Como trazer até nós o passado? Ou os passados? E de qual deles queremos ser continuadores ou descendentes? E por que, desde quando andávamos, nômades, a desenterrar raízes, a caçar lagartos e a recolher frutos caídos no solo, trazemos, apertada contra o peito, a sacola com os ossos de nossos avós? E por que insistimos tanto em imaginar e compreender como eles foram e o que fizeram?
Estas e muitas outras perguntas, talvez se fizesse o jovem Arno Wehling, enquanto juntava e contrastava o que de formas, palavras e sons ficara de tempos idos, para tentar refazer-lhes o cenário e o enredo. Já então o fascinavam os processos de entendimento, composição e transmissão dessa disciplina a que chamamos História e as mudanças que nesses processos se fizeram e se fazem no correr das gerações. Desde cedo, portanto, já o tomara o interesse pela historiografia, ou, melhor, pela história da História e dos métodos de que ela se vale. Não fora assim e o seu primeiro livro, publicado aos 27 anos, não se chamaria Os níveis da objetividade histórica. Nos que se seguiram – como A invenção da história: estudos sobre o historicismo – e em incontáveis trabalhos impressos em revistas especializadas e obras coletivas, e em conferências, palestras e comunicações em simpósios, respiram a segurança e o entusiasmo do estudioso que se tornou íntimo das teorias que movimentam as ciências humanas e outros saberes.
Destaque-se, entre suas obras, esse livro precioso, exemplo de concisão e claridade, que é Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, no qual se analisa o pensamento ultraconservador do Visconde de Porto Seguro, à luz das ideias prevalecentes no seu tempo, se descreve o seu apego intelectual e afetivo ao projeto centralizador da monarquia brasileira, e se mostra como esse pensamento marcou até mesmo o ensino da história do Brasil às crianças e aos adolescentes. Não foi o meu caso, nem o dos meninos do Nordeste de minha geração: aprendemos, nos livros para a escola escritos pelo pernambucano Mário Sette, a, contrariando Varnhagen, estimar e reverenciar Palmares e os revolucionários de 1817 e 1824. E, chegados à idade própria, os primeiros historiadores cuja leitura nos recomendaram foram o maranhense João Francisco Lisboa e o cearense Capistrano de Abreu.
Nem todos os ventos sopravam a favor do centralismo da Corte, conforme a pregação de Varnhagen, descrita magistralmente por Arno Wehling, tanto nesse livro quanto nos dois longos trabalhos que escreveu como introdução para a recente nova edição do Memorial Orgânico, do mesmo autor. Estado, História, Memória, além de ser uma biografia intelectual de Varnhagen, é um relato sobre a sua época e sobre as mudanças que nela se deram na maneira de escrever e ler história.
De quem ganhou os anos no exame e na crítica das lições que recebeu sobre como acolher, organizar e explicar os acontecimentos, era de esperar-se que, por inclinação do espírito, se dedicasse também à história das ideias – especialmente à das ideias políticas e jurídicas – e das instituições que as refletem ou encarnam. E assim tem sido com Arno Wehling, que nos deu Fomentismo português no Brasil: doutrinas, mecanismos, exemplificações, Administração portuguesa no Brasil (1777-1808) e, em parceria com a sua mulher, a historiadora Maria José Cavalleiro de Macedo Wehling, essa obra de altíssima qualidade que é Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.
De mãos dadas, Maria José e Arno Wehling já nos tinham entregue, alguns anos antes, um belo livro de síntese e interpretação histórica, Formação do Brasil colonial, cujos capítulos não escondem, em sua concisão e rigor, o quanto de trabalho lhes devem.
E feita de trabalho é a trama que corre por entre a urdidura de suas horas, dias e anos, Senhor Acadêmico Arno Wehling, uma espécie de obstinação de servir, e de bem servir, e não só como professor de Teoria e Metodologia da História e de História do Direito e das Instituições, e como administrador universitário, mas também como participante ativo das várias organizações a que foi chamado a pertencer ou para as quais se voluntariou.
De uma destas, o seu nome, Acadêmico Arno Wehling, não mais se separará: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que preside desde 1996. Bastava fazê-lo com firmeza e dedicação, mas de sua chefia sempre quis e quer mais. Nessas duas décadas de presidência, não cessou de recomendar que olhássemos para o Instituto, atentos ao que há de novo no que consideramos tradição. E que constantemente o repense, como dão prova as dezoito reflexões que constam da segunda edição do seu livro De formigas, aranhas e abelhas – título tirado de um aforismo de Francis Bacon, no qual se dividem os homens de saber e ciência em três tipos: os que observam os fatos e, como formigas, armazenam conhecimentos; os que retiram de si próprios a matéria com que trabalham, como as aranhas a formar a teia; e os que, como as abelhas, ao recolher das flores o pólen para fazer o mel, explicam e organizam com a razão o que lhes fornece a experiência.
Nessas reflexões, tendo por bom pretexto o IHGB, trata-se do ofício e da oficina do historiador, da investigação pessoal e da convergência de pesquisas, do convívio fecundo das discordâncias, do odor dos arquivos e do prazer do papel escrito ou desenhado que se arrisca a esfarelar-se em nossas mãos.
A matéria de seus e de nossos cuidados é o tempo. Não para negar que seja ele o inimigo da vida, porque a consome, nem para pedir-lhe que descanse ou pare, mas para recuperar pedaços de passados que não fomos, mas que, muitas vezes, fazem parte de nossa saudade coletiva e talvez nos expliquem.
Ao que chamamos história poderia, em muitos casos, chamar-se poesia – e na mesma estante conversam Homero, Dante, Camões, os bardos somalis, Gibbon, Michelet, Cortesão e Huizinga –, porque ambas, história e poesia, aspiram a encontrar as palavras perfeitas e a conter em poucos parágrafos ou versos as emoções de uma vida ou os acontecimentos de um século.
Entre muitos povos africanos – e sirvam de exemplos, na Alta Guiné, os jalofos, os sereres, os senufos, os bambaras, os mossis, os dogons e os bobôs, poeta e historiador se confundem ou, melhor, são a mesma pessoa. O griot ou diéli que sabe de cor e recita a genealogia do rei e que relembra uma série de batalhas, louva a luz da manhã, canta a colheita do arroz e celebra a bem-amada. E de Homero, há quem diga, pelo menos desde Platão, que, sendo poeta, era, a seu modo, historiador. Aedo, continuamos a tê-lo como arrimo e mestre no que imaginamos terem sido a Idade do Bronze, o Mediterrâneo micênico, a chamada Idade Escura da Grécia, os gregos arcaicos ou a guerra de Troia, não obstante os achados da arqueologia, que, se aqui o confirmam, ali o corrigem e acolá o desmentem ou negam. Mesmo se ficção ou mito, os aqueus e os troianos de Homero ganharam carne, sangue, voz e movimento, e se fizeram parte essencial de nossa memória. Por isso, ainda que não tenham existido, existiram.
Não é raro que um poeta nos ajude a nos emocionar com um historiador, e este, a melhor compreender aquele. Assim, se lemos as “Cinco Preces na Catedral de Chartres”, de Charles Péguy, antes ou depois dessa obra-prima que é Mont-Saint-Michel e Chartres, de Henry Adams, da qual ressurge a Europa dos séculos XI a XIII, completamos uma experiência de beleza que se encostaria à perfeição, se incluísse demorada visita àqueles dois santuários.
Deles, vamos ao mosteiro de Alcobaça, onde estão sepultados, um frente ao outro, à espera do reencontro no Juízo Final, o rei D. Pedro I de Portugal e D. Inês de Castro, a “que depois de ser morta foi rainha”. Não importa quanto pesem os documentos e se aprofundem as análises dos investigadores: o enredo de suas vidas será para sempre a história de amor narrada comovidamente no canto III de Os Lusíadas.
Não se estranhe, portanto, que um historiador suceda, nesta Academia, a três grandes poetas. A história é uma ciência, mas, quando bem escrita, pode ser uma obra de arte literária. Os quatro volumes da História de Portugal e os três de História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal possuem a mesma qualidade, como literatura, que Eurico, o Presbítero e os outros romances de Alexandre Herculano. Sendo uma obra de história, Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, é uma das mais altas criações da literatura em língua inglesa. E fique sempre lembrado Capistrano de Abreu como – e não apenas em Capítulos de História Colonial e em Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil – um dos nossos mestres da prosa, daquela prosa direta, clara, limpa e concisa, que caracteriza uma linhagem de escritores que têm o seu modelo no Padre Manuel Bernardes de Pão Partido em Pequeninos e de Nova Floresta.
É esta a sua linhagem, Senhor Acadêmico Arno Wehling. A linhagem dos que podem dizer com Almeida Garrett: “Isto pensava, isto escrevo; isto tinha na alma, isto vai no papel: que doutro modo não sei escrever.” Saberia, se quisesse. Mas prefere fugir das formas barrocas e dedicar-se à busca dos termos exatos para expressar-se com nitidez e cuidada simplicidade. E não falta a muito de seus textos o bondoso e calmo sorriso com que acompanha o que ouve e diz. Por isso, ao trazê-lo para o nosso convívio, ganhamos, além de um grande historiador e homem de pensamento, alguém que nos transmite o gosto de ser feliz.
Como se dizia em minha terra, na terra da minha infância, abanque-se, Acadêmico Arno Wehling.