Estudo de taxinomia literária, publicado na Folha do Norte, a propósito das Visões de hoje, de Martins Júnior.
Começo por uma afirmação bem entristecedora: apesar da publicação quase diária de livros, de folhetos, de avulsos, nós - brasileiros - não temos uma literatura.
A razão é simples: os livros, atirados à publicidade no Brasil, nem brilham pela beleza do estilo, nem primam pela frescura de ideias.
Os nossos literatos, ordinariamente anacrônicos e atrasados, se não são artistas da palavra, ainda menos podem ser considerados arquitetos do pensamento.
O pouco bom que possuímos, como as explorações geológicas de Araújo Ribeiro, os estudos antropológicos de Couto de Magalhães, as investigações filológicas de Batista Caetano, as notas lexicográficas de Manuel de Melo, Macedo Soares e Paranhos Júnior, os trabalhos botânicos e zoológicos de Barbosa Rodrigues e Ladislau Neto, as vistas filosóficas de Guedes Cabral e Pereira Barreto, as experiências fisiológicas do Dr. Lacerda, a crítica encantadora e deliciosa de Tobias Barreto, e mais umas raras publicações atestando estudos e vistas novas, como os livros de Sílvio Romero, Sousa Pinto e Carlos von Koseritz, não bastam para salvar-nos da anemia intelectual, que está a anuviar este belo pedaço da América, onde tudo é grandioso exceto o pensamento.
Não há muito um dos nossos beletristas dizia ao público:
“Quando o Brasil tentar escrever a epopeia da humanidade em ciclos históricos, quando explicar o homem pelo universo, a natureza pela arte, o drama pela alma, o romance pela sociedade, então sim, então pode dizer-se: possuímos uma literatura.”
Mas no Brasil, onde está o sábio que já tivesse estudado a vida física, psíquica e histórica, combinando estas três fenomenalidades em uma grande unidade e formando com ela uma concepção mecânica do universo? o romancista que já tenha descrito o drama da vida social moderna, analisando com profundeza os segredos da alma humana? o crítico que já diagnosticasse as causas das nossas desilusões e desesperos, e profetizasse as nossas aspirações e os nossos ideais? o artista, que em harmonias de linhas, de cores ou de sons já monumentasse um belo hino à natureza?
Onde está o nosso Kant, Spinoza ou Haeckel, o nosso Shakespeare, Goethe ou Tolstoi?
Na minguada galeria das notabilidades brasileiras seria inútil procurar um espírito com uma centelha de gênio na fronte a abrir largos horizontes ao pensamento humano, ou uma natureza seleta, em cujo coração tenham feito eclosão crisálidas de sentimentos superiores em busca de novos ideais.
No primeiro século de colonização - XVI - seria fatuidade falar numa literatura brasileira.
Ainda não há bastante tempo para que o solo, a atmosfera, a flora, o clima tenham modelado uma nova estrutura cerebral.
Era o momento da luta entre a natureza moral e intelectual, constituída pelas ideias, pelos sentimentos, pelos costumes e tradições portuguesas, e as novas condições de existência dos que nasciam ao Brasil.
A hereditariedade da constituição mental continuava a reagir contra as influências do meio físico. O poeta pernambucano Bento Teixeira Pinto, autor da Prosopopeia, ainda é uma organização hereditariamente portuguesa constitucionalmente refratária a toda adaptação americana.
[...]
(Filocrítica, 1886)
O DIREITO E O DESENVOLVIMENTO GERAL DA CIVILIZAÇÃO
No estudo das instituições jurídicas não se pode deixar de recorrer à História e Filosofia do Direito.
Somente com o emprego deste duplo processo, induzindo da observação direta dos fatos jurídicos e deduzindo dos princípios da ciência social, sem inferir por simples analogias com as ciências biológicas, como até hoje se tem praticado, poderá o jurista ser bem sucedido em suas investigações.
Mas do ponto de vista histórico-indutivo dever-se-á completar os dados da Etnografia com os da Paleontologia. Deste modo é que se conseguirá esta educação largamente antropológica, de que fala Manouvrier, indispensável ao jurista moderno.
As ideias rudimentares do Direito, escreve Sumner Maine, são para o jurisconsulto o que as camadas primitivas da terra são para o geólogo: nelas estão potencialmente contidas todas as formas que o direito toma depois.
Não basta, porém, observar exclusivamente os fatos jurídicos, é essencial estudar o laço, que prende o Direito ao desenvolvimento geral da civilização.
A este respeito nota Hildelbrand que para poder afirmar que tal direito ou tal costume é de origem mais antiga ou mais primitiva que tal outro Direito ou tal outro costume, é preciso comparar não somente as relações jurídicas e os costumes desses povos e dessas épocas, mas ainda todas as outras manifestações de sua vida ativa.
“Se não se procede assim, continua o sábio reitor de Universidade de Graz, o tertium comparationis faz falta, e o método comparativo é uma faca sem lâmina.
A resposta à questão da origem e evolução do Direito e dos costumes não está no domínio étnico-jurídico, mas além. E não é senão estendendo-se o método comparativo a este além, que se poderá resolver o problema de uma história geral do direito e dos costumes.”
Tratando-se de estudar as instituições jurídicas de um povo, somente a história em sua mais larga acepção, o meio social todo inteiro, economia, ciência, moral, religião, arte, indústria, o Aussenwelt, no dizer de Ihering, poderá dar a medida de seu valor presente e a orientação de suas transformações futuras.
Daí o laço que deve existir entre o método histórico-indutivo e o método filosófico- dedutivo na solução do problema social do Direito.
À sociologia cabe fornecer as leis fundamentais, a que obedecem os fatos sociais, como o fio condutor, que deve guiar o investigador no emprego do método filosófico-dedutivo ao estudo das instituições jurídicas.
Em vão buscar-se-ia na história das legislações, mesmo no que Neucamp chama a história evolutiva do direito, resposta para as seguintes questões: Que é que em dado momento jurídico deve ser conservado ou eliminado? Que é que não passa de uma sobrevivência do passado ou contém germens de desenvolvimento futuro? Que é que na marcha evolutiva, nas incessantes transformações, nas metamorfoses infinitas de uma organização jurídica, está destinado à morte ou fadado a advento mais ou menos próximo ou remoto?
Debalde buscar-se-ia no Direito em si o raio visual necessário para a apreciação de um regímen jurídico em vigor, coloque-se o jurista filosófico no ponto de vista da escola do direito natural, que admite a existência de um direito inato ao homem, anterior e superior à sociedade, jus quod natura omnia animalia docuit, ou no ponto de vista da escola histórica, que atribui o desenvolvimento do direito a uma evolução espontânea fora da ação das causas exteriores.
O Direito não evolui por si mesmo: sempre em correspondência direta com a constituição social de um povo, ele varia, à medida que variam as condições desta constituição, devidas a particularidades, cada uma das quais dará feição especial às diversas teorias sociais.
Múltiplas são as teorias sobre o processus social; mas todas elas podem reduzir-se a quatro grupos principais: teorias darwinistas, teorias spencerianas, teorias comteanas, teorias analógico-orgânicas.
Com a vitória do darwinismo, passando o homem a ser considerado a mais elevada expressão do mundo orgânico, nada mais justificável do que aplicar às ciências sociais os resultados obtidos pelas ciências naturais, nada mais legítimo do que a tendência para explicar a evolução da humanidade pela teoria da natureza.
Para o desenvolvimento extraordinário que tomou o darwinismo social, concorreu consideravelmente a ideia fecunda da independência dos diversos ramos do saber humano.
Se o Princípio da População, de Malthus, inspirou a Darwin a concepção da luta pela existência, era de esperar que a ideia fundamental da teoria darwiniana, aparecendo no firmamento intelectual como uma estrela de primeira grandeza, viesse iluminar as mais longínquas regiões do mundo científico.
Mas, apesar do renovamento operado pelas aplicações sociais do darwinismo, este, por si só, era insuficiente para explicar o processus social.
Em primeiro lugar a luta do homem contra o homem, ao passo que a luta anima se trava entre espécies diferentes.
Uma outra distinção é que na luta animal os vencidos são eliminados, ao passo que na luta social os vencidos não são eliminados senão no caso de absoluta impossibilidade de serem conservados como instrumento de exploração.
A relação de parasitismo entre vencedores e vencidos constitui uma das faces mais curiosas e características da história da humanidade.
Como consequência do parasitismo resulta o fenômeno especial do processus social, isto é, ser o elemento vencedor o principal interessado em conservar o elemento vencido, porque a destruição da presa arrastaria o atrofiamento, senão a morte, do parasita.
Não satisfeitos com a aplicação às ciências sociais dos resultados obtidos pelas ciências naturais, diversos discípulos de Darwin, dando uma feição exagerada à doutrina do mestre, procuraram equiparar o organismo social ao individual, e subordinar as sociedades humanas às leis da biologia.
(Propedêutica político-jurídica, capítulo II, 1904)