GALO GALO
O galo
no saguão quieto.
Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.
De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.
Mede os passos. Para.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio
— que faço entre coisas?
— de que me defendo?
Anda
no saguão
O cimento esquece
o seu último passo
Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apoia
tal arquitetura?
Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?
Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa.
Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.
Vê-se: o canto é inútil.
O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!
Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento
Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.
(A luta corporal, 1954.)
A GALINHA
Morta
flutua no chão.
Galinha.
Não teve o mar, nem
quis, nem compreendeu
aquele ciscar quase feroz. Cis-
cava. Olhava o muro.
aceitava-o negro e absurdo.
Nada perdeu. O quintal
não tinha
qualquer beleza.
Agora
as penas são só o que o vento
roça, leves.
Apagou-se-lhe
toda cintilação, o medo.
Morta. Evola-se do olho seco
o sono. Ela dorme.
Onde? onde?
(A luta corporal, 1954.)
DOIS E DOIS: QUATRO
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena
— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.
(Dentro da noite veloz, 1975.)
CANTADA
Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira da República Dominicana
Olha,
você é tão bela quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana
(Dentro da noite veloz, 1975.)
NO CORPO
De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente.
(Dentro da noite veloz, 1975.)
CANTIGA PARA NÃO MORRER
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
(Dentro da noite veloz, 1975.)
LIÇÕES DE ARQUITETURA
Para
OSCAR NIEMEYER
No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor
(ele não fez de pedra
nossas casas:
faz de asa)
No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde
uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com a matéria dura:
o ferro o cimento a fome
de humana arquitetura.
Nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo.
Oscar nos ensina
que a beleza é leve
(Na vertigem do dia, 1980)
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
(Na vertigem do dia, 1980)
SUBVERSIVA
A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça.
E promete incendiar o país
(Na vertigem do dia, 1980.)
APRENDIZADO
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
(Barulhos, 1997.)
TEU CORPO
O teu corpo muda
independente de ti.
Não te pergunta
se deve engordar.
É um ser estranho
que tem o teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteias-lhe os cabelos
como se fossem teus.
Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nasceste e sem ele
não és?
Ao que tudo indica
tu és esse corpo
— que a cada dia
mais difere de ti.
E até já tens medo
de olhar no espelho:
lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.
E a erupção
Que te surge no queixo?
Vai sumir? alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?
Tocas o joelho:
tu és esse osso.
Olhas a mão:
tu é essa mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.
Quem se senta és tu,
quem se move (leva
o cigarro à boca,
traga, bate a cinza
és tu.
Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo — morre —
quem diz a ele — envelhece —
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?
(Barulhos, 1997.)
FOTO DE MALLARMÉ
É uma foto
premeditada
como um crime
basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado
— um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá — e
especialmente a mão
com a caneta
detida acima da
folha em branco: tudo
à espera
da eternidade
sabe-se:
após o clique
a cena se desfez na
rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel raso
mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
ali
do fundo
da morte
olha
(Muitas vozes, 1999.)