
A economia é a organização metódica dos bens materiais de um povo para a satisfação das necessidades humanas. A economia individualista também faliu porque se baseou na livre concorrência e no lucro ilimitado, em vez de se basear na organização racional e na satisfação das necessidades. A economia, portanto, existe para o serviço do ser humano (Indicações Políticas).
No seu primeiro grande livro de após-guerra, O Problema do Trabalho, são retomados e aperfeiçoados os seus pontos de vista sempre sustentados. Mas aí vai além e defende o primado do trabalho, apontando para uma nova civilização que se inicia:
Estou convicto de que a humanidade vai entrar em uma era social completamente diversa daquelas por que tem passado em todas as civilizações. E o elemento diferencial e específico dessa nova era é o trabalho humano. Desde o século XVIII que Mirabeau o dizia. Só hoje começa a ser uma realidade efetiva. Estamos no limiar da era do trabalho. [...] Vamos, pela primeira vez na história da humanidade, tentar uma grande civilização humana, em que o trabalho manual deixe de ser o privilégio negativo de uma classe de parias para ser a medida das grandes realizações sociais.
Isto é de 1946. Mas fiel, como sempre, à sua pregação de reforma social não revolucionária, sem violência nem intolerância, viaja Alceu para Montevidéu, a fim de participar do Movimento que leva o nome daquela cidade para fundar a organização da Democracia Cristã na América Latina. Estávamos em maio de 1947, e a revista A Ordem assim publicou os seus objetivos:
1. O Movimento se funda sobre a doutrina social cristã. 2. O movimento realizará os princípios do Humanismo Integral. 3. O movimento não terá caráter confessional, dele podendo participar todos os que aceitam estes princípios. 4. O movimento procura a redenção do proletariado, pela libertação crescente dos trabalhadores das cidades e dos campos e seu acesso aos direitos e responsabilidades do poder político, econômico e cultural. 5. O movimento afirma como indispensável ao regime de convivência entre os homens a volta total ao império da ética e do direito e sua expressão institucional na lei. Repele, portanto, toda ditadura, no terreno político, econômico e cultural, bem como toda hipertrofia das funções do Estado. 6. O movimento repele e combate toda promulgação do Fascismo, sob qualquer forma ou dominação com que se apresente e aqui designamos por Neofascismo. 7. O movimento repele e combate o Comunismo, bem como a todo anticomunismo que encubra qualquer reação antidemocrática. 8. O movimento se empenha pela superação do Capitalismo, individualista ou estatal, por meio do Humanismo Econômico.
9. Não poderia Alceu ter sido mais coerente em suas ideias de reforma econômica da sociedade contemporânea; de 1916 a 1983 combateu a miséria, a desigualdade econômica, a subordinação da classe operária à classe burguesa, a concentração de riquezas na mão de minorias ou do Estado, o controle sindical pelo governo; pregou sempre o acesso de todos à propriedade privada, um nível de vida digno e decente para todos, o direito ao trabalho honesto e remunerado, a assistência e previdência na prevenção e reparação dos riscos sociais da existência. Tudo isso pode ser resumido nas palavras constantes do Movimento de Montevidéu: a redenção do proletariado.
10. Ao contrário do que se afirma, não são minoritárias, no conjunto das obras de Alceu, as que dedicou a temas literários ou assim considerados na sua classificação geral; somam mais da metade de sua imensa produção. É bem verdade que são raros os seus critérios, reunidos em livro, puramente literários ou estéticos, já que a sua crítica ou o seu ensaísmo, em qualquer época da sua vida, pelo universalismo cultural, raramente se limitam a um campo só de atividade intelectual. A Crítica sempre foi de ideias, em qualquer das fases em que a praticou. Num mesmo livro, como na série dos Estudos, Primeiros Estudos, Estudos Literários, O Espírito e o Mundo, não exerce somente a crítica sobre o texto literário, há de tudo que diga respeito às chamadas Ciências Humanas, além de Literatura propriamente dita. Aí são versados temas filosóficos, sociais, econômicos, históricos, pedagógicos, políticos e religiosos. A obra de Alceu, e ele próprio era o primeiro a reconhecer, surgiu antes sob a forma de artigos, de aulas ou de conferências, para mais tarde ser editada, nem sempre com critério sistemático, e, sim, meramente cronológico, versando matérias heterogêneas. Não raro havia coerência temática nessa reunião de escritos, como acontece com Adeus à Disponibilidade e outros Adeuses e com Companheiros de Viagem, o mais poético e melancólico dos seus livros, feito todo de saudade sem ser saudosista.
Homem de meditação filosófica, não foram muitas as oportunidades que teve de estudos propriamente monográficos ou sistemáticos de Filosofia pura ou acadêmica, a exemplo do ensaio que escreveu sobre Leibniz em 1946, quando do tricentenário de nascimento do filósofo. Dedicou ensaios especiais também a Bergson e Maritain, ambos com grande influência em sua formação espiritual. Deste, confessava-se em 1932 “o último dos discípulos”. Chegou a iniciar pela imprensa, em 1961, uma série de artigos de História da Filosofia, não editados em livros. “Mitos do nosso tempo” (1943), “O existencialismo” (1951), O Existencialismo e outros Mitos do Nosso Tempo (1956), Meditação sobre o Mundo Interior (1954) talvez sejam as suas obras de cunho filosófico mais pronunciado, em sentido próprio, porque a sua capacidade abstrativa e conceitual nunca deixou de estar presente em tudo que escreveu.
Ainda na primeira fase da sua vida intelectual, foi-lhe de grande valia a doutrina da razão vital de Ortega y Gasset, que lhe completava o intuicionismo bergsoniano. Libertava-o do biologismo materialista de Spencer, aprendido com Sílvio Romero, ao mesmo tempo em que lhe proporcionava fortes argumentos contra o idealismo racionalista cartesiano ou kantiano que desde o século XVII domina o pensamento moderno. Tudo isso veio completar-se com a conversão católica, lenta, newmaniana, levando-o ao estudo, mais aprofundado e sistemático, da filosofia tomista, estágio a que não chegara Jackson de Figueiredo, mais inclinado por sua própria natureza ao jansenismo pascaliano. Voltou-se então, demoradamente, não só para os textos originais de Santo Tomás de Aquino, como igualmente para as suas grandes exegeses contemporâneas. Além de Maritain, muito o ajudaram o tratado aristotélico-tomista do beneditino Josepho Gredt e os comentários de Sertillanges e Garrigou Lagrange. Sem ortodoxia exagerada, passava o tomismo a ser a sua filosofia especulativa e da vida, a sua teoria do conhecimento, a sua ética, a sua metafísica e a sua própria teologia, por assim dizer. Se não lhe chegava a dar uma tranquilidade definitiva diante do mistério da existência, proporcionava-lhe, em última instância, “o pensamento filosófico que estaria mais próximo da mensagem cristã” (1973). Escrevia-lhe Jackson a 28 de agosto de 1927, somente um ano antes da sua conversão: “Sua carta tem, na verdade, uma frase terrível, que ficou vibrando em mim como um dardo de fogo: o homem é uma experiência que Deus abandonou.” Com a fé e com o tomismo, Alceu afinal encontrou uma causa, encontrou a paz.
11. No plano propriamente literário, já agora deixava a sua crítica de se basear numa metafísica implícita, difusa ou não confessada, para se assentar numa metafísica explícita, católica. Como sabeis, foi esta a acusação que lhe endereçou Mário de Andrade na Revista Nova, em 1931, enxergando uma irremediável “contradição entre a Arte e a Crítica Sectária. [...] Perdemos um excelente crítico literário, apesar dos defeitos, excelente: ganhamos um pensador católico. Que estamos de parabéns é minha opinião”. Em 1934, dizia Rodrigo Melo Franco de Andrade, seu velho amigo, que era preciso anunciar no jornal: “Precisa-se de um crítico.”
Para Alceu, no entanto, ambos estavam enganados, como todos os que lhe repetirão a censura. Com a conversão, esclarece, ampliou-se a sua visão da obra literária, na incessante busca da verdade total. Nunca mais, pelo resto da vida, deixará Tristão de defender-se e responder a esse respeito, em escritos diversos, de épocas diferentes. O valor estético não se confunde com o juízo moral nem com a fé religiosa. A Arte não pode ser “transformada em simples instrumento de apologética e moralização”. Mas não há negar que “a Arte não se separa, como nenhuma das demais atividades humanas, de uma filosofia geral da existência”. Com Maritain, em Art et Scolastique, Alceu vê no artista um continuador da obra de Deus; toda arte é fabricadora e criadora. O artista é “um sócio de Deus”, que, usando a matéria criada, sobre ela torna a criar, por assim dizer, em segundo grau.
O crítico, como o artista, é de igual modo um criador, cria também alguma coisa de novo que não se encontrava anteriormente nem na Natureza nem na obra sujeita a seu exame. Se não lhe basta a sua simples impressão subjetiva, com abandono da análise do texto na sua literariedade, também não se deve esgotar nesta todo o seu trabalho. De maneira global e total, constrói o crítico uma síntese compreensiva da obra, com empatia, com amor, levando em conta não só o texto propriamente dito, em sua forma ou linguagem, como igualmente o seu conteúdo, implicando a personalidade do autor e as demais circunstâncias da sua criação. A esse tipo de crítica, construtiva, denomina Alceu Crítica Humanista, de caráter estético, sem dúvida, mas não chegando nunca a um objetivismo científico de rigorosa e exaustiva análise do texto na sua literariedade e fazendo dessa tarefa, não raro estatística, todo o propósito da Crítica. Deve-se, assim, entender por Crítica Literária “a apreciação criadora da expressão verbal”. Supõe-se nessa apreciação uma dualidade essencial: o objeto, a obra a julgar; e o sujeito, de quem parte o juízo de valor, o julgamento. E ela é tanto mais livre quanto mais fiel ao objeto, daí ser a verdade o fim último do crítico. Por isso, a despeito da ambiguidade do termo, fixou-se Alceu na expressão Humanismo Crítico,
em que o valor das obras se mede não por sua obediência às regras transmitidas ou a uma perfeição verbal estereotipada, mas como expressão de uma convicção pessoal, em que o valor da pessoa humana é primacial. E portanto uma visão da Literatura como expressão total da vida, em todos os seus aspectos, natural e sobrenatural, passado, presente e futuro, com uma sede de totalidade limitada apenas pela natureza da pessoa humana e por um humanismo teocêntrico que, longe de o limitar, é realmente a sua integração (Meio Século de Presença Literária, 1969, p. 176 e seg., 210).
Jamais chegou Alceu ao formalismo crítico, sob qualquer de suas modalidades, não por incapacidade – pois lhe bastava, como o fizeram os seus epígonos, iniciar-se em suas técnicas –, mas por absoluta incompatibilidade pessoal de concepção do mundo e da vida. Todo o seu ser, e não só a sua inteligência, sentiu-se sempre incompatível com a Crítica Formalista, para Alceu mera anatomia, descritiva e dissecante, do texto. O estilo, a forma, a linguagem não podem bastar a si mesmos como síntese e finalidade da obra literária; a liberdade não pode ser substituída pela disciplina, o critério artístico pelo rigor científico. Em verdade, diz Alceu,
jamais consegue o crítico penetrar a essência da criação, ora por excesso de generalização, ora por excesso de análise. A Crítica anatômica dos nossos dias, que disseca os poemas como os alunos de Anatomia Descritiva dissecam cadáveres, é tão injusta para com os poetas e tão mortífera para com a Poesia como os juízos apressados em adjetivos sonoros. A solidão dos homens é trágica e impenetrável, como o mistério das obras (p. 137).
Superado está o Impressionismo, mas a verdade é que nenhuma técnica e nenhum método, por mais pretensamente científicos que sejam, conseguem substituir o bom gosto literário. Afinal de contas, é o crítico que “torna fecundos os métodos de que se serve... O que vale é o modo de os tratar. O crítico faz a crítica...”. E tanto peca o Humanismo, que se perde no estudo das influências e da elaboração da obra como o Formalismo mal compreendido, que se converte num literalismo seco e infecundo.
Alceu não chegou a escrever a história geral e sistemática da Literatura Brasileira, como, por exemplo, dele a reclamava Manuel Bandeira em 1960: “Amoroso Lima ainda não nos deu a História da Literatura Brasileira que nos deve e de que é penhor seguro de excelência a série dos Estudos.” Dois anos antes, porém, observava Alceu que Araripe Júnior, “o maior crítico literário que já tivemos até hoje”, não chegou a escrever, como seus dois companheiros de geração, uma história da Literatura Brasileira, como Capistrano de Abreu não chegou também a escrever uma história do Brasil, “apesar de ser, no consenso geral, o maior historiador que já tivemos”. Talvez ou certamente sem o pretender, escrevia-se aqui a defesa do autor da Introdução à Literatura Brasileira e do Quadro Sintético da Literatura Brasileira, ambos de 1956, que, por si sós, pagam grande parte do débito reclamado por Manuel Bandeira. A outra parte do débito foi paga pelos concursos universitários que Alceu prestou na década de 1940, com os quais se inauguravam, em nível superior, o ensino e o estudo sistemáticos da Literatura Brasileira.
A crítica escrita prosseguiu na crítica oral. Aos leitores invisíveis e remotos sucederam os alunos presentes e colaboradores. Ao comentário do livro do dia, substituiu-se a apreciação dos que sobreviveram à gastura do tempo e resistiram ao juízo da posteridade.
São palavras de Alceu na Mensagem ao I Congresso de Crítica e História Literária, reunido em Recife no ano de 1960.
12. Se para fazer ação Católica é preciso ter personalidade, essa Alceu a teve – com marca nítida, inconfundível – durante toda a vida. Dizia em 1973: “Só escrevo o que sinto ou porque acho que devo escrever.” Sempre fez o que lhe pareceu justo e correto no fundo da sua consciência, no silêncio e na solidão, em comunhão com Deus. Às influências de Maritain, Chesterton e Bernanos, vieram somar-se as de Thomas Merton, Fulton Sheen e Padre Lebret e, no plano filosófico, as de Teilhard de Chardin, Emmanuel Mounier e Gabriel Marcel. Filosoficamente, desde antes de 1928, sempre se revelou adverso ao racionalismo, ao intelectualismo e ao individualismo pós-cartesianos. O realismo do pensamento tomista em teoria do conhecimento, a sua concepção do direito natural, o seu conceito de pessoa distinta do puro indivíduo, tudo isso preparava Alceu para uma filosofia concreta da existência, de concretude, como a foi encontrar em Gabriel Marcel. Gostava de recordar a sentença de Santo Tomás de Aquino: “A razão é apenas a imperfeição da inteligência.” Com Marcel, admitiu a categoria ontológica da “presença” como típica da meditação cristã sobre o mundo, derivada da presença sobrenatural de Cristo na História, como “ideia encarnada, ideia vivida”. Para essa filosofia concreta da existência, importa mais “mostrar” do que “demonstrar”; a vida passa a ser uma tensão constantemente renovada e criadora dos problemas humanos. Homo viator, viajante, o ser humano só se explica a si mesmo, abrindo-se para a transcendência, para o Ser. E este caminho lhe é indicado pela esperança, que só ela permite à humanidade que sofre e que luta um sentido para o universo e para o seu próprio destino. Significa ela a solidariedade universal para um ideal comum, no qual todos são chamados “a colaborar na grande epopeia, e, por mais humilde que seja cada ator, adquirem todos uma dignidade moral e metafísica” (Gabriel Marcel).
Contrário a qualquer maniqueísmo, nada parecia mais absurdo a Alceu que pretenderem forçá-lo a optar entre uma coisa “ou” outra. Substituía sempre o “ou” pelo “e”, não dividia, nem alternava; somava, associava, aproximava, fiel ao seu permanente critério trinitário. Sempre achou possível a convivência e a coexistência dos contrários, em busca de uma união de propósitos, mais adiante, que de forma alguma significa unidade. De tudo, procurava extrair o que houvesse de bom para a construção do melhor.
A coexistência dos contrários é para mim a mesma coisa expressa pela palavra divina: o joio crescendo junto com o trigo. O erro não tem valor substancial, mas acidental, é uma privação, um vazio. Não se trata, pois, de eliminar o ‘outro’, mas de respeitá-lo.
“Só a morte transforma o homem em si mesmo – assinalou Alceu em Companheiros de Viagem –, ‘tel qu’en lui même enfin l’éternité le change’, como dizia Mallarmé”. Também era muito do seu agrado o versículo 24, do livro XII, de João: “Só frutifica a semente que morre.” E aqui o temos mais ele mesmo do que nunca, herdeiros que somos da sua messe. Nunca temeu que o chamasse de utópico ou de seráfico. Colocou-se sempre contra o fanatismo e a conivência com o mal. O que é ser cristão hoje? Respondia:
É saber ver o Cristo no outro, por mais estranhos que sejam suas aparências e seus atos. É compreender a força dos fracos. É a supremacia do Coração sobre a Razão. Da humildade sobre a arrogância. Do perdão sobre a vingança. Da infância espiritual sobre a enfatuação do conhecimento, do poder e da riqueza.
Isso é de 1981. Dez anos antes, dizia que, entre as duas sentenças de Cristo – “quem não é comigo é contra mim” e “quem não é contra vós é por vós” –, ambas com a mesma autoridade, mas em circunstâncias diferentes, é a segunda que prevalece: “A primeira na base da exclusão. A segunda na base da inclusão. A primeira separatista. A segunda integradora.” Já em 1947, dera exemplo disso, associando-se ao Movimento Renovador e lhe ajudara a redigir o manifesto, quando dele faziam parte as mais diversas ideologias, de todos os matizes sociais, mas as reunia o mesmo propósito de justiça, liberdade e democracia. A propósito, ocorre-me ao espírito a dedicatória de Ramon Fernandez, do Front Populaire, a Georges Bernanos, da Action Française: De l’autre côté d’une barricade, heureusement transparente. En toute affection. Era esta também a permanente disposição de Alceu.
Ao fazer 60 anos, dizia – e nisso repetia Goethe, das Xênias Suaves – que durante a vida fora sempre um amador; mas, anos mais tarde, acrescentava que amador não é sinônimo de diletante nem de superficial, muito pelo contrário, tudo o que faz é com amor, por escolha, dando-se inteiro, com entusiasmo e alegria. Assim foi Alceu em todos os momentos da sua existência e por isso, na construção da sua cidade futura – mais humana, realmente cristã, justa e livre –, enfrentou em nome de Deus, com serena determinação, todos os obstáculos que se lhe apareciam no caminho, quaisquer que eles fossem. Nestes últimos 20 anos, na terceira fase da sua vida, que chamava a dos acontecimentos – as duas primeiras foram a das formas e a das ideias –, entregou-se Alceu à denúncia dos abusos e violências de toda ordem, num combate direto contra os atentados à dignidade e à liberdade da pessoa humana. Constituiu-se, na consciência viva do seu tempo, merecedor de respeito e de veneração do povo brasileiro, como exemplo inexcedível de grandeza moral e coragem cívica. A sua presença fez-se carne e sangue e a todos os injustiçados acudiu sempre com a esperança. Continua entre nós e continuará enquanto houver no mundo alguém com sede de justiça e necessidade de amor. “Onde o despotismo duro cimentava servidões, a sua alegria sonora reclamava liberdade”.
4/10/1984