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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. ANTÔNIO AUSTREGÉSILO

SENHORES:

A filosofia humana, em todos os seus sistemas, altos, complexos e transcendentes, parece ter uma origem humilde no problema elementar e quase instintivo da felicidade individual, que o homem procura nas peregrinações da vida.

Ser feliz é a nossa aspiração solícita, o sonho de todos os ideais humanos, a própria vida projetada por lentes enganadoras, a ilusão do futuro, a terra prometida, o desejo insaciado, a miragem permanente.

Mas o homem é o mais incontentável dos seres e não lhe é dado definir a sua ambição de felicidade, que é o mais relativo de todos os bens, e que varia de pessoa a pessoa, segundo o meio, a raça e a religião.

Houve um poeta que almejou como ideal um trecho da terra, medido pela projeção da sombra da mulher amada; a Napoleão só contentaria a conquista brutal de toda a terra.

Nos limites das cousas possíveis, no livro dos meus sonhos, na página dos grandes desejos, inscrevera eu a Academia. Esta foi durante alguns anos, para mim, um problema de felicidade, por isso vos direi que chego a ter agora a ilusão de que sou feliz. É este um dos momentos de repouso da minha aspiração, e a vossa companhia e o sentimento desta solenidade dão-me a impressão de que afinal alcancei a miragem fugidia, sonhada não por mera ambição da vaidade, mas como ideal desinteressado e nobre, como prazer intelectual.

Sob o médico, não deixara eu apagar de todo o homem de letras que eu poderia ter sido. Preferi certamente as urgências profissionais, os deveres do magistério superior, ao labor continuado da produção literária, e não tenho publicado livros deste caráter, além dos ensaios da mocidade. Mas o amor das letras não me abandonou e foi sempre o refúgio de esperanças adiadas, de lenta ânsia, que eu reservava para a minha beatitude espiritual.

Aspirava, em suma, sentar-me ao vosso lado, pelo prazer do vosso convívio de eleitos da intelectualidade. Foi só ao transpor este nobre limiar que vacilou a minha ambição, lembrando-me o que também ao meu mestre, vosso companheiro de alguns dias, Francisco de Castro pareceu deter um instante, a divisa que viu reproduzir-se no pórtico desta Academia, e que fechara outrora aos profanos e a Platão: só entre aqui quem for geômetra.

Peço-vos, agora, que me releveis a ousadia. Sou como aquele personagem de certa ópera, o qual, apesar da proibição severa, se atreveu a levantar os olhos para a princesa que passava.
Procurei a Academia não como refúgio de descansos ou como um baronato da inteligência.
Considerei-a sempre uma instituição de destinos ativos, fundada para a unificação da nossa inteligência, “uma torre de marfim onde se acolham os espíritos literários”, como já disse Machado de Assis, e louvava-me nas palavras com que a inaugurou o seu primeiro presidente e hoje patrono desta Casa.

Modelada na Academia Francesa, pareceu-me, entretanto, que esta Academia tinha de diferenciar-se dela, obedecendo ao influxo das nossas condições sociais diversas, de país em formação, no qual os elementos étnicos estranhos ainda perturbam o equilíbrio definidor do caráter nacional, a unidade e a feição da nossa intelectualidade. Lá na França a instituição é o remanso dos consagrados, o jardim dos fidalgos da inteligência; aqui deverá ser a tenda carinhosa dos glorificados e de alguns imaturos que prometem entregar o oiro da sua inteligência como recompensa à fidalga hospedagem que dispensais.

A ação da literatura tem importância capital na orientação e no esclarecimento dos nossos esforços em prol da preponderância, sobre todos os fatores adventícios, do fator brasileiro, representado nas nossas tradições e na nossa língua.

A Academia Brasileira tem aí o seu fim capital, como corporação por excelência da literatura e da intelectualidade pátrias. Considero-a, pois, um corpo vivo, em plena seiva, em franca assimilação, cujo biótono intelectual será capaz de energias poderosas.

O homem do Oriente ou do Ocidente, dos gelos ou dos trópicos, tem mais ou menos os mesmos ideais, – de religião, de estética, de filosofia. Há povos mais inclinados a esse ou àquele ramo de atividade intelectual, mas, no conjunto a idéia tem atravessado os séculos, modificando-se apenas pelos moldes das civilizações que surgem e que sucumbem, mas sempre com o mesmo potencial energético. Sou dos que acreditam e confiam na inteligência brasileira.

Afastemos de vez a ingrata e atormentadora descrença do espírito nacional, que a inferioridade da raça e os rigores do clima nos detêm os passos e não nos deixam atingir as civilizações das grandes raças, nem manter a estabilidade do progresso.

A questão de climas e de raças é demais complexa para consentir afirmações dogmáticas, mas basta lembrarmos que, durante algum tempo, quando o norte do Brasil estava em pleno desenvolvimento e onde o clima é verdadeiramente tropical, o maior número de intelectuais brasileiros surgia de lá. E quanto a nós, americanos do Sul e do Norte, convém notar, como bem observou Joaquim Nabuco, que a civilização nos foi plantada de galho, vicejou e floresceu por processo diferente do dos outros povos.

Ao pessimismo dos desanimados ou dos snobs prefiro o otimismo exuberante de espíritos como o de Afonso Celso, que não julgam desdoiro falar bem da nossa intelectualidade e dela se ufanam.

Estamos sem dúvida ainda – pois somos um país novo – nas condições de parasitos da inteligência e dos progressos da Europa, mas, – e isto não se justifica por sermos um país novo – temos em geral a tendência para o mimetismo exagerado das coisas do Velho Mundo, com o correlativo desdém das nossas qualidades originais. Chamo-lhe o americanismo intelectual, e conviria que nos livrássemos gradativamente deste processo de importação ideativa, pois somos mercado dos livros científicos e literários de além-mar, e há consumo luxuoso, prejudicial, portanto, às nossas qualidades intelectuais produtoras.

Na América do Sul, e como conseqüência no Brasil, a face da civilização está no mercantilismo e no industrialismo, na influência sedutora da política sobre quase todos os homens, no problema econômico industrial, de modo que o cultivo aprimorado da inteligência é feito parcialmente, pelo aspecto de êxitos pessoais, com sacrifício da arte ou da ciência em si.

Falta-nos na produção intelectual concreta ou abstrata o estoicismo ou a beata solitudo dos capuchinhos d’Evreux, para a meditação e construção do edifício permanente do gênio nacional.

Infelizmente para os triunfos sociais não precisamos da estratificação iterativa dos trabalhos do espírito; o êxito não está na firmeza do saber ou da criação mas na indústria do savoir-faire e nas surpresas da felicidade. Mas, apesar de tudo, o gênio brasileiro já se revelou brilhantemente na criação literária; e se a nossa ciência ainda não atingiu a maturidade dos grandes centros, conservamos, contudo, na arte o sentimento do belo, que nos veio da alma latina onde paira de maneira mais ou menos completa o sonho da perfeição, como expressão de prazer intelectual.

A nossa literatura começou antes da nossa vida de nação emancipada, e na longa série de nomes que fazem a história literária nacional existem grandes poetas, romancistas, oradores e publicistas.

Entretanto, porque são nossos, conhecemo-los apenas de nome. Falta que o estrangeiro nos revele a nós mesmos, e essa revelação só virá quando a nossa importância política ou econômica atrair sobre nós a atenção e o estudo do mundo.

Ferrero demonstrou a influência do expoente das nações sobre o valor dos grandes homens. Para muita gente Shakespeare foi o maior poeta da humanidade porque a Inglaterra é a nação mais rica e uma das mais fortes do mundo.

A Alemanha exerce uma espécie de deslumbramento às inteligências novilatinas, porque a Alemanha é poderosa pelo comércio, pela indústria e pelo militarismo.
Os nossos escritores não são estimados porque nasceram aqui e vivem ao nosso lado, porque somos nação militarmente pequena; falamos o português, uma língua desviada da moda, isto é, “falamos a portas fechadas” na expressão de Herculano; falta-nos a egolatria das nações que se julgam fortes e possuímos o pessimismo e o paradoxo que são os sestros e a expressão do humour brasileiro.

À Academia Brasileira penso que incumbe o dever de contrariar essa tendência nacional do menospreço, e só ela pode fazê-lo com eficácia, por ser o centro da federação literária do Brasil. Cabe-lhe dirigir a nossa literatura, zelar por ela, protegê-la, ativando, propagando, disseminando o conhecimento das nossas produções, estimulando o gosto literário e firmando a nossa tradição.

Quantos de nos mesmos ignoram as obras preciosas dos nossos grandes escritores! E temo-las algumas perfeitas, e em grande número admiráveis e fortes, mesmo quando lhes faltam a paciência e a exaustão das obras dos países cultos, onde os problemas vitais não absorvem as energias da inteligência com a peculiaridade da vida sul-americana.

Penso que a alma brasileira tem de ser formada pela tradição das grandes obras nacionais. A lição do gênio deve aproveitar a todos, porque os gênios são a síntese dos povos e o caráter destes deve ser constituído pela filosofia das grandes personalidades pátrias.

A leitura do Guarani, das Minas de Prata, do “Navio Negreiro”, de “I-Juca-Pirama”, de Inocência, dos Sertões e de tantos outros trabalhos nacionais deve despertar em nós qualquer coisa de nós mesmos, da nossa raça, da nossa pátria, que estava latente ou esquecida em nosso pensamento, da mesma maneira que a leitura dos Lusíadas deverá despertar no povo português efeitos análogos, e reverdecer a alma lusitana.

Pena é que o sucessor de Heráclito Graça tenha insuficiência intelectual para colaborar convosco na obra nacional da nossa valorização, pois o que se foi gozava do conceito dos fortes e o que vem aqui penetra pela vossa complacência.
O espírito de Pardal Mallet, que vela esta cadeira, preenchê-la-á provisoriamente, até que apareça o digno sucessor do sábio que perdestes.

Trago-vos, porém, a fé sincera, o coração convencido e a inteligência afeita ao trabalho.
Animou-me particularmente a pedir-vos uma parte no esforço para este nobre empreendimento a consideração de que vinha ocupar o lugar de um homem que, podendo ser escritor notável, preferiu ser modesto trabalhador em prol de nossa língua.

Foi no exercício da minha profissão que conheci Heráclito Graça. Jungido ao leito, suportando dores cruciantes, o caro filólogo pátrio, com a fisionomia austera, sofredora, mas denunciando senescência vigorosa, deu-me a impressão de um estóico que sofria por bem de sua alma. O primeiro contacto com este grande estudioso despertou-me piedade e admiração: piedade, porque o via condutor de doença incurável e eu não lhe poderia remover os padeceres; admiração, porque, sabedor da profundez de seus conhecimentos literários, maxime vernáculos, surpreendi de perto o que a voz dos eruditos anunciara, apesar do espesso  véu de modéstia que envolvera sempre tão original personalidade.

Heráclito Graça falou-me de seus males minuciosamente, interpretando-os, justificando-os, cobrindo-os amiúde com o otimismo salutar de quem quer longamente viver, mas revelando sempre, na dor, o espírito arguto e amante da minúcia. E quando algum fato lhe escapava no histórico da doença, socorria-se da solicitude da esposa sofredora e da filha amantíssima, que, juntas, entre animações exteriorizadas e tristezas intimas, iam auxiliando a narrativa da dolorosa enfermidade.

Ele esperava que a medicina ou o acaso o tirasse do perigo – casus medicusve degrum ex-praecipiti, – no dizer de Horácio. Depois do dever médico, fomos impedidos, eu com o fim de distraí-lo, ele pelo automatismo do saber, fomos impelidos para a literatura.
Sabia-o educado no Maranhão e por isso falamos da vida intelectual da Atenas brasileira.
Pasmei de ver memória tão fresca: versos de Gonçalves Dias, trechos de Lisboa, incidentes da vida literária do seu tempo foram alegremente narrados.

A palestra não lhe foi nociva, pois os sofrimentos como que se amainaram.
O fulgor do seu espírito, irradiado da fisionomia onde a dor deixara fundos sulcos, a cabeça pálida, emagrecida, de olhos em que outrora houvera magnetismo, trouxeram-me a evocação de um filósofo antigo que surgira como o símbolo do saber e da resignação.

Para o não fatigar muito, retirei-me, voltando alguns dias depois. Falou-me pouco dos males, das prescrições feitas, e do quase nulo resultado delas; e no decorrer da palestra que se desenvolveu, sempre se foi revelando, apesar da doença prolongada, o profundo glotólogo e classicista acatado.
Infelizmente foi a última vez que vi Heráclito Graça. Soube então que a doença se engravecera e dois ou três meses após deixara o vazio impreenchível nesta Academia e nas letras pátrias.
Os seus últimos dias foram tristíssimos!

Poucos o conheciam bem; cultivara raros amigos e dentre eles o Barão do Rio Branco, de quem me falou com especial veneração, lisonjeado com a amizade que lhe havia votado o grande brasileiro.
Heráclito Graça foi um beneditino nos estudos vernáculos. Para demonstrar-vos o seu amor paciente aos livros, basta lembrar que leu todo o Elucidário de Viterbo, palavra por palavra, e ao lado de cada vocábulo deixou escritos, em letras miúda, só visível, não raro, com uma lente, termos, frases, comentários, documentações do seu rico saber. In finis escreveu a seguinte nota explicativa: “o Elucidário contém 6.143 vocábulos; foram acrescidos 7.457, perfazendo o total de 14.600” – isto é, mais do duplo do texto original.

A sua feição psicológica era a de analista e de comentador. Lacerda, considerado por ele um dos melhores dicionários da língua portuguesa, sofreu a mesma monda de erros e o replantio de milhares de vocábulos. Os comentários nascem desde a introdução gramatical e vão atravessando as palavras, caminham, como um rio que se espraia pela vargem, inundam o volume inteiro, em todas as direções das palavras impressas, nas margens, em cima, embaixo; onde há uma entrelinha se depara uma nota, de modo a nos dar, à primeira vista, a impressão de danos causados por mãos de colegial ou de um grafômano, como não raro encontramos nos frenicômios. Mas o exame acurado demonstra a construção lenta e erudita do grande solitário, que só tinha vagares para o saber! O obra do glotólogo inédito faz arrancar instintivamente a frase de Castelar: “Pasma o atendimento e cansa a admiração.”

Cheios de notas e observações estão quase todos os livros de sua primorosa biblioteca de clássicos portugueses, quinhentistas, seiscentistas e os modernos mestres da vernaculidade, e posso, entre muitos, citar-vos o Leal Conselheiro, as Ordenações Afonsinas, os livros de Fernão Lopes, Rui de Pina, Azurara, Glossário das palavras e frases da língua francesa, de Frei Francisco de S. Luís; e só acerca de Vieira escreveu quatro cadernos de um trabalho inédito, Notas filológicas e gramaticais sobre os “Sermões” do Padre Antônio Vieira, 1.a edição, 1.a parte, por ele dirigida e por ele impressa em Lisboa, nas oficias de Ioam Costa. MDCLXXIX.

Este homem teria sido preciosíssimo à Academia, e, se não fora de caráter retraído, poderia ter-lhe dado parte dos seus haveres filológicos. Preferiu, porém, pela feição de anacoreta, fazer dormir os tesouros no silêncio da modéstia, a entregar-se a uma colaboração assídua, ao vosso lado.
Talvez a fama do filólogo ficasse ainda mais restrita, se um sucesso de ordem material o não impelisse à publicação dos artigos acerca dos fatos de linguagem.

O ilustre acadêmico atravessava uma fase difícil da vida, quando um dos diretores do Correio da Manhã o convidou para colaborador do jornal, em questão de Filologia.
Iniciou então a série dos “Esboços críticos a alguns assertos do Sr. Cândido de Figueiredo”, publicados naquele diário, de 26 de fevereiro a 16 de novembro de 1913, sob a epigrafe “Notações filológicas”.

Tendes conhecimento do espetáculo às vezes grandioso, às vezes assustador, das chuvas abundantes após as secas do sertão. O livro de Heráclito Graça, modestamente impresso, deu-me, aos primeiros manuseios, o mesmo sentimento que teria o sertanejo, quando após a tristeza de uma longa seca, recebesse de chofre, para os seus campos, muita água, mas em caudais: alegria e assombro. De fato. Ouvira dizer que Heráclito Graça era exímio cultor da língua materna: mas isto constituía sussurro de alguns eruditos, justa reputação feita, mas sem quase documentação. Cândido de Figueiredo fizera editar as Lições práticas da língua portuguesa, e o vosso companheiro, para demonstrar “certos desacertos doutrinários que na sua opinião o polígrafo português cometera”, provavelmente por escassez de tempo para consultar com vagar os mestres da língua, publicou o livro que conheceis. “O português e o brasileiro, disse Heráclito Graça em estilo sóbrio e puro, sabem mal a língua riquíssima e harmônica que lhes tocou em sorte, e, desdenhando-a, lêem e aprendem por livros franceses em toda a carreira da vida.”

Comparei o livro de Heráclito Graça a um caudal. Realmente. A oposição aos argumentos de Cândido de Figueiredo causa pasmo, pois não há documentação que não seja feita com basta messe de exemplos dos mestres da língua, antigos e modernos, como João de Barros, Heitor Pinto, Azurara. Rui de Pina, Frei Luís de Sousa, Fernão Mendes Pinto, Bluteau, Filinto, Castilho, Latino Coelho, Herculano, Rebelo da Silva, Garrett, Camilo e até Eça de Queirós da última fase, o qual, no dizer do nosso patrício, se transformara em consciencioso cultor da língua.

Talvez na paixão de crítico, impelido pela abundância do saber, agredindo cavalheirosamente, levando algumas feitas de vencida o adversário, penetrasse demais no recesso dos alfarrábios, para deles arrancar os fatos de linguagem; talvez nem sempre as suas idéias e asserções lograssem a verdade doutrinária.

O português não é uma língua de bases sólidas; a sua evolução sofreu a influência natural da quase parada da civilização lusitana. Afastada um pouco da cultura moderna, obrigatória, e pela condição social das nações em que era trafegada, a língua portuguesa teve de receber os reveses naturais de todos os povos que se acham em progresso lento.

O desenvolvimento de uma língua deve acompanhar o estado social das nações em que é falada, e, como disse Latino Coelho, no elogio a Frei Francisco de S. Luís, “é o idioma de um povo a mais eloqüente revelação de sua nacionalidade e de sua independência. Na linguagem andam vinculadas as suas grandezas e as suas tradições gloriosas”.

O estudo científico ou a filologia moderna tem revelado novos aspectos gerais, que podem ser adaptados ao nosso vernáculo. Nem sempre o que foi dito por clássicos é absolutamente puro; e podemos opor-lhes o nosso critério para o que for consentâneo e justo à inteligência da linguagem. Quer no aspecto etimológico, sintático ou semântico, as modificações hão de surgir naturalmente no conceito dos povos acerca dos fatos idiomáticos.

Esta liberdade de reforma é moderada pela Gramática, que acompanha de perto a língua, e diminui as mesnadas de erros da maioria. A Gramática não faz estilistas, mas é uma espécie de terror necessário aos escritores.

O evolver a língua deve fazer muitas concessões aos cultores modernos do português. Como refere João Ribeiro, “pouco valerá a razão de que a língua se acha constituída; o caráter mesmo de todas as línguas é ser um superorganismo em progresso ou em decadência, e sempre em movimento”.
Cândido de Figueiredo, na resposta à crítica de Heráclito Graça, desfaz, algumas vezes com razão, na autoridade de Filinto, Camilo, Adolfo Coelho, Garrett, mas é sabido que alguns destes foram iniciadores do renascimento, da maleabilidade da língua portuguesa.

Garrett e Camilo, podemos dizer, tiraram a gravidade do português e provaram a sua leveza e fartura, ora despertando a solenidade, ora a criabilidade do idioma lusitano, como fez, sobretudo, Camilo, que, depois de Vieira, deve ser considerado o malabarista mais ágil do vocabulário português.
Essa reação foi desvirtuada pelo gênio cintilante de Eça de Queirós, e pelos ousios brilhantes de Fialho de Almeida.

Felizmente Ramalho Ortigão, em sua sobriedade e elegância, ateve-se um pouco mais ao regime dos puros, mas cedeu ao francesismo, a fim de não fugir à moda do seu tempo. Eça, que foi um dos maiores artistas contemporâneos, e que provou exuberantemente a gracilidade da língua, a sua pouca barbárie fugindo da ênfase e seduzindo toda a mocidade portuguesa e brasileira com estilo simples e elegante, Eça, dizia eu, poderia ter sido, pelo seu gênio, o iniciador da moderna fase da língua vernácula, se não vivesse tão dominado pela influência francesa, e a tal ponto que motivou a frase do conhecido crítico português: é pena que este rapaz escreva as suas obras em francês.
Sem exagero de patriotismo podemos dizer que cabe, talvez, a Machado de Assis a honra que Eça de Queirós não soube lograr, um dos raros escritores da língua portuguesa que, pela sobriedade helênica do estilo, é comparável a Renan e Anatole France.

A ênfase, porém, é a maneira habitual dos escritores dalém e daquém-mar que manejam o português, e é muito difícil agradar à maioria dos leitores em nosso idioma, sem a ênfase e, às vezes, sem a barbaria. É, possivelmente, uma condição do nosso meio, da nossa civilização, do tropicalismo da nossa imaginação, do nosso gosto literário. Entre nós a simplicidade se confunde com a trivialidade, e ai do escritor que não provar exuberância de imaginação ou riqueza de vocabulário!

Sabemos bem que o renascimento de uma língua não surge pela vontade das academias. Como disse Comte, o homem se agita e a humanidade o conduz, e se parafrasearmos a verdade do filósofo, poderemos firmar a mesma lei para as línguas, que são organismos em movimento. No aspecto ortográfico, fonético, sintático, etc., as leis da linguagem moderna não podem ser moldadas cegamente pelos clássicos, sem o caldear necessário, sm o método comparativo das outras línguas da mesma origem, sem atender à época, sem consultar o espírito científico da Glotologia, isto é, a base do senso da linguagem.

Foi muito mais fácil a João de Barros a Vieira escreverem o português puro que a Latino Coelho, a Machado de Assis e a Rui Barbosa. A razão é simples. No tempo daqueles escritores a influência sintática era latina, e Portugal florescente recebia influxo da civilização espanhola. O latim já era língua morta, e a sintaxe espanhola em nada prejudicava o espírito da língua portuguesa. Hoje não. A sugestão francesa é fatal. O predomínio do espírito científico e literário na orientação da alma latina força o escritor a descambar, pela lei do mais forte, para o galicismo. O caturrismo é, às vezes, uma doença, como o erro gramatical; no primeiro caso é uma ancilose, no segundo um parasito. Cumpre, pois, que o estilista moderno escolha o menor dos males, a linguagem correta, sem pergaminho nem tatuagens, sem as lesões da gramática, nem a imobilidade dos caturras, para falar um pouco medicamente, pois os modernos filologistas consideram o idioma um organismo vivo, e quem vos fala é clínico.

A crítica feita por Heráclito foi tão notável que mereceu de Cândido de Figueiredo a publicação de um livro, em resposta ao crítico patrício. Em mil e setecentos pontos doutrinários do gramático português, Heráclito Graça encontrara cinqüenta e nove desacertos; mas Cândido de Figueiredo nem sempre aceita as opiniões do vosso confrade. Não poderei entrar na minúcia das discussões, mas, da minha leitura desapaixonada parece-me que Heráclito Graça revelou sempre farta erudição; muitos pontos há, defendidos pelo autor português, mais consentâneos com a verdadeira índole da língua, que os criticados pelo saudoso acadêmico.

Ficou em evidência a característica da sua vida intelectual, mas nela não se esgotou de todo a personalidade de Heráclito Graça.
Nascido no Norte e lá educado, conservava do nortista os caracteres principais: – amor ao trabalho, inteligência arguta e modéstia apurada. Formou-se em Direito em 1857, e fixou residência no Maranhão. Iniciou a vida publica na magistratura, como promotor, em S. Luís. A serenidade da vida provinciana permitiu-lhe lazeres para o apuro do gosto da literatura, já esboçado nos tempos acadêmicos, em que fizera versos, desconhecidos do público, mas guardados pela família, como amada relíquia. A sua tendência, porém, não se firmou na poesia. Quase todos nós temos, no princípio da formação da alma, declives para a rima, e versos mais ou menos inspirados traduzem o sentimento romântico que em nós floresce quando floresce a mocidade. O verso é um estágio, a conseqüência ontogênica da alma dos nossos avitos, e progressivamente se vão apagando no espírito as fórmulas provisórias. Eis porque nascemos na rima e amadurecemos nas fórmulas concretas das tendências espirituais, bem diversas daquelas que nos deu a fase poética da inteligência. Felizes daqueles, porém que nascem cantando e morrem cantando!

O poeta, na sua mágoa, é feliz, porque os versos podem ser lágrimas que encontrem ecos nas lágrimas alheias, e assim a dor do poeta corre de boca em boca, de coração em coração, e faz-nos bem à alma ver alguém sentir as mesmas mágoas!

Durante quatro anos Heráclito Graça exerceu o ministério público; não se sentiu bem nos estreitos limites da magistratura provinciana. Quis a advocacia e o jornalismo.
O jornalismo é a feição natural com que as inteligências entre nós formam reputações literárias.
Há simbiose do jornal e da literatura, de modo que comumente os homens de letras nascem do jornal. Só mais tarde é que surge a diferenciação dos espíritos combatentes e doutrinários da imprensa e dos que serenamente lançam no papel as magias silenciosas e inspiradas dos sonhos.

Filiado ao partido conservador, fundou o jornal político A Situação, em companhia de Vieira da Silva, Gomes de Castro e outros. O jornal na província constitui celeiro de paixões e há grande prazer nas polêmicas violentas, agressivas, guerreiras, lutas de extermínio, que cessam, como por encanto, ao primeiro sinal amistoso do chefe político. A Situação era também uma espécie de órgão oficial da literatura do momento, porque nela colaboravam Joaquim Serra, Gentil Braga, Trajano Galvão, enfim, a fina flor das letras maranhenses.

As inteligências distintas entre nós perlustram, na vida social, pontos habituais às conquistas: jornalismo, letras, profissões liberais e política. Heráclito Graça não poderia fugir desta trajetória: foi eleito sucessivamente, a princípio deputado provincial, depois geral em três legislaturas consecutivas de 1868 a 1878, e trabalhou sempre pelo partido a que se filiara. Figura simpática, metal de voz agradável, palavra fácil, lógica segura, o deputado maranhense, se não foi grande parlamentar, adquiriu, contudo, o bom conceito dos seus pares pelos pareceres e discursos que ainda hoje podem ser lidos com proveito, principalmente os que se referem ao recrutamento, à reforma judiciária em 1871 e à reforma eleitoral de 1876. O critério e a solidez em questões jurídicas puseram-no em plano superior, sobretudo nas Comissões de Contas e de Justiça, anunciando desde então o futuro jurisconsulto.

Heráclito Graça foi ainda Presidente de província na Paraíba e no Ceará, sua terra natal.
A passagem dele pela política foi um estágio, espécie de batismo forçado; mas esta não era a feição psicológica de Heráclito Graça: faltava-lhe a paixão, o nervo do combatente, a alma preparada para as comoções fortes e para os mergulhos das eventualidades. Seguiu o destino: poeta, magistrado, jornalista, político e advogado; fixou em 1877 residência no Rio de Janeiro, onde se lhe confirmaram as maiores e melhores tendências espirituais; de filólogo e jurisconsulto, como advogado e depois consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores. Falta-me senso crítico para avaliar do mérito do cultor do Direito, mas o convite de Rio Branco para que tomasse parte como advogado do Brasil nos Tribunais Arbitrais com o Peru e a Bolívia constitui boa prova de saber e competência.

Digamos, entretanto, a verdade, que não será ofensiva. O direito não foi a fórmula eletiva do seu espírito, como o fora a Paula Batista, Teixeira de Freitas e Tobias Barreto. A feição principal, a tendência de Heráclito Graça definira-se pela cultura da língua materna, em que vivia, vibrava; deixou-se envolver nessa paixão e, solitário, gozou a alquimia da língua portuguesa. Permitiu que a luz da inteligência se extinguisse dos outros cantões dos seus conhecimentos para que mais se lhe alumiasse o amor ao vernáculo. Esse beneditinismo fora religioso e obsidente.

A não serem os íntimos e os contemporâneos que com ele mais privavam, pouca gente sabia do grau dos seus conhecimentos filológicos. Esta opinião não é pessoal. Quando Cândido de Figueiredo recebeu os primeiros artigos do Correio da Manhã, enviados por um amigo residente no Rio de janeiro, recebeu também a seguinte nota explicativa: “O autor é advogado conceituado e foi deputado no tempo do Império. Não sabia eu que ele se ocupasse de vernaculismo; como, porém, é filho do Maranhão, a terra de Sotero, Odorico Mendes, Lisboa e Gonçalves Dias, e talvez com eles convivesse, não admira esta predileção.”

E por esse amor que quase conservava ocultamente, deixou de ser grande jurista ou literato, no rigor do termo, sofrendo os desgarrões da pobreza, dominado pela nota de seu caráter: modéstia e escrúpulo. Este levava-o ao excesso da autocrítica e da censura aos trabalhos alheios: apurava demais a perfeição e só admitia obras impecáveis, sobretudo no aspecto vernáculo.

De uma feita, contou-me um os amigos íntimos de Heráclito Graça, certo poeta simbolista lhe pedira juízo crítico e um prólogo para o seu livro. O filólogo, depois de ponderada leitura, aconselhou ao poeta quebrar a lira. Este, tocado no amor-próprio, revoltou-se contra o juiz severo, dizendo serem seus versos novos e pertencentes a uma escola literária dominante. O sábio, cheio de bom humor, respondeu-lhe serenamente: “desde menino ouvira dizer que asneira é cousa velha”.

Pena é que Heráclito Graça, um benemérito da língua portuguesa, como lhe chamou Cândido de Figueiredo, fosse alquimista e levasse para o túmulo o segredo de muitos dos seus saberes.
Basta lembrar-vos que se ele aproveitasse em vida os comentários e notas feitas aos vocabulários de Viterbo e Lacerda, teríamos uma das obras mais documentadas e mais originais da língua materna.
Mas esta especialização fora impulso íntimo, paixão ruminadora, pois abandonara os proventos materiais da vida em busca dos segredos, das belezas do vernáculo, que gozava com a volúpia dos grandes sonhadores de tesouros ocultos.

Antes de terminar, permiti, senhores, que externe o meu primeiro voto, que será ato de justiça, e constitui certamente tácita aspiração de todos vós: a volta e Heráclito Graça ao vosso seio. A obra inédita deste acadêmico é a sua vida, a história do seu sangue e da sua alma, porque nela viveu e nela morreu.

À vossa carinhosa guarda devem ser entregues os esboços, os fragmentos da obra pacientemente preparada para a vossa glória. Tendes artistas que poderão completar o minucioso lavor por muitos anos delineado, e, assim, o grande solitário que partiu, continuará a viver na vossa saudade, trabalhando ao vosso lado, ajudando-vos na construção deste edifício feliz, que possui a bênção dos deuses e é defendido pelas aspirações dos espíritos literários do país.