IDÉIAS CONSOLADORAS
Quase todos sofrem na existência; raros conscientes não têm padecido os acúleos das dores morais; e já há milênios que a metáfora religiosa afirma ser o mundo “vale de lágrimas”.
Há, como todos sabem, sentimentos depressivos, magoantes de origem real, e outros de fonte puramente nervosa. Em ambas as hipóteses, a consciência sofre porque se apercebe das dores verdadeiras, ou imaginárias. A dor é um estímulo e um inimigo: conduz à reação, mas aniquila, às vezes, a personalidade moral. Sofremos mais pelos sentimentos do que pela razão propriamente dita. A sensibilidade de cada um aumenta ou diminui, minora ou agrava os padecimentos afetivos. Diante, porém, das amarguras da vida é sempre possível evocar ideias consoladoras para os padecimentos físicos e morais.
Refere-nos Liebault que o filosofo Kant, quando tomado de fortes crises de palpitações e dispneia, evocava ideias agradáveis e felizes e os sofrimentos se dissipavam progressivamente, e que o famigerado pensador Bacônio, quando ia arrancar um dente, conduzia os pensamentos para as coisas alegres e quase não sentia ou percebia dor. Muitos exemplos são repetidos por colendos observadores. Na própria dor física há um elemento psíquico indiscutível, constituído pelo medo, ou pavor. Quando nos aproximamos da cadeira do dentista ou quando somos ameaçados do bisturi do cirurgião, ou da agulha de uma simples injeção subcutânea, julgamos que as dores são maiores do que sucede na realidade. Quanta vez, após pequena operação não sentimos aquilo que tanto temíamos!
As ideias alegres e consoladoras devem surgir no limiar da consciência quando há sofrimentos físicos ou morais. Os conselhos de Feuchterlebens e de São Francisco de Sales são a este respeito dignos de leitura atenta, pelos timoratos e desanimados da vida. Sofrer é em regra o pábulo de todos os corações. Não creio que haja alguém mais do que outrem. Os males morais computam-se habitualmente por igual quinhão por todos.
Naturalmente, quanto maior a nau, maior a tormenta. O otimista razoável não reconhece a ausência da dor na existência; ao contrário, assinala-a, mas esforça-se por vencê-la. Neste particular, o otimismo, o estoicismo e a religião cristã muito se parecem. A dor física e a moral são contingências da vida, e quanto mais esta se aperfeiçoa, mais o organismo se torna a elas sensível. O nosso dever está em sempre afastá-las, e não cultivá-las.
Cada vez que surgir dentro da alma sofrimentos sinceros e profundos devemos evocar as ideias consoladoras, substitutivas das mágoas insolúveis. A saudade pode exalar cheiros venenosos, ou perfumes doces. Depende do cultivo moral da planta; depende, pois, do agricultor. Não poderemos dizer à mãe amantíssima, à esposa inconsolável, ao pai extremoso que arranquem subitamente do peito as setas que lhes malferem o coração, pela morte ou desgraça dos entes estremecidos. Porém, podemos ensinar-lhes as evocações das ideias consoladoras, de paz, de caridade, de justiça, de razoabilidade, e a grande resignação, que constitui a nobreza da alma.
Nietzsche, no fulgor impiedoso da cultura da energia, aconselha o estrangulamento da dor moral, porque a resignação, a piedade humana e outros sentimentos religiosos são covardias da alma. Se o homem realmente pudesse ser o ente vigoroso de ânimo e nobre de espírito, indiferente aos males da vida e aos desgarrões da fortuna, segundo o conceito de Sêneca, de Kant e até certo ponto de Nietzsche, então a humanidade teria atingido à saúde moral absoluta. São, porém, raros os que se comportam assim diante das dores e dos desfortúnios. Esforcemo-nos sempre para minorar os desgostos e padecimentos da alma; e procuremos embotar o amor próprio, diminuir a impetuosidade das paixões, e respirar o ar puro onde florejam a resignação e as ideias consoladoras. A lágrima e o sorriso vivem a captar a simpatia da humanidade. Não sei por que o homem diz gostar mais do sorriso, apesar de viver mais tempo ao lado da lágrima.
Toda vez, porém, que penetrar dentro da morada dos nossos sentimentos o hóspede incômodo que é a dor, se não houvermos forças para enxotá-lo, que o substituamos, aos poucos, pelas ideias consoladoras, pelas ideias do bem alheio, que é a mais nobre de todas as ideias.
Preceitos e conceitos, 1921.)
ASCENSÃO ESPIRITUAL
A vida é elevação. A espiritualidade humana faz ascender o homem às culminâncias do belo e da filosofia. Temos dentro de nós maquinismos poderosos que nos propelem pura as grandezas civilizadoras e para os ideais elevados. Tais mecanismos são as ideias e os sentimentos. Podemos chegar com eles aonde quisermos, porque a vida é uma ascensão, e viver bem é elevar-nos dentro nos mesmos pelas forças inesgotáveis do espírito, que é sempre criador e aperfeiçoador. Cumpre-nos abandonar de vez as noções errôneas do fatalismo, das dúvidas contínuas, do caiporismo, ou da infelicidade, que são criações imaginárias do lado sombrio e bastardo da alma.
Quem vive com justeza progride sempre; é preciso fomentarmos três ou quatro noções elementares do bem humano e termos confiança em nós mesmos, e a vida nos será a bela ascensão. Viver, para quem sabe querer, é subir.
Os que se julgam inferiores e vencidos tornam-se assim porque os pensamentos depressivos lhes são os guias. Pensar erradamente é vício funestíssimo. Meditar constantemente acerca do mal, viver nas dúvidas e desilusões, cogitar em desgraças futuras e mergulhar-se no pessimismo, é preparar tais elementos para o horário da vida.
As ideias possuem elastérios infinitos como o próprio universo. Temos dentro de nós vários sistemas planetários que nos podem iluminar a existência. Também há no recesso do nosso espírito todas as tempestades e catástrofes, se para isso se dispuser a imaginação. Cumpre-nos sempre colher os sóis maravilhosos do pensamento e abandonar as sombras e negruras que possam viver dentro de nós como forças negativas.
O amor à vida constitui a grande conquista da própria existência humana e só assim o indivíduo ascende à montanha sagrada da vitória, até o ápice grandioso da serenidade final.
A ideia de triunfo já é o começo do próprio triunfo e a firmeza do pensamento bom e útil resume o primeiro passo para o êxito feliz.
Vencer é questão de ideias e treino. Quem se dispõe à conquista com bastante confiança em si, inicia instintivamente a marcha triunfal dos desejos.
A ascensão da vida é um caminho como outro qualquer: há nele doçuras e asperezas. O fito principal está no fomento da força e da alegria, que são preparatórios da boa fortuna. O resto virá porque a imaginação amadurecida se torna cedo ou tarde sucesso real.
O pensamento deve fortalecer-se dia e noite nos desejos e aspirações que se hão de organizar como os planos arquitetônicos ou os princípios estratégicos. A vontade surge espontaneamente de tais preparativos.
Vencer é instinto; subir é função natural da vida, pois a força da ideia é tudo e as nossas atitudes dependem das representações mentais. Vontade e imaginação propelem-nos como os ventos aos batéis no oceano misterioso da existência.
Ascensão espiritual, 1934.)
O ACADÊMICO OSVALDO CRUZ
Após todas as conquistas técnicas e profissionais reconhecidas e louvadas pela imprensa, pelos políticos, pela classe médica, pelas associações científicas nacionais e estrangeiras e pela população em geral, as camadas fidalgas da cultura espiritual logo imaginaram um topo mais alto para colocar Osvaldo Cruz.
Foi posta à baila nos meios intelectuais a candidatura de Osvaldo Cruz para a Academia Brasileira de Letras. Naturalmente os maléficos e insatisfeitos acoimavam de imprópria a entrada do sábio higienista para a casa de Machado de Assis. Diziam que o candidato não era literato e não conhecia o vernáculo. Puro erro! Osvaldo Cruz era esteta; cultivava a arte nos momentos aprazíveis da sua intelectualidade sensível e sempre se cercava de coisas belas que lhe proporcionavam prazer espiritual. Solicitado por dois acadêmicos rejeitou o convite dizendo não ser literato, e ao mesmo tempo não desejaria prejudicar a outrem que aspirasse à curul acadêmica. A opinião da imprensa dividiu-se: uns pensavam que a Academia era de Letras e outros opinavam que podia agasalhar os expoentes nacionais de qualquer distrito intelectual. Osvaldo Cruz mostrou-se sempre indiferente ao pleito eleitoral acadêmico, e na luta final em competição com Emílio de Meneses logrou dezoito contra dez, na vaga Raimundo Correia. O galardão não lhe aumentava a glória, porém a Academia Brasileira recebia no seio um dos maiores homens da nossa raça. No dia da posse lá estavam os grandes representantes da cultura intelectual e da fina flor da sociedade. O sábio substituía o grande poeta e o discurso do novo imortal foi por todos aplaudido pela beleza, elegância, sobriedade e profundeza de análise psicológica e literária que o recente habitante daquele sodalício revelou. O cientista ocultara sempre a limpidez e a formosura do seu espírito. Recebeu-o o consagrado escritor Afrânio Peixoto. Na oração, Osvaldo Cruz fez a descrição minuciosa da personalidade humana e da sensibilidade poética de Raimundo Correa. O juiz e o aedo foram exaustivamente analisados; o poeta tinha remígios geniais. O orador planou a constituição neuropática, a cultura jurídica e o pragmatismo do seu antecessor, cuja bondade e imparcialidade harmoniosamente se equilibravam. Estudou-se minuciosamente o parnasiano. A beleza primorosa, o vocabulário simples e sonoro formavam, disse o recebido, o encanto da poesia de Raimundo Correia, cuja expressão estética oscilava entre a natureza e a imaginação, entre o belo objetivo e a concepção objetiva do sentimento humano. “O poeta é exímio pintor, sabe dar com a pena os coloridos vivos e quentes de nossa natureza, traçando as mais belas paisagens de nossa terra; o cenógrafo incomparável - emprestou ao colorido de nosso céu, de nossos inigualáveis crepúsculos, o cenário em que canta o poema inesgotável do amor...”
Pereira de Carvalho, no livro Os membros da Academia em 1915, ao traçar-lhe sintética biografia, diz que “em favor de Osvaldo Cruz labora ainda a razão por demais forte, de ser ele um tipo excepcional de cientista; é um sábio, um gênio, que em benefício da humanidade vive produzindo no recolhimento do seu laboratório as pesquisas e descobertas que já lhe valeram glória universal e referências sinceras do mundo culto”.
Ezequiel Dias, como discípulo querido, exaltou as qualidades estéticas do Mestre e no entusiasmo das expressões disse que “era-lhe tão viva a sensibilidade, tão profundas as paixões, tão requintada a sua estética, tão e tão variados os seus modos de viver, pensar e agir que lhe seria impossível vazar na disciplina do metro o tumulto de sensações que o empolgava”.
E Afrânio Peixoto ao recebê-lo: “Vós sois como os grandes poetas que não fazem versos. Nem sempre estes têm poesia e ela sobeja na vossa vida e na vossa obra.”
Na realidade Osvaldo Cruz se nos depara como pensador, e ao mesmo tempo, esteta, sábio e artista; renovador e construtor; ciente e cultor das artes, enfim homem representativo da época em que viveu e que se acha gravada na memória e no coração dos brasileiros.
Osvaldo Cruz, 1944.)
REMINISCÊNCIAS DO SIMBOLISMO
Iniciei o convívio nas rodas literárias do meu tempo de jovem e devo referir-me com imensa saudade aos companheiros de letras a quem admirava e estimava. Cito entre os mesmos alguns mais velhos do que eu e os quais considerava mestres, como Cruz e Sousa, Gonzaga Duarte, Lima Campos e Mário Pederneiras, e outros jovens, que eram os irmãos de arte - Oliveira Gomes, Gustavo Santiago, Cardoso Júnior, Neto Machado, Luís Edmundo e mais alguns. Fundamos nessa época a revista literária Vera-Cruz; instituímos o grupo de “Os Novos”; escrevemos para nós um Decálogo impresso em vermelho e negro; defendemos a arte extravagante dos decadistas e simbolistas, também denominados nefelibatas. Combatemos e fomos asperamente combatidos. Ninguém mediamente sensato nos tomava a sério, mas publicamos livros, revistas, escrevíamos em jornais, reuníamo-nos em tertúlias e tínhamos a bandeira escandalosa de guerra para derrubar os velhos parnasianos, românticos e realistas. Nossa grande admiração era para Mallarmé, Moréas, Verlaine Rimbaud, Eugénio de Castro, Antônio Nobre, João Barreira, isto é, os escritores revolucionários do tempo. Dividia a minha atividade intelectual entre as aulas da Faculdade de Medicina, as minhas lições particulares e os ensaios literários que perpetrava. Publiquei nessa ocasião três livrinhos - Manchas, Novas Manchas e Velho Tema, além de poemetos e poesias esparsas. Fui sempre bastante atacado pela critica conservadora e nunca me consideraram como literato. Usava eu o pseudônimo Antônio Zilo.
Devo mencionar aqui um voto de profunda saudade e sincera admiração pelo inolvidável companheiro e amigo Oliveira Gomes, cujo talento literário, jornalístico e cujo caráter firme e imensa bondade bastante a ele me prenderam. Terra Dolorosa foi o seu livro de estreia, de prosa fina, cuidada, cheia de inspiração artística e de grande sentimento estético. Oliveira Gomes era tímido, porém seguro na feição literária e no gosto artístico que possuía. O estilo era correto e colorido e as belezas de seus conceitos possuíam o brilho inconfundível de escritor de raça. Foi durante alguns anos redator de A Notícia com raro senso e segurança do mister. Desgraçadamente, finou-se ferido pela tuberculose pulmonar, de que só cuidou tardiamente, sem se aperceber do mal incurável que o dominou. Sobre ele fiz na Academia Brasileira (1941) pequena conferência em que lhe estudei a vida e a obra, sempre com o coração cheio de saudade pelo companheiro que sinceramente amei e admirei.
A minha pena sofreu tanto como o meu coração porque se me feriu o amor-próprio por causa dela.
Comecei pelos ensaios juvenis, em esboços elementares, do tempo de rapazelho em que nada eu fizera de aproveitável.
O verdadeiro início da minha atividade literária surgiu-me aos 17 ou 18 anos, quando ainda estudante de Medicina. Contos, versos, prosa, ensaios científicos saíram-me da destra, sem que tivessem grande valor.
Dos 18 aos 22 anos filiei-me na escola simbolista e pertenci “aos novos”. Publiquei então dois pequenos volumes de contos e fantasias, recebidos com aplausos pelos camaradas e atacados com severa crítica por Valentim Magalhães, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque e outros.
Tenho doces lembranças daqueles idos. As almas estavam cheias de ilusões. Cultivamos a tortura literária, a dor artificial, o sofrimento imaginário e o pessimismo mórbido. O nefelibatismo ferira-nos a inteligência e vencera-nos o senso artístico. Crescemos. Amadurecemos... a nuvem cinzenta passou. Somente Cruz e Sousa e Mário Pederneiras conservaram a grandeza poética daquele tempo.
Frustos, in Obras completas, vol. V, 1946.)
A ENFERMIDADE DE OLAVO BILAC
Os últimos seis anos do princípe e dos nossos poetas foram muito dedicados aos incômodos de saúde que lhe apareceram; já eram os prenúncios longínquos do sucesso sinistro que, hoje, na Academia, lamentamos como eco do Brasil inteiro e das partes onde a língua portuguesa é entendida.
O turgor vital das épocas tropicais da sua existência começava a ceder lugar às primeiras quedas das folhas outoniças da vida jovial, boêmia e sonora como os seus versos, tocada do panteísmo sensual, que lhe constituía a maneira de denunciar o talento glorioso.
Dizia aos amigos que o clima, sobretudo no verão, lhe era sumamente prejudicial à saúde; precisava de novas plagas, da travessia do Atlântico, que se lhe tornava balsâmico e renovador das forças; por isto visitava, periodicamente, quase anualmente, o velho continente, principalmente Lisboa e Paris.
Em uma das suas viagens recebeu a apoteose da Academia das Ciências de Lisboa e ficou incorporado aos bons poetas portugueses, como o considerou Fernando Costa, apesar de muito brasileiro, na consonância cristalina e alegre das suas rimas.
As forças somáticas iam-se-lhe enfraquecendo enquanto as energias psíquicas amadureciam doiradamente, na prosa tersa e brilhante e nos versos repassados de ceticismo, de filosofia e, às vezes, de verdadeiros relâmpagos.
Consultara médicos em Paris.
Haviam encontrado a hipertrofia cardíaca demonstrada pela radiografia, que Bilac guardava com carinho, como se lhe fosse um documento inestimável do próprio ser. Os íntimos viam-lhe as faces perderem o brilho da madureza sadia de antanho e o corpo emaciar-se progressivamente.
Quando cheguei ao Rio, em 1893, conheci Bilac; achei-o muito belo; talvez pelo reflexo da minha imensa admiração pelo menestrel fidalgo das nossas letras. Alguns achavam-no feio; sempre protestei contra este juízo; o que lhe enfeiava a fisionomia era o estrabismo divergente unilateral direito; mas ele procurava posições que minoravam este defeito, e o pince-nez dava-lhe graça e donaire ao rosto e a todo o porte.
Depois da conflagração europeia, o querido e admirado poeta não pôde realizar, com regularidade, as suas viagens; começava a sofrer mais e a sentir agravarem-se-lhe os padecimentos.
Era seu médico assistente e inclinadíssimo amigo o Dr. Henrique Venceslau, que solícito, competente e carinhosamente lhe ministrava socorros de urgência procurava equilibrar as energias físicas de um organismo que iniciava fraquejar.
Vária vez, conversei com o bondoso colega acerca do estado de saúde de Bilac, que, frequentemente, nas sessões da Academia, me referia os eventos da sua enfermidade, que o envolvia, num misto de temor e estoicismo, como quem prevê desfecho sinistro, em não longo prazo.
Pequenas consultas fazia-me, todas as vezes que neste recinto nos encontrávamos, e eu sempre o alentava, dizendo predominarem em seus padecimentos físicos os estados nervosos, as reações neurastênicas elementares, que sobrevêm, em momento de debilidade do organismo, em intoxicações.
Ele gostava deste explicar, apesar de a descrença leve com que me rebatia; perguntava-me. “E a hipertrofia?” - mas no fundo estimava a explanação, porque se julgava um autointoxicado veterano.
Tive a honra e a desfortuna de examiná-lo uma vez, no meu consultório. Referiu-me, mais ou menos, aquilo que foi acima dito e que constituía a anamnese da sua doença.
Queixou-se mais que lhe assaltavam, quase sempre, à noite, crises dispneicas, e após um surto de tosse sufocativa, deitava uma espuma rósea, ou expectoração mucosa.
Eram crises de edema agudo do pulmão.
Examinei-o com a alma confrangida e os sentidos atentos.
O que registrei no meu caderno de consultas foi o seguinte:
“Olavo Bilac, solteiro, 52 anos, brasileiro, literato, inspetor escolar aposentado, morador no Rio de Janeiro. Estado geral precário, com acentuado emaciamento.
Aparelho circulatório: coração hipertrofiado, sobretudo o ventrículo esquerdo; o tom aórtico mais acentuado que no normal; ritmo de galope inconstante às vezes arritmia.
O pulso com ser frequente não se achava pleno, nem muito hipertenso.
O aparelho respiratório denunciava ronquidos, ligeiros sibilos e estertores crepitantes da base dos dois pulmões, indicativos do edema crônico dos órgãos.”
Havia tido o inolvidável e grande companheiro, uma semana antes, mais ou menos, crise de edema agudo no pulmão, combatida heroicamente pelo distinto médico assistente, por meio de um drástico uso de ventosas secas e sarjadas e tônicos cardíacos por injeções e ingestão.
Dos órgãos abdominais, reparei o aumento constante e já irredutível do fígado; e esta glândula mostrava-se de bordas endurecidas e ultrapassava todos os limites normais. Havia dispepsia gástrica e, às vezes, constipação do alvo. As urinas estavam fortemente pigmentadas e revelavam tênues traços de albumina; havia, na ocasião, oligúria.
Vi que se tratava de processo de arteriosclerose, com predominância cardíaca, pois o quadro clínico resumia a miocardite crônica, no decurso da esclerose ângio-visceral, segundo a denominação que prefiro dar à enfermidade que assaltou esse organismo ainda moço, mas cheio de velhez.
Receitei-lhe a tintura de estrofanto associada à de valeriana (já estava intolerando a digital), para atender às principais indicações do momento: insuficiência crônica do miocárdio e nervosismo acentuado, e prescrevi o regime lácteo-vegeto-farináceo hipocloretado, já aconselhado pelo Dr. Henrique Venceslau. Uma vez por outra falava-me dos seus males, ora com esperanças, habitualmente com descrença.
Não me tornou mais ao consultório e continuou a tratar-se com o dedicadíssimo assistente.
Aí terminam os meus conhecimentos pessoais acerca do estado enfermiço do inimitável e glorioso poeta.
Os padecimentos se lhe agravavam em declive e a rampa sinistra foi aumentada pela “gripe” que ajudou o desequilíbrio do precário organismo.
O Dr. Henrique Venceslau ainda ouviu a opinião dos Professores Miguel Couto e Rocha Faria e nos últimos momentos foi-lhe dedicado assistente o Professor Henrique Roxo, e testemunhou os acabrunhadores padeceres do glorificado poeta.
A influenza anterior foi o prenúncio das ambicionadas Parcas, que há muito, andavam corvejando em torno daquela alma apolínea; e esta infecção foi, pois, a pregoeira da finalidade de um astro, que, precocemente, desaparecia das nossas letras, deixando a mancha indelével da saudade.
É sabido que a “gripe” é sempre grave, quando encontra organismos combalidos.
O assalto inficioso houve-se, relativamente, benigno; porém, as defensas e os emuntórios do corpo achavam-se exauridos e a consequência foi que o músculo cardíaco, que até então resistira mancamente, mas que se ia aguentando, os rins que, apesar de incompetentes, ainda davam conta do recado, para a pequena carga tóxico-alimentar, começaram a baquear em aclive progressivo.
Segundo me informou o Professor Henrique Roxo, o último quadro da sua doença foi de insuficiência cárdio-renal típica; coração impotente, albuminúria, deficiência acentuada do filtro renal, edema crônico e notável da base dos dois pulmões; fígado grande, congesto, duro, a que os anatômicos chamam “fígado de noz moscada”, isto é, todo o resumo sinistro e desanimador, que arrastava o prognóstico às sombras precursoras da morte.
Mesto, tristíssimo foi o desfecho clínico desta doença, entrecortado de anelações desesperadoras, insônia, desassossego, irritabilidade, inapetência, êmeses, o cortejo de moléstias e aflições que aos padecentes produz a assistolia inamovível.
Bilac era um caso perdido, concordaram os médicos que o assistiam e que foram chamados em conferência.
A maior tristeza, porém, não para ele, mas para os que o cercavam, amavam e admiravam, foram os últimos momentos delirantes do nobre espírito; segundo as informações do Professor Roxo, Bilac tomou de uma psicose, a confusão mental, de origem autotóxica, contingente, às vezes, da insuficiência cardíaca e renal, produzida pelos venenos retidos no organismo e que vão embeber o encéfalo e entorpecer a cortiça cerebral, desarmonizar as zonas da mentalidade.
Estas páginas deveriam talvez ser guardadas em segredo, no meio da família, entre nós que também lhe somos a família e sofremos da mesma moléstia da saudade, da insanável lembrança do grande morto, a qual só melhorará com estas descargas de sentimentalismo, que nos fazem bem. Porém, os talentos criadores, os grandes homens, são da humanidade; a vida deles é devassada pela curiosidade terrena; as virtudes, as faltas, os males, os sofreres são públicos, são de nós todos, porque a alma brasileira padeceu também das angústias enfermiças de Bilac. Não há para estes casos segredo profissional, porque a dor é nacional, porque o doente foi o próprio Brasil.
Bilac delirou durante os últimos dez, ou quinze dias.
Apresentava o caos ideativo, com crises de agitação e por isto foi removido para uma Casa de Saúde. Lá permaneceu. Tornou ao lar feliz e carinhoso da irmã, onde os parentes, amigos e admiradores rezavam fervorosamente para a diminuição dos padecimentos do poeta enfermo.
As suas últimas palavras proferidas não foram raciocinadas, como disseram os jornais.
Aquela alma já estava extinta. Tinha deixado, em seu lugar, a insânia, como anestésico irônico para um espírito, que fora dos mais formosos, senão o mais formoso, dos que viram a luz da pátria.
Talvez a sua alma cansada de padeceres fosse conversar com os astros e confabular com as estrelas, como fora em vida seu feitio, e deixasse, em seu lugar, a guia mitológica do Amor.
Mais do que nunca se sentiu a verdade do seu soneto impecável: - “A Morte”, neste terceto:
Paz à tua ambição! Paz à loucura!
A conquista melhor é a conquista da calma;
Conquistaste o país do Sonho e da Ventura!
É porque, para ele, “a Morte tem caprichos: raras vezes responde quando chamamos por ela e quase sempre aparece, quando menos é esperada, no meio de um prazer ou de um sonho doce”, como predisse em uma das belas conferências. Perdoai, confrades eminentes, estas pequenas conjeturas literárias de quem vos falou tão duramente do corpo do culminante extinto e que não tem direito nem capacidade de comentar a obra impecável do saudosíssimo companheiro deste jardim espiritual.