- I -
O conhecimento está ao nosso alcance. O reconhecimento não. É algo a que podemos aspirar mas que não nos cabe reivindicar. É um dom, um prêmio que nos é conferido pelos outros na pluralidade da condição humana. Assim se manifestou Hannah Arendt em 1969 ao receber a Medalha Emerson-Thoreau da Academia Americana de Artes e Ciências, discorrendo tanto sobre a distinção que lhe era conferida quanto sobre o significado da sua integração nos quadros de uma instituição cultural de reconhecida importância pela qual tinha o maior respeito. Acrescentou que, se era bom ser reconhecida ainda melhor era ser bem-vinda, pois a escolha, somada ao reconhecimento, representava um galardão especial que estava recebendo de ilustres pares do mundo das artes e das ciências.
Recorro à sabedoria da lição de Hannah Arendt, que tanto inspirou o meu percurso, para agradecer aos acadêmicos, agora, para minha satisfação, confrades da Academia Brasileira de Letras, a generosidade ímpar com a qual, com tanta simpatia, acolheram-me para suceder a Miguel Reale na cadeira 14. Permito-me agradecer a todos na pessoa do Acadêmico Alberto Venancio Filho - querido amigo, parceiro de pesquisas e de compartilhados interesses intelectuais, cujo discurso de recepção estará permeado pela largueza da boa-vontade de quem, no correr dos anos, afetuosamente estimulou a possibilidade do meu ingresso na Casa de Machado de Assis.
“Sedis animi est in memoria” - a sede da alma está na memória - é uma afirmação de Santo Agostinho. Desta afirmação vou valer-me como orientação na procura que ora enceto da memória e, por isso mesmo, do espírito da cadeira 14 que estou assumindo.
- II -
Franklin Távora é o patrono da cadeira 14. Devo o meu primeiro contato com o significado da sua obra à leitura, em 1959, de Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido. Neste livro, marco da cultura nacional, Antonio Candido realça a importância do projeto estético proposto no prefácio de O Cabeleira publicado em 1876, de um romance de feitio original, no qual o senso da terra, que condiciona estreitamente a vida do Nordeste e o conhecimento da História da região e do seu papel na vida brasileira, seriam os grandes e poderosos estímulos da criação literária.
Octavio Paz, refletindo sobre as nossas literaturas na América Espanhola e Portuguesa, qualificou-as de literaturas de fundação. São uma resposta dos americanos à concepção utópica européia de um mundo novo instigado pelo concreto da realidade. Representam a procura de uma tradição que, no seu processo criativo a inventa, resgatando e inovando uma realidade.
Antonio Candido - de quem tive o privilégio de ser aluno de Teoria Literária na USP e cuja amizade reputo “um dos bens da minha vida” para valer-me das palavras de Fernando de Azevedo, um dos meus ilustres antecessores na cadeira 14 - - aponta que o projeto de tradição proposto por Franklin Távora é uma faceta da formação da literatura brasileira que se revelou fecunda no tempo. Desdobrou-se na alta qualidade do romance do Nordeste do século XX e integrou-se na tradição cultural desta Casa que acolheu entre seus membros, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e incorporou este ano Graciliano Ramos, por via da transcriação cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos.
Franklin Távora é um dos muitos epígonos da Escola do Recife - do “bando de idéias novas” que agitou o país no dizer de Silvio Romero e que emanou da sua Faculdade de Direito. Representou, na vida brasileira, um renovador movimento intelectual, vigoroso e crítico, com identidade própria, que perdurou além da geração de seus iniciadores. A este movimento, Miguel Reale dedicou numerosos e significativos estudos com especial atenção para a obra de Tobias Barreto, na qual identificou as origens do culturalismo no Brasil.
Clovis Bevilacqua, o acadêmico-fundador da cadeira 14 é um dos eminentes filhos da Escola do Recife e foram as afinidades da Escola e da mentalidade que o levaram a escolher o patrono da Cadeira. Os caminhos do acadêmico-fundador no horizonte aberto pela Escola do Recife foram, no entanto, distintos dos do patrono da cadeira. No seu livro Juristas Philosophos de 1897, diz Clovis que Tobias Barreto, ao perfilhar a orientação de Jhering, influiu “na mentalidade brasileira precipuamente como transformador da concepção do direito”.
Como é sabido, um dos extraordinários feitos de Clovis foi a transformação do Direito brasileiro por meio do Código Civil de 1916. Este, como aponta San Tiago Dantas, resultou da “acumulação de forças” proveniente de uma unidade de concepção e de interpretação do mundo derivadas da mentalidade da Escola do Recife, com a precisão dogmática que a doutrina jurídica de Jhering, esposada por Clovis na esteira de Tobias, conferiu ao evolucionismo. Sustentou-se no conhecimento que Clovis tinha do direito brasileiro, com o lastro adicional da sua condição de estudioso de legislação comparada, atento ao trabalho histórico que engendrou as instituições do direito privado e permite aperfeiçoá-las pela codificação.
Devo o meu primeiro contato com a obra de Clovis ao meu pai, A. Jacob Lafer, que se formou na Faculdade de Direito de São Paulo em 1930. Foi o meu Pai,- cuja memória evoco com gratidão, saudades e admiração - quem me recomendou, quando ingressei, em 1960, na sua Faculdade, a leitura dos vários volumes dos Comentários de Clovis ao Código Civil e da Teoria Geral do Direito Civil. Li e anotei, com proveito duradouro, nos exemplares paternos, estas e outras obras de Clovis, que possuem a destilada sabedoria dos jurisconsultos da sua geração que meu pai, com toda razão, apreciava, e aos quais recorria quando pensava os problemas jurídicos, para encontrar caminhos e soluções, como era do seu feitio de advogado e empreendedor.
Clovis foi professor e a cadeira 14, no correr das sucessões, acabou sendo uma cadeira de professores. Professores foram Carneiro Leão, Fernando de Azevedo, Miguel Reale, numa tradição à qual muito me honra dar continuidade. Clovis, no entanto, era mais que um indivíduo-professor. Era um símbolo de aspirações coletivas pelo exemplo de trabalho, tenacidade, modéstia, elegância mental, despreocupação personalista, amor à ciência - atributos da sua autoridade de doutrinador no mundo jurídico brasileiro, realçados pelo prof. Spencer Vampré em 1937, quando da solenidade de entrega a Clovis do título de professor-honorário da Faculdade de Direito da USP. Esta condição de professor honorário me vincula, juntamente com o meu antecessor Miguel Reale, ao acadêmico-fundador da cadeira 14, como também nos aproxima a dedicação de Clovis à Filosofia, matéria da qual foi professor na Faculdade do Recife.
O Direito Civil e a sua codificação, pelo vínculo entre o Código de 1916, que se deve a Clovis, e o de 2002, supervisionado na sua longa elaboração por Miguel Reale, é outro traço de união entre os que ocuparam a cadeira 14, que cabe recordar.
Clovis, na amplitude da sua obra, além de civilista, filósofo do Direito e estudioso da cultura e da literatura brasileira, foi também um internacionalista. Neste campo atuou não só na condição de doutrinador mas igualmente de formulador da prática brasileira do Direito das Gentes, pois o Barão do Rio Branco, seu confrade nesta Casa, com o discernimento que o caracterizava, convidou-o para ser o Consultor Jurídico do Itamaraty. Clovis exerceu esta função de 1906 a 1934, lidando com sucessivos Ministros, cada qual com suas características próprias. Como antigo titular da pasta, bem avalio o privilégio representado pelo respaldo jurídico dado por ele a tantas gestões. Como estudioso do Direito Internacional encontrei, nos seus pareceres e nas soluções que encaminhou, diretrizes de condução diplomática com as quais me identifico na linha posteriormente propugnada em O problema da guerra e as vias da paz e A Era dos Direitos por Norberto Bobbio - o grande pensador italiano que soube associar a Teoria Jurídica à Teoria Política, e é uma referência constante do meu percurso.
Destaco a condenação da guerra e a defesa da paz pelo Direito e pela promoção de uma cultura de paz, argumentos por meio dos quais Clovis, em pareceres de 1932 e 1934, sustentou a aceitação, pelo Brasil, do tratado anti-bélico proposto pela Argentina e a adesão do nosso país ao Pacto Briand-Kellog voltado para a proscrição da guerra. Não posso deixar de mencionar, como defensor da plataforma emancipatória representada pela afirmação de uma era de direitos humanos e sua vinculação à democracia e à paz, a admirável visão que Clovis manifestou em parecer de 1932, época de xenofobia e racismo crescentes como a nossa. Cito:
“O arbítrio dado ao Governo, para limitar ou suspender a entrada, no território nacional, de indivíduos pertencentes a determinadas raças, ou origens, não conquista a minha adesão.
Não me parece fundada em bons motivos morais e científicos a classificação das raças em superiores e inferiores; e deixar à fantasia de dominadores de ocasião o direito de selecionar, depreciativamente, os grupos étnicos não se harmoniza, creio eu, com a boa política, segundo a definiu José Bonifácio”...
Carneiro Leão foi o sucessor de Clovis e, como seu antecessor e como o patrono da cadeira 14, não só se formou na Faculdade de Direito do Recife como também se viu impregnado pela mentalidade suscitada pelo “bando de idéias novas”. No percurso de Carneiro Leão a vertente que o norteou foi o interesse pela sociologia, na qual deixou pioneira obra de relevo - um desdobramento do seu magistério na então denominada Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Foi, também, um destacado educador, voltado para a prática e não apenas para os problemas teóricos do ensino, pois atuou como um reformador, cabendo lembrar seu papel como Diretor-Geral de Instrução Pública no Rio de Janeiro - o então Distrito Federal - de 1922 a 1926, cargo no qual teve Fernando de Azevedo como sucessor. É autor, no campo dos estudos literários, de um livro importante e laboriosamente pesquisado sobre a recepção de Victor Hugo no Brasil.
Carneiro Leão foi sucedido, na cadeira 14, por Fernando de Azevedo, um defensor da aproximação entre os homens de letras e os educadores como disse, ao receber em 1945, o prêmio Machado de Assis desta Casa, com a autoridade de quem associava a condição de educador à de escritor de estilo ciceroniano e gosto pelos clássicos. Sociólogo e humanista de larga visada e notável atuação, Fernando de Azevedo foi um dos fundadores da USP - a minha “alma mater” - e uma das suas mais expressivas personalidades. Daí também um vínculo de Fernando de Azevedo com Miguel Reale que foi, com destacada liderança intelectual e vigoroso descortínio administrativo, por duas vezes Reitor da USP.
O meu primeiro contato com a relevância de Fernando de Azevedo, como ocorreu no caso de Clovis, deu-se no âmbito familiar. Minha mãe, Betty - cuja memória evoco com saudades pois foi, nos 97 anos da sua existência, um apoio constante e uma inspiração permanente - cursou a Escola Normal, trabalhou como professora primária e exerceu funções nas delegacias de ensino de Araraquara e Campinas na década de 1930. Na década de 30 implantou-se em nosso país uma nova mentalidade em matéria de educação. Fernando de Azevedo foi, pela sua reflexão e ação, uma das grandes lideranças deste processo de renovação e minha mãe, no seu empenho pedagógico e nas suas subseqüentes atividades na promoção do bem estar social na cidade de São Paulo, foi marcada pelas propostas do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, por ele redigido.
Fernando de Azevedo, como educador, tinha o domínio técnico da administração da organização educacional e um atualizado conhecimento dos métodos pedagógicos adequados à instrução moderna. Não se considerava, no entanto, um técnico da educação, mas sim um político da educação, como disse em carta de 1936 a seu fraternal amigo, Francisco Venancio - pai do nosso confrade Alberto Venancio. Com efeito, os meios técnicos, em Fernando de Azevedo, estavam a serviço de uma política de educação. Esta, muito bem estudada nos seus sucessos e dilemas por Maria Luiza Penna em livro de 1987 era a expressão de um projeto de reconstrução nacional, voltado para a transformação do Brasil pela escola para todos, como caminho para a necessária e efetiva democratização do nosso país. Daí a importância que atribuiu ao ensino primário, secundário e técnico para o povo, como via para lidar com a injustiça e as desigualdades da sociedade brasileira.
Esta visão, de tanta atualidade, da educação como política pública republicana, pode ser considerada expressão de um “socialista-liberal”, na linha de Carlo Rosselli e Bobbio, segundo Antonio Candido, que foi dedicado amigo e assistente de Fernando de Azevedo na cadeira de Sociologia II da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
A profundidade desta visão caracteriza um acabado pensador. Era o desdobramento de quem, em Sociologia Educacional, estudou com originalidade na esteira de Durkheim, os fatos educacionais como fatos sociais. E possuía o lastro de quem, em A Cultura Brasileira, depois de tratar dos fatores da cultura e dela própria - inclusive a científica e a artística - concluiu sua abrangente e erudita síntese da vida social e espiritual do nosso país pelo estudo da transmissão da cultura, ou seja, pela educação. Observa Antonio Candido, em artigo de 1994, a dimensão inovadora desta terceira parte do livro de Fernando de Azevedo, na qual a educação é tratada como força explicativa da trajetória histórica do Brasil.
Nesta evocação do percurso deste meu eminente antecessor na cadeira 14 há um dado adicional de proximidade que vai além do vínculo uspiano de respeito por um dos fundadores da minha Universidade e da afinidade social-democrática com a sua política de educação. Conheci pessoalmente Fernando de Azevedo, pois participei das atividades do Centro Cultural Brasil-Israel de São Paulo por ele presidido até o fim da sua vida. Muitas vezes fui a reuniões na sua casa na Rua Bragança, 55. Era do seu feitio combinar as relações de trabalho com as de afeto e promovia, assim, na sua casa, o encontro dos amigos, membros do grupo-diretivo do Centro, entre os quais figuravam Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Mendes de Almeida, Luiz Martins, Alberto da Rocha Barros, Antonio Candido, Moisés Gicovate, Moisés Cutin e os seus dois colaboradores, animadores do Centro, Romeu Mindlin e José Nemirovsky. Para o jovem que eu era, participar do descontraído clima das conversas, foi uma experiência da qual guardo saudades. Lembro, neste contexto, que secretariei, com o maior proveito intelectual, a Comissão Julgadora presidida por Fernando de Azevedo e integrada por Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido que conferiu, em 1964, o prêmio do Centro à melhor obra sobre assuntos históricos publicados no quatriênio 1960-1963. O vencedor foi Herman Lima, pela sua monumental História da Caricatura no Brasil.
- III -
Lauro Müller, que chefiou o Itamaraty de 1912 a 1917, referindo-se ao Barão do Rio Branco, seu antecessor imediato que falecera, afirmou, ao empossar-se, que o sucedia mas não o substituía, pois Rio Branco, pela magnitude de sua obra e de sua ação, era insubstituível. Lauro Müller reiterou esta avaliação ao suceder a Rio Branco nesta Casa, como titular da cadeira 34.
Esta ponderação me ocorre ao iniciar o elogio e pensar sobre o legado do meu antecessor, o querido prof. Miguel Reale. Faço-a com o afetuoso e devotado conhecimento do alcance intelectual da trajetória de um grande Mestre. Conheci-o desde menino, pois os meus pais, nos anos 40 e início dos 50, foram vizinhos, na então mais pacata Av. 9 de Julho, da família Reale, com a qual sempre tiveram uma boa relação de amizade. Dele fui aluno nos anos 60, assistente na docência universitária nos anos 70, colaborador nas suas meritórias atividades de presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia, amigo de Ebe, Livia Maria, Miguel, seus filhos, apreciador das qualidades de D. Nuce - “valor invariante” do seu percurso, - freqüentador da sua casa e da sua admirável biblioteca. Ademais, em 1988, passei a ser, com o seu confiante endosso, o responsável pela continuidade das suas funções de magistério como titular de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da USP. Como é notório, este foi um campo do conhecimento que Miguel Reale, com insubstituível ressonância nacional e internacional renovou mediante a sua teoria tridimensional do Direito que lida com a complexidade da experiência jurídica, integrando, por meio de uma dialética de mútua implicação e complementaridade, Fato, Valor e Norma.
Emerson, ao discutir os que caracteriza como Representative Men, diz que são definidores e construtores de mapas das latitudes e longitudes da nossa condição. Miguel Reale se enquadra nesta definição, pois a sua múltipla obra de pensador desvendou novas latitudes e longitudes do conhecimento.
Alceu Amoroso Lima, uma das figuras tutelares da nossa Academia, tratando do território do pensamento, que dominava com plenitude, escreveu em 1980 que no Brasil “nenhuma figura até hoje conseguiu manter uma linha de unidade e variedade globais tão nítida, tão coerente, tão original e tão profunda como a de Miguel Reale”.
Meu querido e fraternal amigo José Guilherme Merquior, a mais completa figura intelectual da minha geração - que honrou a nossa Academia com o seu fulgurante talento - escreveu, pouco antes do seu prematuro falecimento, um admirável estudo situando orteguianamente a obra de Reale. Nele afirma, com a amplitude da erudição que o singularizava, que Miguel Reale é “um dos poucos filósofos latino-americanos capazes de se imporem à consideração ocidental”.
A obra de Miguel Reale tem como lastro que a permeia a coragem intelectual de uma poderosa inteligência, aparelhada por um grande saber, que sustentou com vivo interesse pelo mundo da cultura e da vida, e sem ingenuidade, a capacidade sintetizadora-nomotética da Razão, apta a integrar, sem reducionismos simplificadores, a multiplicidade da experiência. Esta postura é o que revela o seu poema, significativamente intitulado Confissão: “Nunca fui homem de uma nota só/embrenhado num único problema - amo a integralidade dos assuntos/o horizonte tomado em conjunto”. Foi esta também a sua mensagem de educador e, por isso, como esclarecido Reitor da USP, inscreveu ao pé da torre da praça central do campus uma frase síntese, de reminiscência pascaliana, do compartilhado significado interdisciplinar da vida universitária: “No universo da cultura o centro está em toda parte”.
A aspiração da abrangência de Miguel Reale e as suas formulações iniciais foram buriladas por uma concepção da natureza crítica da Filosofia, por ele concebida e praticada como questionamento e indagação sempre renovados de pressupostos. É por este motivo que, no seu percurso, o seu pensamento foi se atualizando e beneficiou-se do contínuo aprofundamento da reflexão. Daí, no trato dos seus temas recorrentes e na vocação de abrangência, um pertinente pluralismo cognoscitivo sempre apoiado em conceitos integrativos, como apontou Alceu Amoroso Lima.
Uma ilustração das mais esclarecedoras do que Miguel Reale entendia como paradigma “do horizonte tomado em conjunto” é a sua devoção a Dante Alighieri, explicitada no ensaio “O meu Dante”. “Dante, para Miguel Reale, foi o mentor, o modelo, o verdadeiro poeta-filósofo insuperável”, como apontou nosso confrade Evaristo de Moraes Filho - este admirável “scholar” que iluminou com percuciência e erudição todos os muitos assuntos sobre os quais se debruçou, e que conhecia e escreveu tão bem sobre o meu antecessor, de quem foi amigo e parceiro de atividades intelectuais.
Não é difícil compreender o porquê da devoção de Miguel Reale a Dante: no grande poeta-pensador encontrou a profunda ressonância das afinidades. Com efeito, a obra de Dante está permeada pelo integrativo “argumentum unitatis”. É precursora de um humanismo jurídico, pela inovação que trouxe ao pensamento político medieval com a noção de “humana civilitas”. É também inauguralmente reveladora do poder de nomear poético da língua italiana, e o seu uso criativo fez de Dante um dos maiores poetas da humanidade. A isso cabe agregar que a Divina Comédia é, segundo Auerbach, um marco na representação da idéia de que o destino individual não é sem sentido. É significante e figurativo, pois todo o contexto do mundo nele é revelado. Dante também não se isolou numa torre de marfim. Foi em Florença um ator político de primeira plana, que viveu os sucessos e amargou os dissabores do infortúnio político.
“... quem não sabe a arte, não na estima” diz em Os Lusíadas, (V, 97) Camões, que evoco neste momento pois, na sua experiência de leitor de Dante, Miguel Reale descortinou, desde jovem, como aluno do secundário no Colégio Dante Alighieri em São Paulo - onde também estudei - a abertura para a convivência lírica, a compreensão filosófico-poética e a meditação filosófico-política. Como apreciador da poesia das idéias admirava o engenho e a arte com a qual Dante transformou os temas filosófico-teológicos em criação poética e transpôs muitos dos motivos da escolástica para o plano da “Lebenswelt” - o mundo da vida de que falava Husserl. Chamava a atenção para o modo como Dante deu um novo sentido, de caráter axiológico, à problemática do Ser. Via, na obra de Dante, neste sentido, algo que falava muito diretamente a ele como pensador contemporâneo que, no dizer de Jean Wahl, que endossava, se sentia mais um cavaleiro do Valor do que um servidor do Ser.
Da leitura de Dante, Miguel Reale colheu duas lições permanentes. A primeira é a do entendimento da Filosofia como “uno amoroso uso di sapienza”, identificando, na correlação “amoroso” e “studio”, apontada no Convívio, uma feição do que une a teoria e a prática, ou seja, a sabedoria mais o propósito de torná-la real, explicativa do seu contínuo intento de “teorizar a vida e de viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação”.
A segunda é o alcance e a atualidade da visão de Dante sobre o bem do Estado e o fim do Direito, que o levou a definir o Direito no De Monarchia como uma proporção real e pessoal de homem a homem que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a. Esta proporção - expressão de medida “inter-homines” e não entre homens e coisas - é, como diz Miguel Reale, de pertinente modernidade, pelo profundo sentido social que revela; pela composição que propõe entre os valores da pessoa com os da comunidade na qual se insere e pela compreensão do Direito como instrumento de vida e da inter-subjetividade da convivência humana.
O tempo histórico de Dante teve como indicação da “prevalência de sentido” cultural maior aproximação entre as palavras e as coisas. Por isso, a sua linguagem de grande e criativo poeta-pensador retém o poder de nomear a realidade como totalidade.
Não é esta a experiência da modernidade na apreensão da “grande máquina do Mundo” de que fala Camões, pois o século XX percebeu, para lembrar Drummond, como hermética “essa total explicação da vida”.
Neste sentido, Octavio Paz, que foi um grande poeta-pensador, observa que a “quête” do poeta contemporâneo é a de tentar, por meio dos signos em rotação, redescobrir a figura do mundo na dispersão dos fragmentos, procurando um significado para as estruturas que perderam seu centro na “Waste Land” do mundo contemporâneo.
Faço este registro observando que Miguel Reale tinha especial apreço pela linhagem dos poetas-pensadores do século XX e lembrando que, para ele, o “ato poético é um ato de rebeldia, de não conformidade com o que é predeterminado”. Neste contexto, diria que o percurso do seu pensamento é metaforicamente um ato de rebeldia em relação ao “predeterminado” da dispersão dos fragmentos que caracteriza a experiência do século XX. Rebeldia que se traduziu num embate intelectual com a incongruência por meio da busca de uma racionalidade concreta, ordenadora do pluralismo centrífugo das tendências.
Fernando Pessoa era um poeta que Miguel Reale apreciava. Citou no seu ensaio sobre José Guilherme Merquior e gostava de evocar, nas suas aulas, como posso testemunhar, o que considerava uma grande intuição de verdade contida nos versos de Alvaro de Campos - o heterônimo da angústia moderna que acompanhou Fernando Pessoa até os últimos meses de sua vida:
“... no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu”
Este algo que se perdeu foi o que Miguel Reale, no seu percurso, se empenhou em procurar. O seu ponto de partida permanente e recorrente foi Kant e a lição do criticismo, voltada para as condições e possibilidades do conhecimento. Kant, diz ele, “é um depositário de soluções e a todo instante podemos volver a ele para descobrir coisas novas”. Daí o seu interesse especial, que se insere no âmbito da sua permanente preocupação com a história das idéias no Brasil, com a recepção da obra de Kant em nosso país. Como mostrou nas suas pesquisas, esta remonta a Martim Francisco de Andrada, desdobra-se nos cadernos do Pe. Feijó e transita pela presença de Krause na Faculdade de Direito de São Paulo, no século XIX.
Hegel parte de Kant porque reconhece o poder nomotético do Espírito, capaz de integrar em nova unidade significativa os elementos dispersos da experiência. Dele discorda ao rejeitar a dicotomia kantiana entre o pensar e o conhecer pois, para Hegel, os conceitos do conhecimento e as idéias do pensamento não estão separados. Realizam-se dialeticamente no universal concreto. A identificação hegeliana entre o real e o racional no processo histórico é uma admirável construção mas, para Reale, nela algo muito relevante se vê sacrificado: o valor do particular, a singularidade empírica do concreto. Em poucas palavras, a identidade do real e do racional, do ser e do dever-ser no monismo hegeliano, diz Reale em Experiência e Cultura parodiando Vico, dissolve e não converte o “factum” no “verum”. Alcançar o “verum”, por meio da capacidade nomotética da Razão, sem perder a especificidade do “factum” no horizonte de uma compreensão “plural do processo histórico”, é o que Miguel Reale procurou, nisto que se perdeu entre Kant e Hegel. Esta é a proposta do seu historicismo-axiológico.
Na sua empreitada intelectual de largo fôlego, Reale valeu-se de Husserl e do conceito da intencionalidade da consciência que leva à idéia do objeto para lidar com o processo do conhecimento. Postulou uma dialética de mútua implicação e polaridade, propiciadora de sínteses abertas na análise da História e das situações. Trabalhou com originalidade a dimensão epistemológica e existencial da experiência e propôs, com inspiração kantiana, uma discussão criativa do conceito de conjetura.
Instigado por Scheler e Hartmann elaborou uma teoria própria dos valores, como bens culturais que são “intencionalidades objetivadas” dialeticamente no processo histórico. Constituem, deste modo, apropriados objetos do conhecimento. Para Reale os valores são realizáveis porque se referem à realidade, que é o seu suporte, mas ao mesmo tempo a ela não se reduzem. Têm um significado vetorial, que se projeta para o futuro, para o dever-ser da sua inexauribilidade. Reale transita, assim, do problema do conhecimento para o da conduta, a partir de uma perspectiva culturalista, que é pluralista mas não é relativista. Tem como critério ontológico ordenador o valor-fonte da pessoa humana, cujo ser é o seu dever-ser.
Esta exposição muito concisa das linhas mestras da meditação de Reale tem apenas o objetivo de confirmar a avaliação, que endosso plenamente, na esteira de Alceu Amoroso Lima e José Guilherme Merquior e de tantos outros, que a sua obra tem o significativo plus da originalidade. É o amadurecido e refletido fruto de uma criativa tomada de posição perante o pensamento alheio que não é - como tantas vezes ocorre - apenas um aperfeiçoamento hermenêutico.
“Sê plural como o universo” é a incitação de um dos aforismos de Fernando Pessoa. Miguel Reale seguiu à risca esta máxima. Daí a abrangência da sua ação e da sua obra. Esta, além da reflexão filosófica na qual me detive, cobre, como é sabido, vários campos. Entre eles, a Filosofia do Direito, na sua especificidade própria; o Direito, em todos os seus quadrantes; a Teoria Política; a História das Idéias; a História do Pensamento Brasileiro; a Memorialística; a Poesia.
Esta abertura em relação à diversidade dos interesses no campo do conhecimento teve uma congruente e meritória dimensão no campo da conduta intelectual e docente de Miguel Reale que cabe realçar, pois esteve presente mesmo nos momentos difíceis do autoritarismo militar em nosso país. Relembro, neste sentido, o clima aberto e de opções livres, inclusive em matéria política, que caracterizou a sua atuação na cátedra da qual um desdobramento extra-universitário foi o pluralismo e o empenho de abrangência nacional que o norteou na criação e na liderança do Instituto Brasileiro de Filosofia. No âmbito desta postura não dogmática, evocada por Tércio Sampaio Ferraz Jr. - meu amigo de toda vida e parceiro de reflexão e docência na Faculdade de Direito da USP -tratei, em recorrente diálogo com Miguel Reale, da sua obra, examinando com liberdade os assuntos nela versados, que estavam vinculados às minhas preocupações voltadas para a confluência do jurídico e do político.
No seu pensamento encontrei instigações e caminhos para lidar com temas como Direito e Poder, Justiça e Legitimidade, Direitos Humanos, hermenêutica de princípios. Miguel Reale, com efeito, com seu magistério alargou as latitudes e longitudes do mapa do conhecimento jurídico. Foi o que procurei mostrar em texto recente publicado logo após o seu falecimento e redigido com o senso da responsabilidade de ser seu sucessor na cátedra de Filosofia do Direito.
Não é o caso de reiterar estas análises, mas cabe mencioná-las neste momento, dada a relação entre os juristas e a Academia, entre as letras jurídicas e as letras propriamente ditas que foi examinada, com tanta pertinência e acuidade pelo nosso confrade Alberto Venancio Filho, com o lastro do conhecimento de quem propôs uma interpretação do Brasil, tendo como base a história do ensino jurídico em nosso país.
O que me parece pertinente sublinhar no desdobramento deste discurso de posse na cadeira nº 14 é outra vertente da obra do meu antecessor: o expressivo vínculo que tem com os objetivos da Academia: a defesa da língua e o empenhado interesse na literatura brasileira e na cultura nacional.
A defesa da língua é, para Reale, um imperativo filosófico. Resulta da sua convicção de que o idioma é o solo da cultura e que a nossa língua portuguesa, com as suas peculiaridades e potencial é, nas suas palavras, “uma condicionante do nosso ser pessoal e do nosso ser filosofante, da nossa própria capacidade de pensar e de filosofar”. Daí também sua ativa participação nas atividades do Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, pois entendia que o diálogo com os colegas portugueses era um caminho para alargar os horizontes e vivificar a reflexão filosófica em nossa língua comum. Nesta empreitada teve como grande parceiro Antonio Braz Teixeira, o titular da cadeira nº 4 do quadro dos nossos sócios-correspondentes.
O empenhado interesse na literatura brasileira e na cultura nacional, em Miguel Reale é um desdobramento do seu culturalismo filosófico. Este, como verifiquei em 1964 assistindo, a seu convite, como ouvinte de graduação, às suas aulas de pós-graduação, tem um dos seus pontos de partida em Vico. Para Reale, Vico entreabriu à nossa cogitação elementos para o entendimento do mundo feito pelo homem, que não é redutível ao mundo da natureza.
O mundo da cultura - que Vico descobriu como campo próprio do conhecimento - é, para Reale, tudo aquilo que a humanidade vem constituindo através da história no plano da religião, das ciências, das artes, das técnicas bem como do que ela realizou e continua realizando no mundo da vida em comum - a Lebenswelt. Neste sentido é que discute a dimensão epistemológica de um “a priori cultural”.
Cultura brasileira é, para ele, mais especificamente, o conjunto de conhecimentos e valorações convertidos em patrimônio intelectual da gente brasileira. Ela é fruto de vivência e convivência expressa na nossa língua, na qual se imbricam as formas de vida e as expressões da cultura. Ela enseja a auto-consciência da especificidade no diálogo com outras culturas, que dão margem a distintas formas de criação literária e estilos de pensamento. Ela abre espaço para a “atitude de filosofar” e para uma preocupação não apenas com os focos irradiadores das influências recebidas, mas com o que condicionou determinada receptividade. Daí, para Reale, a importância de captar o “sentido” das recepções filosóficas, artísticas e literárias para desvendar as raízes e o desenvolvimento da cultura brasileira. Foi por isso que se empenhou, desde a década de 1940, em pesquisar e resgatar a memória do pensamento brasileiro no qual identificou especificidades próprias. Estas especificidades têm a “originalidade da cópia” para recorrer a uma formulação de Fernando Henrique Cardoso que, a partir de outros pressupostos, discutiu As Idéias e seu Lugar em livro de 1980, que tem este título.
É neste contexto que, com simpatia e genuíno interesse, escreveu e refletiu sem juízos depreciativos ou apologéticos, sobre autores brasileiros - tanto os que cuidaram especificamente de problemas de filosofia como Farias Brito, quanto os que, na condição de escritores de visada ampla, lidaram com questões filosóficas, como Oswald de Andrade e Gilberto Freyre. Nesta vertente da sua obra, tratou circunstanciadamente de inúmeros patronos e membros da nossa Academia. Entre eles destaco: Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Silvio Romero, Pedro Lessa, Pontes de Miranda, Candido Mota Filho, Menotti Del Picchia, Fernando de Azevedo, Paulo Carneiro, José Guilherme Merquior.
Miguel Reale tinha o gosto da convivência acadêmica, pois estava imbuído do seu significado cultural concreto. Por isso freqüentava as sessões e dialogava amplamente com os temas dos confrades do passado e do presente. Um exemplo, diria, paradigmático, desta postura, é o seu estudo sobre Machado de Assis, a começar pela dedicatória impressa no livro: “Aos caros confrades da Academia Brasileira e Paulista de Letras”. A esta última também pertenceu. Nela foi sucedido pelo meu querido amigo, Miguel Reale Jr., companheiro de docência na Faculdade de Direito da USP, parceiro em embates jurídicos como o do enquadramento do anti-semitismo no crime da prática do racismo pelo Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger, e com o qual, no correr da vida, compartilhei atividades políticas na esteira de associações no espaço público da palavra e da ação com Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mario Covas e Fernando Henrique Cardoso.
A dedicatória aos confrades tem o significado que provém de um fato cultural de maior envergadura: Machado de Assis é o nosso clássico. Alcançou o patamar da permanência pois, simultaneamente, é um sutil e autêntico intérprete do seu tempo; instiga constantes e distintas interpretações da sua obra, no Brasil e no mundo e é lido de geração em geração porque na criativa polivalência do seu texto literário cada época e seus distintos públicos nele encontram a fruição das suas necessidades de expressão.
É por isso que o nosso fundador e primeiro Presidente vem fascinando os membros desta Casa. Do Conselheiro Lafayette e Alfredo Pujol até os trabalhos publicados neste ano por Sérgio Rouanet e Alfredo Bosi, é múltiplo e recorrente o impulso de escrever sobre Machado de Assis.
A faceta com a qual se preocupou Reale no seu livro de 1982 foi “mostrar o que a inquietação filosófica representou na obra literária de Machado de Assis, influindo no fundo e na forma”, ciente de que “Filosofia e Arte são irmãs gêmeas, mas falam línguas diversas” podendo-se, no entanto, esperar “que a primeira nos auxilie a compreender a segunda”.
O livro de Reale é o de um leitor que com desvelo freqüentou toda a obra de Machado, como indica a antologia filosófica por ele preparada, que integra o seu livro. É o de um pensador aberto que, como era do seu feitio, dialogou com os trabalhos dos que o antecederam no trato do tema, como Afrânio Coutinho, Barreto Filho, Augusto Meyer, Sérgio Buarque de Holanda, Eugenio Gomes, Raymundo Faoro. É mais especificamente o do estudioso que, com a segurança da sua “robusta organização de filósofo” - para usar palavras de José Guilherme Merquior - mostrou o sentido que teve na obra de Machado o influxo de suas múltiplas leituras de cunho filosófico. Este sentido está contido na sua obra - e é um componente do porque Machado é um clássico da literatura brasileira - mas vai além disso pois como conclui com acuidade Miguel Reale, é ao bruxo do Cosme Velho que efetivamente se deve “o fermento crítico injetado no cerne da nossa cultura”.
Unir pensamento e ação, instigado por um fermento crítico, foi o intento permanente do meu antecessor, que se casava com a sua maneira de ser. Por isso devo, ainda, neste discurso, apontar duas características relevantes do seu percurso, que disso são uma expressão.
A primeira é a recorrente contribuição que, como jurista, deu à elaboração de normas no Direito brasileiro. A mais notável destas contribuições foi a que resultou do seu papel como Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Anteprojeto do Código Civil. A esta tarefa, que foi uma empreitada que reuniu vários eminentes juristas, Miguel Reale, liderando-a, dedicou-se durante décadas. Ela chegou a bom termo com a Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 - a lei do novo Código Civil, que ele qualificava como a “constituição do homem comum”. Não cabe, neste momento, uma discussão deste importantíssimo diploma legal, mas cabe dizer, nesta Casa, que assim como o Código Civil de 1916 está impregnado, como apontei, da visão de Clovis Bevilacqua, o acadêmico-fundador da cadeira 14, o Novo Código carrega no seu bojo a inovadora concepção de Direito do meu antecessor. Na elaboração do Novo Código, Reale buscou a proporção real e pessoal “inter homines” de que falava Dante e que, como observei, o marcou. Atento aos fatos sociais, procurou uma atualizada correlação do Código com a sociedade brasileira dos nossos dias. Ao mesmo tempo ponderou o alcance da “vis directiva” dos valores na experiência jurídica e o seu papel propiciador da expansão não apenas lógica mas axiológica de um ordenamento legal. Daí, no Novo Código, a relevância normativa atribuída a três valores: a eticidade, a sociabilidade e a operabilidade. Isto está explicitado pela presença de cláusulas gerais de escopo mais amplo, como a da boa-fé e por meio da superação do forte caráter individualista do Código de 1916, pelo reconhecimento do imperativo da sociabilidade, no tratamento dado, por exemplo, à função social do contrato e à natureza social da posse.
A outra característica diz respeito à dimensão de Miguel Reale como filósofo militante pois, à semelhança de Croce, Ortega, Raymond Aron, Bobbio, Alceu Amoroso Lima - com os quais tinha afinidades, interveio no debate ético-político das várias circunstâncias históricas do seu tempo. Participou, assim, da agenda pública brasileira. Destaco, nesta linha, os artigos que nos últimos 25 anos publicou na grande imprensa brasileira, com realce para os estampados em O Estado de S.Paulo do qual foi colaborador até os últimos dias da sua vida. Nestes artigos, boa parte reunidos em livros, Reale, no kantiano “uso público da razão”, pensou os acontecimentos do Brasil e do mundo. Estes artigos são, para usar a sua própria formulação numa analogia com a música, variações. Representam a unidade da sua reflexão trabalhada pelo repertório de problemas induzido pelos eventos. Exerceu, assim, no pluralismo aberto do seu pensamento maduro, um magistério de reflexão de alto nível na vida brasileira contemporânea.
Registro que, no exercício deste magistério, Miguel Reale enfrentou com elevação a opacidade de um latente mas persistente “patrulhamento ideológico”. Esta desconfiança de certos círculos e circuitos intelectuais tem basicamente a sua origem no seu passado integralista. Sofreu, em função disso, a “asfixia dos rótulos”, para valer-me do verso de Paulo Bomfim em seu poema “Prece”. O rótulo acompanhou-o injustificadamente em vista da revisão das suas posições iniciada em 1940, com a publicação da Teoria do Estado e do Direito e da sua tese de cátedra Fundamentos do Direito, que são os pontos de partida da sua obra madura. O padecimento da “asfixia dos rótulos” foi apontado por Alceu Amoroso Lima em 1980 com uma compreensão e simpatia que comoveram a Miguel Reale, como consignou nas suas memórias, que são uma esclarecedora narrativa do seu percurso.
- IV -
Franklin Tavora, Clovis, Carneiro Leão são parte integrante do grande legado da Faculdade do Recife, como são o nosso caro presidente Marcos Vilaça e o amigo e confrade Marco Maciel. Miguel Reale e eu somos herdeiros do legado de outro pólo histórico de formação da mentalidade brasileira: a Faculdade de Direito de São Paulo. Nas Arcadas de São Francisco mesclaram-se na trama e na aura da sua tradição, o direito, as letras, a filosofia e a política.
Esta polivalência animou as múltiplas vertentes de membros da Academia Brasileira de Letras desde a sua fundação. Propiciou um cineasta como Nelson Pereira dos Santos e um bibliófilo devotado às letras e à leitura como José E. Mindlin - para mencionar os que se empossaram este ano nesta Casa. Instigou esta admirável criadora que é Lygia Fagundes Telles, que vem desvendando com fôlego inspirador o mar oculto do mundo da ficção.
Esta polivalência pode ser explicada pelo substrato da nossa língua que, com os verbos ser, estar e ficar descomprime as amarras da ontologia e permite lidar com o pluralismo da existência sem as dificuldades hermenêuticas do “sein” alemão ou do “être” francês, como apontou Vilem Flusser que integrou o Instituto Brasileiro de Filosofia e foi um pensador da relação Língua e Realidade. Do esplendor ontológico da língua portuguesa valeu-se nosso confrade Eduardo Portella, em frase famosa, para diferenciar, política e filosoficamente, o estar ministro do ser da pessoa.
Como sói acontecer - para valer-me das virtualidades do verbo soer, poeticamente exploradas por Camões - esta polivalência da tradição da Faculdade de Direito de São Paulo, que tantos impregnou, também me moldou. É o que verifico ao parar para pensar no meu percurso.
A devoção às letras é constitutiva na minha vida e sua primeira exteriorização é o meu livro O Judeu em Gil Vicente, publicado em 1963 com generoso prefácio de Antonio Candido e ofertado, naquela ocasião, à biblioteca da Academia Brasileira de Letras. Esta devoção foi alentada pelo privilégio de ter sido, em Cornell, aluno de Octavio Paz. No trato amigo com a pessoa e a obra do grande poeta-pensador mexicano entendi que “A forma que se ajusta ao movimento/é pele - não prisão do pensamento”. Tenho, por isso mesmo, consciência da estranha potência das palavras que Cecilia Meireles evocava afirmando que “Todo o sentido da vida/principia à vossa porta”. Daí a minha admiração pelos eminentes criadores e críticos literários do passado e do presente desta Casa - partícipes todos da gesta da palavra, como diria Nélida Piñon.
A dedicação ao Direito,- no âmbito do qual, na linha que vai de Grócio a Kelsen venho associando o Direito Internacional e a Filosofia do Direito,- é parte fundamental da minha vida. Integro, dessa maneira, uma dimensão desta Casa que está no espírito e na memória da cadeira 14 que teve como ocupantes Clovis e Miguel Reale.
No âmbito do pensamento, a Filosofia do Direito e a Filosofia Política, na sua relação de mútua complementariedade, têm sido, por excelência, os campos da minha reflexão. Os dois campos, a partir de suas próprias denominações, colocam um problema de equilíbrio na determinação do seu alcance. Com efeito, como Filosofia, tendem a ser investigação teórica. Entretanto, como Direito e Política são uma atividade prática. É por isso que quem a elas se dedica não deve ser nem exclusivamente teórico nem exclusivamente prático, pois são áreas do conhecimento que constitutivamente postulam o nexo pensamento e ação e se beneficiam, epistemologicamente, da experiência.
A “forma mentis” da reflexão se liga à forma da vida. Esta é uma das razões que explicam uma dimensão do meu percurso: o do intelectual militante. Nesta linha, uma referência constante, desde o meu tempo de estudante, é o confrade Helio Jaguaribe - querido amigo, permanentemente preocupado com a responsabilidade do intelectual na vida brasileira. O seu livro de 1962, Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, que li instigado por Israel Klabin, - meu primo e seu companheiro de toda a vida - me marcou porque colocava de forma superior uma questão que me acompanha: como promover a efetiva convergência entre democracia e desenvolvimento? Foi esta questão que inspirou, em 1970, na época dos tempos sombrios do regime autoritário, a feitura da minha tese de doutoramento sobre o Programa de Metas e, subseqüentemente, o meu empenho na redemocratização e na luta pelos direitos humanos. Na minha tese busquei mostrar como o presidente Juscelino Kubitschek, com admirável imaginação política, tolerância liberal e inequívoca capacidade de decidir e mobilizar confiança, logrou conjugar o desenvolvimento econômico com a democracia política descortinando, para o Brasil, um horizonte de progresso e esperanças.
O uso público da razão de um “observador participante” no âmbito da agenda dos debates nacionais, não foi a única dimensão do meu percurso. Como tantos confrades desta Casa, do passado e do presente, transitei do pensamento para a ação. Neste capítulo a referência familiar foi Horácio Lafer, também um herdeiro do legado da Faculdade de Direito de São Paulo. Dele recebi estímulo para a vida do Espírito - pois foi um homem de inquietações filosóficas e o primeiro que, em livro de 1929, examinou, no Brasil, o significado de Dilthey, Simmel e Husserl. Por isso integrou posteriormente o Instituto Brasileiro de Filosofia, associando-se à obra cultural de Miguel Reale. Dele recebi igualmente o estímulo para participar da vida da polis. Nele encontrei - na sua atuação parlamentar e de Ministro da Fazenda do segundo governo Vargas e das Relações Exteriores do governo de Juscelino - um exemplo de como lidar com os instigantes desafios e as duras vicissitudes da vida política.
Integrei, em 1992, um ministério de alta qualidade. Vivi, como chanceler, um grande momento da diplomacia brasileira que foi a Conferência do Rio da ONU sobre desenvolvimento e meio-ambiente. Esta conferência, sediada no Brasil por prévia e oportuna iniciativa do confrade José Sarney quando Presidente da República - uma das muitas relevantes alterações do rumo que imprimiu à diplomacia brasileira - consagrou o abrangente conceito do desenvolvimento sustentável, inserindo-o como tema global na vida internacional, conceito cuja relevância nesta era de perceptíveis mudanças climáticas e precária governança global não é necessário realçar.
Compartilhei com Marcílio Marques Moreira, Célio Borja e nossos confrades Hélio Jaguaribe e Sérgio Paulo Rouanet o desenho e a execução do compromisso da governabilidade. Este compromisso, por uma ação conjunta do Ministério, logrou credibilidade pública, interna e internacional, para lidar com os desafios do dia a dia em meio a uma crise política de grandes proporções que atingiu o Presidente Collor. Deste modo contribuímos para que o encaminhamento de uma grave situação tivesse um desfecho no quadro da legalidade democrática.
Ocupei posições de responsabilidade no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Reitero que foi um privilégio intelectual e político ter participado do governo liderado por este querido amigo desde os tempos da USP e do CEBRAP - um governo de inspiração republicana, com sentido de direção, comprometido com a institucionalização da democracia, a valorização dos direitos humanos, a agenda ambiental, a criação de uma inovadora rede de proteção social e voltado para o desafio de se valer da globalização para ampliar o poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu próprio destino.
A experiência de Embaixador em Genebra, de 1995 a 1998, e a de Chanceler em 2001-2002 aguçaram a minha percepção de como é inerente à prática diplomática o cotidiano cotejo da nossa perspectiva brasileira sobre o mundo e o seu funcionamento, com o de outros países e sociedades. Esta acareação é indispensável para identificar os interesses nacionais, diferenciá-los daqueles dos demais atores que operam na vida internacional para apropriadamente traduzir necessidades internas em possibilidades externas num contexto no qual se movem tanto as forças de cooperação quanto as de conflito. Esta identificação parte de uma visão, de uma idéia, de qual é o bem comum do nosso país. Daí o meu alto apreço pelos membros desta Casa, do passado e do presente, que se dedicaram a pensar o Brasil.
Esta experiência no trato dos contextos históricos internacionais, nos quais se imbrica a história nacional, me ajudou a compreender melhor o empenho no bem comum do país, tal como se colocou em distintas conjunturas, que norteou os chanceleres que integraram esta Casa - do grande Rio Branco a Afonso Arinos, passando por Lauro Müller, Domício da Gama, Felix Pacheco, Octavio Mangabeira, José Carlos de Macedo Soares e João Neves da Fontoura.
A diplomacia brasileira e a cultura nacional têm vínculos próprios instigados pelo cotejo acima mencionado, inerente à atividade diplomática. Foram discutidos num livro organizado pelo nosso confrade Alberto da Costa e Silva, ele mesmo, como Sérgio Paulo Rouanet expressões superiores do potencial criativo que une a palavra e a diplomacia. Na apresentação deste livro - O Itamaraty na Cultura Brasileira - na qual colaboraram os confrades Alberto Venancio Filho, Afonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin e Ivan Junqueira, realcei que a despeito da variedade das personalidades e das obras discutidas, têm todas em comum o tema da identidade, projetando uma busca constante do que é o Brasil. Por isso mesmo, na dialética nacional/universal do processo da cultura, expressam o que Haroldo de Campos qualificou de movimento dialógico da diferença. Guimarães Rosa, para dar, lembrando Ana Maria Machado, o recado do nome, dizia “Aprendi línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria”.
Falei em movimento dialógico da diferença. Como observou Norberto Bobbio, a política divide; a cultura une, pois a política vive do conflito e a cultura vive do diálogo. Esta afirmação em Il dubbio e la scelta - um dos mais argutos livros sobre os intelectuais e o poder na sociedade contemporânea me vem à mente ao pensar a sabedoria com a qual Machado de Assis, no seu discurso de posse na presidência desta Casa, em 1897, colocou como objetivo “conservar, no meio da federação política, a unidade literária”. No seu discurso de encerramento das atividades da Academia, em dezembro de 1897, ao tratar do programa de atividades, Machado disse que nos cabia “trabalhar pela extensão das idéias humanas”.
Este trabalho, de natureza institucional, a ser desenvolvido no pluralismo de nossas perspectivas e sensibilidades individuais, penso eu, passa por um empenho numa política de cultura, vale dizer, para continuar com a lição de Bobbio, pela dedicação e defesa das condições de existência e do desenvolvimento da cultura, como um programa de ação estrategicamente voltado para a preservação da liberdade. Isto requer uma cultura livre, não tolhida por impedimentos materiais e políticos. Exige espírito crítico, para não transformar a palavra em precária sapiência profética; empenho na veracidade, para resistir à mentira e ao engano e vocação de probidade, no rigor do método e na seriedade que deve proceder o criar, o julgar e a tomada de posição.
Expliquei experiências. Tratei de conceitos. Articulei a narrativa de percursos. Encerro com os afetos. Relembro meus pais - Betty e A. Jacob Lafer - já evocados neste discurso, que sempre afetuosamente me apoiaram e a quem devo o que sou. Penso nos que me cercam no cotidiano com amor, estímulo e carinho: Mary, minha mulher, tradutora de Hesíodo, professora de Língua e Literatura Grega na USP, que reforça o vínculo das letras, povoando o nosso dia a dia com a presença do mundo clássico; Manuel - Manu, meu filho, médico pediatra de dedicado espírito público, criador de música e de letras de sopro poético; Inês, minha filha, psicóloga de formação, empenhada em atividades de cunho social, voltada para a efetivação dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes; Tiago, meu caçula, estudante universitário, de múltiplos interesses e fina sensibilidade, com o qual dialogo sobre o pluralismo da existência, dele ouvindo pertinentes citações de Shakespeare. Penso na minha irmã, Marina, herdeira e continuadora, como eu, do belo legado de nossos pais.
Olho para a fotografia, tirada no início do século XX na Rua XV de Novembro 10, em São Paulo, do meu bisavô Selman Lafer sentado de sobrecasaca, cercado pelos seus filhos e sua mulher, e ouço o “soluço de vida” que dele provém. Escuto, neste soluço, a narrativa de quem veio para o Brasil, da restrita e pequena comunidade judaica de Podzelwa, da Lituânia, na última década do século XIX, por iniciativa de seu sobrinho Maurício F. Klabin - o pioneiro da minha grei, que desembarcou em Santos em 1890 e abriu, com o seu talento, horizontes para toda a família. Imagino que Selman Lafer, como caixeiro-viajante e representante comercial da então modesta empresa Klabin Irmãos & Cia., não terá notado a fundação da Academia Brasileira de Letras na qual hoje o seu bisneto se empossa. Penso também nas “estórias” da minha família mais ampla - que hoje, para minha alegria, me acompanha nesta cerimônia - e que na passagem das gerações, superando os desafios da imigração e da necessidade encontrou, ao enraizar-se no Brasil, um espaço de liberdade para empreender e criar tantas coisas em tantas áreas na vida nacional. Penso, concluindo, no que diz o Pirkei Avot - a Ética dos Pais - quando compara as ações às raízes das árvores e a sabedoria às suas folhas, indicando que quando sopra o vento das tempestades são as raízes e não as folhas que sustentam a árvore.