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Francisco de Assis Barbosa

OS IDEAIS DA REVOLUÇÃO DA INDEPENDÊNCIA SITUAÇÃO DO BRASIL NO PERÍODO REGENCIAL

Ao tempo em que Jan Nepomuscky Kubitschek - João Alemão - emigrou para o Brasil, éramos um país de pouco mais de cinco milhões de habitantes, incluindo apreciável contingente de cativos, entre negros e índios, estes já libertos, é bem verdade, mas vivendo nas mesmas condições do escravo africano, quando em contacto com os brancos. Todo esse colosso geográfico de superfície pouco menor que a da Europa, capaz de abrigar-lhe, portanto toda a população, mal começara a se movimentar como nação independente. O príncipe nascido em Portugal e criado no Brasil, de alma brasileira mais que portuguesa, fundador do novo império, vira-se obrigado em menos de dez anos a deixar o trono, transferindo a coroa para a cabeça do filho infante. E o Brasil, também na infância, ficou entregue a uma regência, na qual se sucederam militares, eclesiásticos e bacharéis. Estes constituiriam, de resto, a nata intelectual do país em formação, trilhando todos eles o caminho do seminário, à falta de liceus e ginásios.

Mesmo assim, poucos eram os seminários. Só os havia no Rio de Janeiro, na Bahia, em Minas Gerais e em Pernambuco. Em São Paulo não havia, pelo menos até a metade do século XIX. Com a criação dos cursos jurídicos em Pernambuco e em são Paulo (1827), desvanecia-se pouco a pouco a poderosa influência da Universidade de Coimbra, matriz da nossa cultura colonial e da primeira geração de políticos da independência. E a reorganização do ensino médico (1832), que apenas se inaugurara na Bahia e no Rio de Janeiro, logo após a chegada da família real portuguesa, reduziria quase que por completo a concorrência não somente de Coimbra, mas das universidades européias, Montpellier e Edimburgo, por exemplo, na formação de médicos e bacharéis.

Com a criação das faculdades, nem por isso os seminários decresceram de importância, principalmente em Minas Gerais, onde eram mais numerosos que em qualquer outra província: o seminário de Mariana (1749), o colégio do Caraça (1820), os seminários de Campo Belo e Congonhas do Campo (1832). Ao tempo da colônia, e mesmo depois, no Brasil independente, o seminário de Olinda (1800), em Pernambuco, era tido e havido como verdadeira universidade. Olinda chegou a ser chamada “Coimbra Brasileira”. A base de toda essa preparação para a vida pública, recolhida nos seminários, repousava no latim e na retórica, de que se impregnaram até a raiz dos cabelos esses médicos, bacharéis e clérigos, homens mais contemplativos que práticos, futuros campeões da oratória parlamentar, pertencentes em geral a famílias de grandes proprietários agrícolas - a nobreza rural das casas-grandes -, que passariam a viver nas cidades - a aristocracia urbana dos sobrados. Daí a síntese magistral de Gilberto Freyre dessa sociedade de senhores e escravos, reduzindo-a aos contrastes simbólicos: casa-grande e senzala, sobrados e mucambos que dizer, uma minoria de ricos por cima de uma população miserável.

O que é mais curioso é que à classe dominante - os grandes senhores de terras - pouco ou nenhum interesse despertasse a exploração das riquezas minerais do país. Raros seriam os jovens oriundos dessas famílias da nobreza rural a se encaminharem para outras profissões que não as de médico, advogado, padre ou militar. Apresentam-se como gritante exceção à regra geral os casos de José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara, que desde cedo se dedicaram aos estudos de mineralogia e metalurgia, mesmo em Coimbra. a viagem científica que ambos empreenderam pela Europa seria altamente proveitosa para o Brasil. Graças ao contacto estabelecido por esses dois brasileiros nas universidades alemãs, acabariam por ser contratados pelo governo português especialistas da ciência montanística do porte do barão de Eschwege, do coronel Varnhagen e do sargento-mor Feldner.

Câmara batera-se, desde então, pelo estabelecimento no Brasil de escolas mineralógicas e metalúrgicas, semelhantes às de Freiberg e de Schemnitz, tal como preconiza o alvará de 1803, indiscutivelmente de sua autoria. Bateu na mesma tecla em 1819, rogando a dom João VI: “abra os olhos aos mineiros, para estabelecer, enfim, uma escola de minas”. Na Constituinte de 1823, em meio à discussão bizantina que se levantou em torno do projeto da universidade, de uma academia montanística. A idéia morreria sem eco, como também deixaria de ser considerada em 1827, por ocasião dos debates parlamentares em torno dos cursos jurídicos - seriam apenas duas as faculdades, uma ao norte, em Pernambuco, outra ao sul, em São Paulo -, quando Bernardo Pereira de Vasconcelos defenderia a localização da segunda academia de direito em Minas Gerais, por se tratar da província onde melhor se cultivava a língua portuguesa no Brasil.

A situação do ensino em Minas era efetivamente superior à de qualquer outra província, como demonstraria o próprio Vasconcelos, noutro passo: dezessete aulas de latim, para trinta e três de primeiras letras, uma de lógica e uma de anatomia, desenho e retórica. No entanto, sendo Minas Gerais o grande centro da extração do ouro, do diamante e do ferro, é realmente singular que o projeto da criação da escola de minas, defendido pelo intendente Câmara, por Vasconcelos mesmo, rolando a idéia desde o tempo da colônia, só se viesse concretizar cinqüenta anos depois. Donde se conclui que se considerava muito mais importante, embora menos útil, para o país, falar o latim e escrever o português como um clássico quinhentista do que formar engenheiros de minas.

A verdade é que, desde a Inconfidência Mineira, os ideais da revolução da Independência poderiam ser resumidos, como de fato o foram pelos patriotas mineiros, nos seguintes pontos essenciais: mudança da capital para o interior, criação de uma universidade, exploração das riquezas minerais do país, construção de fábricas de ferro, libertação dos escravos. Note-se ainda que um dos inconfidentes era o mineralogista José Álvares Maciel, formado em Coimbra, e que depois viajara pela Europa, demorando-se na Inglaterra, onde havia procurado especializar-se nos estudos da sua predileção. Ao retornar à pátria, em meados de 1788, fora Maciel o iniciador de Tiradentes nas idéias francesas, o primeiro talvez a falar-lhe com entusiasmo na revolução norte-americana. Na Europa, argumentava, todos se admiravam de que não se tivesse feito ainda no Brasil um movimento igual ao dos Estados Unidos. E a Tiradentes, sempre preocupado na defesa das riquezas minerais do Brasil, logo ocorreu indagar do companheiro se era possível fabricar o ferro em Minas Gerais.

Proclamada a Independência, já havia entrado em declínio a extração do ouro e do diamante, centro do interesse de toda a política colonial portuguesa no Brasil. No entanto, pouco ou quase nada se altera a posição de Minas Gerais diante das demais províncias. O centro coordenador da economia colonial passará a ser também o eixo de equilíbrio da política do império. Que mantém intacta a aura de prestígio, basta lembrar, juntamente com um historiador, alguns dados sintomáticos: “Na série de marqueses criados em 1826, dentre os brasileiros, seis - a metade deles - são originários de Minas ou diretamente ligados ao ouro. Os marqueses de Sabará e de Baependi são mineiros, embora já vivendo no Rio de Janeiro. O marquês de Queluz é filho do guarda-mor do Ribeirão do Carmo. O marquês de Barbacena e seu irmão, o visconde de Jericinó, são Caldeiras Brants, mineiros, como já o era Felisberto Caldeira Brant, o contratador de diamantes. O marquês de Quixeramobim é Pais Leme, como o marquês de São João Marcos, sendo este o quarto guarda-mor geral e co-proprietário da famosa mina do Gongo-Soco com o futuro barão de Catas Altas - único minerador agraciado mais tarde por Pedro I”.

A antiga capitania fora raspada até o osso pela ambição do colonizador. Tal como uma esponja - na imagem rude e fiel de Tiradentes -, a Europa lhe acabou “chupando toda a substância”. Do seu solo riquíssimo, os portugueses extraíram perto de oitocentas toneladas de ouro e quase sete milhões de quilates de diamantes - ouro bastante para duplicar a circulação monetária européia no século XVIII. Carreando toda essa formidável carga de riquezas para fora do país, ainda por povoar e colonizar, não puderam os conquistadores ultrapassar, econômica e socialmente falando, os limites das regiões auríferas e diamantinas, assentando as bases de uma civilização tipicamente litorânea.

A empresa dos portugueses nos trópicos era algo superior às suas forças. No primeiro século da descoberta, frei Vicente do Salvador reclamava, talvez impacientemente, contra a negligência dos portugueses, que, “sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. Os povoadores insistiam em permanecer no litoral, estabelecendo-se sistematicamente nas praias e daí não arredando pé, dirá um historiador paulista do nosso século, realçando a ação dos jesuítas, com Nóbrega à frente, preocupados em “descobrir a terra”, varar as serras, furar os sertões. Contrapondo-se aos interesses dos agentes da coroa portuguesa, os padres da Companhia de Jesus fundaram São Paulo, no alto do planalto de Piratininga, o primeiro marco da expansão colonizadora para oeste. Era um grande passo, mas não era tudo. Dadas as proporções gigantescas do território a conquistar, era na verdade muito pouco ainda. Quatrocentos anos depois, apesar do esforço ciclópico de lusos e brasileiros, Euclides da Cunha há de reconhecer, desolado, não passar de um livro inédito a nossa geografia física.

“Uma Revisão na Política Brasileira”
Francisco de Assis Barbosa

JULGAMENTOS SOBRE O ISAÍAS CAMINHA

"Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis e dignas de castigo. Ó

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, 1909.)

Não se confirmaria, de modo nenhum, o vaticínio de Antônio Noronha Santos, segundo o qual depois de publicado o primeiro livro tudo havia de mudar, para melhor, inclusive na Secretaria da Guerra. Às palavras carinhosas do amigo, o amanuense opunha fatos concretos. Fora preterido uma vez. Viera depois a reforma da repartição, na gestão Hermes da Fonseca. Continuaria esquecido.

"Projetam-se promoções - dizia, em carta a Santos e eu serei de novo preterido." Já se sentia então definitivamente incompatibilizado com a vida burocrática. "Ando imaginando o meio de sair daqui", acrescentava, para concluir na mesma carta em tom de quem, neste particular, não esperava mais nada: "eu penso que o meu livro em nada servirá para evitar futuras preterições."1

Sabia de antemão que o Isaías Caminha não poderia melhorar, para ele, o ambiente na repartição, nem lhe daria prestígio junto aos chefes. Era um livro áspero e amargo, com páginas fortemente agressivas contra as instituições, a sociedade, os preconceitos, o Exército. Um livro assim não agradaria jamais aos que põem e dispõem das situações e dos empregos públicos, os quais, em geral, desejam a vida dos protegidos pautada dentro de regrinhas convencionais. Só os bons-moços, medíocres e bem comportados, conseguem despertar-lhes simpatias. Os inquietos, os insatisfeitos, os rebelados do tipo de Lima Barreto não os atraem.

É claro que uma promoção a segundo oficial a reforma Hermes transformara-o apenas de amanuense em terceiro oficial, sem aumentar-lhe os vencimentos traria alguma compensação de ordem material, aliviando-lhe os encargos de família, e era isto, somente isto, o que interessava da sua carreira de burocrata inadaptado.

Sua ambição, a sua grande ambição, era bem outra: afirmar-se como escritor. Se tinha alguma ilusão, a respeito do Isaías Caminha, o que parece certo, era a do êxito literário. Desejaria a imediata consagração da crítica, da imprensa, do país inteiro. Até os que, por este ou aquele motivo, recebessem o livro com reservas o que era compreensível, em se tratando de uma sátira à imprensa haveriam de, pelo menos, reconhecer-lhe o valor como escritor. Seria, pois, discutido, mas não continuaria esquecido, como até agora, como se fosse um pária da literatura. "A única crítica que me aborrece escreverá alguns anos depois é a do silêncio."2

No entanto, a recepção ao Isaías Caminha, quer da imprensa, quer da crítica, seria mais uma decepção a acrescentar às muitas outras que o escritor vinha sofrendo desde a adolescência. Sem amigos na direção dos jornais de prestígio, poucas foram as notas que apareceram, registrando o aparecimento do livro.

O Correio da Manhã era atingido duramente pela pena do romancista, que o descrevia qual um museu de mediocridades, tendo à frente um diretor violento, mestre de descomposturas, destruindo reputações em nome da moral, mas que não passava, na realidade, de um êmulo de Tartufo, corrupto e devasso.

Nada mais natural, portanto, que o grande jornal se fechasse em copas, olimpicamente, sem tomar conhecimento sequer da existência do Isaías Caminha e do seu criador. O espírito de côterie fez o resto. Os demais jornais também receberam de pé atrás o livro inconveniente e atrevido, onde tantas figuras ilustres e respeitáveis algumas delas, diga-se de passagem, falsamente ilustres e falsamente respeitáveis eram retratadas ao vivo, quase sem nenhum disfarce.

Efetivamente, como pouca gente letrada no Brasil hoje ignora, o romance de Lima Barreto é uma sátira ao Correio da Manhã, escolhido dentre os demais por ser o de maior sucesso, o mais representativo, o mais típico, o mais retratável dos órgãos da imprensa da época.

A chave das Recordações do escrivão Isaías Caminha foi, durante largo tempo, um segredo de polichinelo, de que muito se falava nas rodas de escritores e jornalistas, mas que ninguém se animava a denunciar por escrito. Coisas da província do Brasil... Acabou revelada num artigo de B. Quadros, pseudônimo de Antônio Noronha Santos, na revista Vida Nova, e depois por Gondin da Fonseca, em capítulo da sua biografia de Santos Dumont, no qual descreve a vida carioca do começo de século. Muitos dos personagens ainda vivem. Quanto aos mortos na maioria gente como João do Rio, Edmundo Bittencourt, Leão Veloso, Coelho Neto ou Afrânio Peixoto estes já conquistaram de há muito seus lugares em nossa crônica jornalística e literária.

A sátira era cruel e atingia, em cheio, o quartel-general do mais poderoso jornal da época. Segundo B. Quadros, a chave do romance é a seguinte: Plínio de Andrade ou Plínio Gravatá Lima Barreto; Ricardo Loberant Edmundo Bittencourt; Aires d’Ávila Leão Veloso (Gil Vidal); Leporace Vicente Pirajibe; Lobo, o gramático Cândido Lago; Floc João Itiberê da Cunha (Jic); Veiga Filho Coelho Neto; Raul Rostolopp Mário Cataruzza; Pranzini, o gerente o Fogliani, do Fon-Fon; Florêncio Figueiredo Pimentel; Senador Carvalho Marechal Pires Ferreira; Dr. Franco de Andrade Afrânio Peixoto; Losque Gastão Bousquet; Deodoro Ramalho Floriano de Lemos; Rolim Chico Souto; Agostinho Marques Pedro Ferreira Serrado; Dr. Demóstenes Brandão o juiz Cícero Seabra (irmão de J. J. Seabra); Laje da Silva Pascoal Segreto; O Globo Correio da Manhã; Casa da Valentina a Valéry ou a Richard, duas das mais célebres "pensões" do tempo.3

E, agora, a chave divulgada por Gondin da Fonseca: Ricardo Loberant Edmundo Bittencourt; Ivan Gregorovitch Rostolopp Mário Cataruzza; Pacheco Rabelo (Aires d’Ávila) Leão Veloso (Gil Vidal); Veiga Filho Coelho Neto; Gramático Lobo Cândido Lago; Floc Jic, pseudônimo de João Itiberê da Cunha; Leporace Vicente Pirajibe; Adelermo Caxias Viriato Correia; Oliveira Costa Rego; Losque Gastão Bousquet; Raul Gusmão João do Rio; Laje da Silva Pascoal Segreto; Casa da Valentina pensão da Tina Tatti, célebre rendez-vous do Russell.4

O Recordações do escrivão Isaías Caminha não era, na verdade, a grande obra que tinha em mente escrever um dia. O seu ideal seria mais ambicioso. "Se eu pudesse... confessou através de um dos seus personagens se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura deprimente."5

Ainda era cedo para isso. E como que explicando a gênese do Isaías Caminha, cabe a outro personagem falar pelo escritor:

"A obra que meditava, assim que travei conhecimento mais íntimo com a cozinha literária, percebi logo que me seria difícil publicá-la, sem que, antes, eu adquirisse o bem-querer dos livreiros. Demais, eu precisava anos para realizá-la, tal qual eu a meditava. Pobre, não me seria possível custear a impressão, e mesmo era preciso que eu fosse criando um núcleo de leitores. Resolvi, portanto, publicar alguma coisa que atraísse atenção sobre mim, que me abrisse as portas, como se diz, que me fizesse conhecido, mas queria pôr nessa obra alguma coisa das minhas meditações, das minhas cogitações, atacar em síntese os inimigos das minhas idéias e ridicularizar as suas superstições e idéias feitas."6

Concebera, destarte, um romance diferente dos cânones consagrados. Um romance que tivesse algo de agressivo. Que atraísse enfim "leitores, amigos e inimigos". Não importava a ele os inimigos, alguns dos quais aparecem no Recordações sem nenhum disfarce. Na primeira edição, revela o nome verdadeiro de um dos personagens principais do romance Frederico Lourenço do Couto o Floc das crônicas literárias que outro não era, na vida real, que João Itiberê da Cunha o Jic, do Correio da Manhã. Numa das cenas mais intensas do livro, exatamente a que descreve o suicídio de Floc, quando o chefe da oficina volta à redação, é assim que se dirige ao famoso crítico:

"Seu" Cunha!7

O primeiro crítico a tratar do Isaías Caminha foi Medeiros e Albuquerque. Reconhecendo, embora, as qualidades do romancista "começa pelo fim, aparece como um escritor feito" , lamenta "as alusões pessoais", a descrição de pessoas conhecidas, "pintadas de um modo deprimente", para condenar incisivamente o livro, que classifica como sendo "um mau romance e um mau panfleto". "Mau romance explica porque é da arte inferior dos romans à clef. Mau panfleto porque não tem a coragem do ataque direto, com os nomes claramente postos e vai até a insinuações a pessoas, que mesmo os panfletários mais virulentos deveriam respeitar."8

A crítica de Medeiros e Albuquerque doeu, e Lima Barreto em carta que lhe remete, no mesmo dia em que saiu publicado o folhetim de A Notícia, apresenta a sua defesa: "Estou certo de que as pessoas que não me conhecem só poderão ter a impressão que o senhor teve. Há, entretanto, alguma coisa que a justifique, dentro mesmo dos motivos literários. Se a revolta foi além dos limites, ela tem contudo motivos sérios e poderosos. Na questão dos personagens há (ouso pensar) uma simples questão de momento. Caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem. Concordo que há frases aqui e ali, e mesmo certas referências, que em muito o prejudicam. Ainda questão de momento... Não direi que estou arrependido de tê-las escrito, mas estou disposto a cortá-las em outras edições."9

Uma nova decepção experimentaria Lima Barreto com o inteligente comentário que Alcides Maia dedicou ao Isaías Caminha. E logo quem! A Alcides Maia se atribui, com ou sem razão, a transformação do personagem principal do romance de garção de um café, tal como a princípio o autor teria ideado, em trabalhador de jornal, primeiro contínuo e depois repórter.

Pois bem. Com palavras amáveis, sem dúvida sinceras, traduzindo a sua real estima pelo escritor, Alcides põe a nu o principal defeito do livro a sua nota pessoal, que o reduz quase a um "álbum de fotografias". Não era um romance, mas uma "verdadeira crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más, de surpresas, de ódios". E mais adiante: "O volume, vez por outra, dá a penosa impressão de um desabafo, mais próprio das seções livres que do prelo literário."

Em suma, para Alcides Maia, Lima Barreto não atingira o ideal artístico colimado, justamente porque não tivera força para sopitar o ódio de que se achava possuído contra o meio onde havia formado a sua personalidade.

Em todo o caso, Alcides Maia tratara-o com respeito, e isso significava muito, em meio ao boicote da grande imprensa. Os jornais continuavam mudos. Apesar da campanha de silêncio, o livro se vendia, o que transmite ao escritor desprezado uma sensação de euforia. Em maio de 1910, Lima Barreto escreve ao editor Teixeira, comunicando que, "no Rio, não há mais nenhum exemplar do Isaías", e tal coisa acontecia o detalhe não deixa de ser interessante "há perto de três meses". Sugere, então, uma segunda edição, o que entretanto não encontrou receptividade por parte do livreiro português, que possuía ainda boa quantidade de exemplares no depósito.11

De qualquer modo, o sucesso do livro de estréia não satisfez ao escritor, consciente do seu valor, e que só recebia, até mesmo nos elogios, restrições que o magoavam por sentir-se ora incompreendido, ora frustrado nos seus objetivos.

[...]

Durante muito tempo, pelo resto mesmo da vida, hão de repugnar-lhe as opiniões dos que insistiam em tocar na ferida, apontando o "ponto fraco" do Isaías Caminha, quer para elogiá-lo, quer para denegri-lo. A preocupação que sempre teve em explicar e apresentar justificativas, chega a dar a impressão de uma idéia fixa a lhe martelar insistente e continuamente o cérebro.

O Isaías Caminha marcará a obra de Lima Barreto como um gilvaz a testa de um esgrimista do século XVII. Há de ser sempre o autor de um romance de escândalo. Os senhores da literatura, os que vestem casaca e freqüentam a Livraria Garnier, jamais lhe perdoarão a ousadia da violenta arremetida, as diatribes ferinas que dirigira a certos príncipes do jornalismo e das letras, as caricaturas cruéis que ainda hoje cobrem de ridículo medalhões cheios de empáfia, os mais importantes medalhões da época.

Num movimento de autodefesa, mais do que natural, os mandarins enfurecidos se congregaram para repelir a audácia do mestiço. À porta da Cidade das Letras, como na da Escola Politécnica ou na da Secretaria da Guerra, haveria de encontrar sempre quem o advertisse: é proibida a entrada aos homens de cor, especialmente aos mal comportados. Era o seu pecado original. E por ele pagava.

À condição de mulato, Lima Barreto atribuiria sem dúvida a má vontade para com o seu livro de estréia. No seu entendimento, a restrição ao romance à clef não passava de simples pretexto, encobrindo o verdadeiro objetivo do revide. Tendo o complexo da cor como ponto de partida, o escritor começava a traçar paralelos entre o "seu" caso e o dos "outros". A esfinge, de Afrânio Peixoto, por exemplo, era também um romance à clef, retratando a vida mundana do Rio de Janeiro e de Petrópolis.

Publicado em 1911, dois anos após o aparecimento do Isaías Caminha, a crítica foi unânime em elogiá-lo. Ninguém se lembrou de falar nos romances à clef como um gênero inferior de literatura. E por quê? indagaria consigo mesmo. Simplesmente porque Afrânio Peixoto pertencia ao grupo dos donos da inteligência e da cultura. E ele, Lima Barreto, não passava de um "roto".

Dentro da lógica do desprezado, a comparação é perfeita. O autor vitorioso era de fato a antítese do confrade humilde, que morava nos subúrbios e exercia modestíssima função na Secretaria da Guerra. Afrânio Peixoto, ao contrário, muito moço ainda, participava das grandes instituições do país, das academias e das faculdades, como um pequeno sábio. E, além do mais, era branco.

Lima Barreto leu A esfinge e achou-o, como romance, detestável. Oferecendo o exemplar por ele lido e anotado ao seu mais constante e fiel amigo, Antônio Noronha Santos, deixa escapar, na dedicatória, toda a sua amargura. "Ao Sr. Dr. Antônio Noronha Santos, desejando que tenha na sua estante uma eloqüente prova da importância do senso literário nacional e também do critério que, por este século XX, ainda se tem, entre nós, do romance, ofereço este livro, cujas virtudes opiáticas não são de desprezar. Rio de Janeiro, 25. VIII. 11. (a). Lima Barreto."

O exemplar de A esfinge serviria assim como uma prova documental da injustiça que sofrera. Há mais a registrar. Entre as muitas anotações existentes no volume, feitas pelo próprio Lima Barreto, uma é preciosa para se tirar a conclusão definitiva do travo que ainda amargava a alma do escritor desprezado: "É à clef, e eles elogiaram."12

Anos mais tarde, Lima Barreto volta ao assunto, para fazer a defesa dos romances à clef. Para ele, o gênero não implicaria nenhuma inferioridade literária, mas uma forma de literatura militante.13 Praticando-o, o autor devia "retratar o personagem, dar-lhe a sua fisionomia própria, fotografá-lo, por assim dizer".

Assim comentava em 1921 O homem sem máscara, romance aliás medíocre, da autoria de Vinício da Veiga. Um ano antes de morrer, Lima Barreto parecia estar respondendo ao artigo em que Medeiros e Albuquerque enumerou os defeitos do Recordações do escrivão Isaías Caminha.

"A força dos romances dessa natureza dirá, nessa oportunidade, a propósito dos romances à clef reside em que as relações do personagem com o modelo não devem ser encontradas no nome, mas na descrição do tipo, feita pelo romancista de um só golpe, numa frase. Dessa forma, para os que conhecem o modelo, a charge é artística, fica clara, é expressiva e fornece-lhes um maldoso regalo; para os que não o conhecem, recebem o personagem como uma ficção qualquer de um romance qualquer e a obra, em si, nada sofre. Com o recurso, porém, de simples pseudônimos transparentes, o trabalho perde o seu quid artístico, passa a ser um panfleto comum e os personagens, sem vida autônoma e sem alma, simples títeres ou fantoches."

Depois dessa dissertação, Lima Barreto aconselhava ao jovem romancista a tomar o caminho da literatura militante, "criticando semelhante ‘pessoal’ [a gente da sociedade], não em relação ao plano anormal da sexualidade humana, mas em relação aos interesses sociais que, na vida comum, ele lesa mais do que quando se entrega às suas mórbidas abjeções sociais".14

Doze anos depois do aparecimento do Isaías Caminha, ainda doía a ferida mal cicatrizada.

1. Carta a Antônio Noronha Santos, Rio de Janeiro, 18-5-1909. "Duas cartas inéditas de Lima Barreto". O Globo, Rio de Janeiro, 4-9-1933. V. Correspondência, I, p. 76.

2. Histórias e sonhos, p. 29.

3. "Primeiro contacto com Lima Barreto". Artigo de B. Quadros, na revista Vida Nova, Rio de Janeiro, 25-1-1936. N. 279, pp. 23-24, reproduzido como prefácio ao volume Correspondência, II.

4. Santos Dumont, por Gondin da Fonseca. Rio de Janeiro, Vecchi Editor, 1940, pp. 133-134. A inclusão do nome de Costa Rego não nos parece corresponder à verdade, já que a sua entrada no Correio da Manhã, como simples revisor, data de 1906. A estes nomes, acrescenta Modesto de Abreu o de Cândido Jucá, representado no personagem Plínio Gravatá.

5. Gonzaga de Sá, p. 134.

6. O cemitério dos vivos, pp. 168-169.

7. Isaías Caminha, 1a edição, p. 285. A observação pertence a Modesto de Abreu. "A chave do Isaías", artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16-2-1936.

8. "Crônica literária", por J. dos Santos (pseudônimo de Medeiros e Albuquerque). A Notícia, Rio de Janeiro, 15-12-1909.

9. Carta a Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro, 15-12-1909. Col. Lima Barreto. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. V. Correspondência, I, p. 198.

10. "Crônica literária", assinada com a inicial A. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16-12-1909.

11. Carta a A. M. Teixeira, de 28-5-1910, e resposta deste, a 18-6-1910. V. Correspondência, I, pp. 177-179.

12. "Lima Barreto e Afrânio Peixoto (Em torno de dois romances à clef)" artigo de Antônio Noronha Santos. Pan Estadual, Rio de Janeiro, novembro e dezembro de 1942, pp. 5-7.

13. "Como sempre falei em literatura militante"... V. "Literatura militante", artigo de Lima Barreto. Impressões de literatura, p. 72.

14. "Um livro desabusado", artigo de Lima Barreto. A.B.C. Rio de Janeiro, 24-12-

1921. V. Impressões de leitura, pp. 202-203.

(A vida de Lima Barreto, capítulo VI, 1952.)