Senhor Francisco de Assis Barbosa,
Foi no Teatro Municipal, numa remota tarde de dezembro, tão abrasadora que, de noite, redundou em trovões e chuvarada.
No palco, onde tantas óperas me deslumbraram ou me entediaram, desfilava eu, representando uma das comédias da minha vida – o recebimento do canudo de bacharel. Passo a passo ia a fila para o juramento formal, e na minha frente, por artes das ordens alfabéticas, estava o imberbe Donatelo Grieco, a quem o velho e caro Agripino apadrinhava. Fizera-me rir o terrível satírico, quando contemplava a plateia e me dissera:
– Que assistência para uma conferência paga!
E, na verdade, estava à cunha o teatro, orgulhoso mundo familiar a que não faltava a presença presidencial, levada ali também por razões paternais, tanto assim que aquela fornada jurídica cognominada foi de “a turma da Alzirinha”.
Não me viera à cabeça a ideia de um padrinho, personalidade que todos os bacharelandos portavam a tiracolo, talvez porque sempre passara sem eles. Mas era tão jovial o semblante do já formado Francisco de Assis Barbosa, que perto de mim se encontrava, que, para não ser um original naquele grupo, solicitei-me o apadrinhamento.
Risonho, acedeu e, ao seu lado, suando mais de calor que de emoção, rosnei as palavras sacramentais, que nunca tive a oportunidade de trair, como é da triste condição humana. Como a minha claque era escassa, chochos foram os aplausos que recebemos.
Hoje, tantos anos passados, o ato se inverte. E sou eu, Sr. Francisco de Assis Barbosa, que, por determinação do Presidente desta Casa, vos apadrinho aqui, ao receberdes um diploma menos vulgar. E, seguramente, teremos palmas mais fortes do que aquelas da antiga tarde calorenta, tão numerosos são os vossos amigos e admiradores que abrilhantam este salão entre luzes, flores e alegria.
A vossa presença naquele cenário ainda algo estudantil constituía uma volta irreversível, o reencontro com a cidade de tão caras lembranças, o reatamento de saudosas convivências intelectuais, a reaparição nos célebres jantares do dia 13, cujo principal prato do cardápio era o olho nestas verdes poltronas, o reinício das conversas de porta de livraria, o reaproximamento da redação e do jornal, o vosso verdadeiro caminho, em suma.
É que, logo após a formatura, fostes para Guaratinguetá, vossa cidade natal, tentar a Advocacia e a Política. Vossa ascendência paterna, toda lá nascida, inclusive aquele Custódio Leme Barbosa, que estava na Guarda de Honra do Príncipe D. Pedro, junto à colina do Ipiranga no dia do grito da “Independência ou Morte”, remonta a Domingos Leme, fundador da vila, que vinha em linha direta de um dos primeiros povoadores vicentinos, certo Antônio Rodrigues, êmulo e contemporâneo de João Ramalho, e que se uniu à filha de um cacique. Não assim a materna, que tem sangue cearense, carioca e italiano, sangue dos Papaterra, gente pastora e meio grega, ardente e liberal, oriunda de Basilicata, no golfo de Policastro, que, recorte do mar Tirreno, de vós mereceu uma comovente visita tão própria do vosso coração. O velho Papaterra, admirador de Garibaldi e Mazzini nas lutas pela emancipação italiana, na velhice guaratinguetaense despiu-se do seu anticlericalismo, doou as insígnias maçônicas ao filho, João Papaterra Limongi, que seria um dos líderes católicos de São Paulo.
Advocacia? Política? Nem uma coisa, nem outra. Ribeiro Couto, admirável escritor, que honrou esta Casa, admirável amigo, cuja saudade é permanente, era estupendamente epistolar. De Haia, em carta com data de 13 de maio de 1936, entre outros dizeres, aconselha:
Guaratinguetá é foro de luxo, cidade de luxo, com o clube, o coronel Benedito Rodrigues Alves jogando bilhar, a estátua do conselheiro na praça, as moças vestidas com elegância... Meta a cara numa promotoria em São Luís do Paraitinga, ou numa daquelas cidadezinhas dos sertões cafeeiros, onde a gente anda de chinelo conversando com o juiz, ou cuide de entrar para o Itamaraty...
Não cuidastes de entrar para a diplomacia, nem destes com os costados nos sertões cafeeiros. Nomeado delegado de polícia, fostes para São Luís do Paraitinga, cidadezinha modesta na serra, entre o vale e o mar, mas orgulhoso berço de um grande brasileiro, que também foi ornamento deste Cenáculo – o sanitarista Oswaldo Cruz. Antes, porém, estivestes fulminantemente em Aparecida, colada à vossa Guará, cidade de tantos milagres, menos um – o de um arquiteto, e na pacata Queluz, que também é ali pertinho, matéria de algumas considerações poéticas:
Se sair terei de dar ordens ao comandante do destacamento,
Se ficar no hotel terei de conversar com o juiz...
Prefiro ouvir a chuva, lá fora, tocar tambor nos tinhorões.
São Luís do Paraitinga era burgo pacífico e a pasmaceira da Delegacia só era quebrada por pancadaria consequente das sabatinais ou domingueiras cachaçadas. As horas não passavam como se os dias terrenos tivessem a duração dos lunares. A enchê-los havia o juiz para uma prosa meio jurídica, meio literária, havia a farmácia para a tertúlia meio literária, meio política, mas forte no mexerico, que é o sol da vidinha provinciana. E havia os livros, ora o mergulho na universal ficção, ora os primeiros ensaios na crítica, na biografia e na bibliografia e, ainda, o aprofundamento da paciente e idônea pesquisa histórica, que vos levaria mais tarde à consagração do Instituto Histórico. E havia ainda a poesia, suave companheira, muleta da vida, estro bissexto que vosso compadre Manuel Bandeira registraria:
Alvas e frias as igrejas aceitam a noite plena
Os lampiões sufocam ao peso verde das árvores.
O apelo familiar impôs a remoção para Aparecida, mais perto de casa. Outra vez Aparecida, com seu santuário, suas romarias e seus vendilhões! Mas, a miraculosa pretinha padroeira do Brasil, que em criança vós pensastes ser esposa de São Benedito, manobrando o interesse da politicagem contra a vossa permanência, punha fim à aventura policial, que durou dois anos, e vos mandava para o Rio, a vossa cidade de adoção, e vós ficastes devendo, pelo menos, um jurídico retrato de beca à sala dos ex-votos.
Reiniciastes a labuta jornalística, começada quando acadêmico de Direito. Ribeiro Couto, sempre atento, escreve menos apreensivo: “Caboclinho, recebi aqui, com a Europa em guerra, sua carta de 23 de agosto. Trouxe-me a saborosa agitação do jornal. Por pouco eu descia a escada e ia lá falar com o gerente, fazer um vale.”
Eram avaros os gerentes de jornal, mas a vida tem que ser vivida. Gastastes talento por várias redações, mas equilibrastes as finanças como técnico de Educação. Em tal condição, servistes no Instituto Nacional do Livro e, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, na Seção de Publicações, deixastes marcada a vossa passagem pela inapreciável operosidade e intenso amor às Letras do passado.
Dissemos que a vossa volta ao Rio era irreversível. Mas, em decorrência dos trabalhos empreendidos no Instituto Nacional do Livro, houve um hiato paulistano, do qual saiu, em colaboração com Rubens Borba de Morais, o Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, obra chave e imprescindível para se firmar o pé nos conhecimentos de nossa cultura.
A ABDE, cuja sigla é de autoria do companheiro Levi Carneiro, é iniciativa que se deve ao irrequieto Osvald de Andrade. Foi ele que trouxe a ideia para o Rio de Janeiro, convidando nosso caro Manuel Bandeira para as primeiras articulações. A reunião inaugural deu-se em 1942, na sala de conferências do Instituto Histórico. Quando os fundadores, imortalizados pela fotografia do ato, subiram as escadas do Silogeu, depararam com a essa de Irineu Machado, tribuno e político da também finada República Velha, cujo enterro dali sairia.
Manuel Bandeira só estabeleceu uma condição para aceitar a presidência: que Francisco de Assis Barbosa fosse o primeiro-secretário. Fizestes parte da comissão de estatutos, vos esforçastes pela realidade da entidade, mas a vossa estada em São Paulo interrompe o ímpeto associativo, e Carlos Drummond de Andrade lamenta em carta:
Até agora nada de concreto. Temos bonita sala na Associação Comercial. Mas tudo continua no mesmo, embora com tendências para melhorar. O primeiro-secretário acha que o serviço deve ser feito pelo segundo. E o segundo acha que deve ser feito pelo primeiro. Como não há um terceiro, nada se resolve... É tão difícil fazer qualquer coisa quando há mais de três pessoas! E que pode, nesta vida, um vice-presidente?!
Voltastes. O Rio já começava a perder o amável ar de imensa aldeia, para tomar a angustiante senda das grandes metrópoles. Os cafés sentados, clubes baratos para a conversa fiada, principiavam a desaparecer, os quintais de frondosas árvores iam se transformando em desumanos edifícios de apartamentos. Os ecos da guerra repercutiam em cada casa, e, na guerra nós já estávamos, sentindo-a em tudo, ou quase tudo. Reintegrastes-vos na lida jornalística, notáveis foram as vossas reportagens publicadas depois em volume. Assumistes o cargo de assistente da direção da Faculdade Nacional de Filosofia, sob a gestão de San Tiago Dantas. Dirigistes uma editora, reiniciastes vossos esforços na ABDE. O I Congresso Brasileiro de Escritores foi regado com o vosso suor. Tinha ele fundo eminentemente político, que refletia os confusos ou desencontrados anseios democráticos do povo brasileiro. Dele fostes o incansável secretário-geral. Dele surgiria uma Declaração de Princípios que, uma semana depois de lida solenemente, seria o primeiro impacto que abalaria os alicerces do Estado Novo.
Chegamos a 1946, com o país em nova ordem ou, se quiserem, numa nova forma de desordem. Participamos, Sr. Francisco de Assis Barbosa, da assessoria do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, junto ao Ministério das Relações Exteriores, que era uma espécie de ócio remunerado; como fomos redatores do Diário das Sessões, na Conferência Interamericana para a Manutenção da Paz e da Segurança do Continente. Não garanto que a segurança continental tenha sido conseguida, mas garanto que foram dias maravilhosamente divertidos aqueles na fresca e imperial Petrópolis, de neblina e hortênsias, quando, de parceria, na folga dos afazeres redacionais, compúnhamos bestialógicos sonetos satirizando vultos exponenciais do conclave, para desespero do nosso compenetrado companheiro, que foi membro ilustre desta Companhia – Álvaro Lins – sonetos em que falávamos
da tristeza de um mundo em desatino,
que não pode cumprir o seu destino,
sem DIP, sem Gestapo e sem polícia.
Com a jovialidade, que é um dos vossos traços dominantes, continuastes em intensa atuação, na imprensa diária e hebdomadária, na Câmara dos Deputados, como redator dos Anais e Documentos Parlamentares, integrando delegações a conferências internacionais. Sois levado a assessoria da Presidência da República no governo do presidente Juscelino Kubitschek e nomeado advogado da então Prefeitura do Distrito Federal. Integrastes a redação da Enciclopédia Britânica e coordenastes a seção de História do Brasil da Enciclopédia Barsa, Editastes os cadernos do Jornal do Brasil, comemorativos do IV Centenário de Fundação da Cidade do Rio de Janeiro, documentação preciosa para os estudantes do futuro, e sois nomeado procurador do Estado da Guanabara, cargo no qual vos aposentastes com os cabelos já brancos, mas a alma ainda jovem. Participais de Colóquios Luso-Brasileiros, participais de bancas examinadoras para preenchimento de cátedras e doutoramento na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo, participais da Comissão Machado de Assis, encarregada da edição completa das obras do grande escritor, que a Academia tem como nume, e dirigis a veneranda Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Indicado professor visitante na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos da América, ministrais um curso de História das Ideias Políticas no Brasil, e coordenais um seminário sobre as eleições brasileiras na Primeira República.
E, a par das sucessivas e múltiplas ocupações, enriqueceis nossas estantes com assíduas publicações de obras que vos valeram a entrada nesta Academia. Inútil enumerá-las ou exaltá-las. A vossa eleição vale mais que qualquer palavra minha de louvor.
Há uma, porém, que não pode deixar de ser lembrada agora e aqui – A Vida de Lima Barreto.
Fruto de beneditina paciência documental, é trabalho modelar no campo da nossa biografia e um preito de amor ao grande romancista citadino de engajada visão. Com um estilo de meridiana claridade e eficiência, oferecestes, de corpo inteiro, dia a dia, do nascimento à morte, com o rigor de um microscopista, a figura do homem e do escritor e a sua trágica e inquieta trajetória.
Afonso Henriques de Lima Barreto, nome senhorial de tão humilde mestiço, um dia bateu à porta da Academia. Tem ela sido bastante estreita para alguns e o foi para ele. Se respeitava a Instituição, atacara-a rudemente: “A Academia Brasileira” – acusava ele – “começou com escritores, tendo estes por patronos também escritores; e vai morrendo suavemente em Cenáculo de diplomatas chics, de potentados do ‘silêncio é ouro’, de médicos afreguesados e juízes tout à fait.” O pleito, com poderosos concorrentes, não teve definição e, na segunda inscrição, o romancista não voltaria. Mas teve dois votos no primeiro escrutínio e um nos outros três, votos do sábio e generoso João Ribeiro, que escrevera na sua coluna literária, como um voto a descoberto: “Lima Barreto entraria pela porta principal e talvez pela minha mão, se ela fosse firme e eu pudesse estender-lha.”
Não culpemos demasiadamente a Academia pelos seus tropeções ou erros de caturrice, tão peculiares à natureza humana. Em cada época a maioria acadêmica tem que forçosamente representar um determinado estado de espírito, mesmo que incapaz de com facilidade distinguir as novas auroras, e creio até que reside aí sua força e sua perenidade, pois a disparidade de opiniões no seu seio seria como perigosos rombos numa barca cuja finalidade é vencer com segurança nos mares do Tempo. Aquela maioria era a mesma, ou quase a mesma, que não compreenderia o advento modernista e que o repeliria ou negaria, advento revivificador do pensamento brasileiro que, mais tarde, viria tomar assento predominante neste plenário. A obra de Lima Barreto, por seu vigor reformante, por sua iconoclastia, não sensibilizava os eleitores apegados a formas mais conservadoras e gastas. Demais, o procedimento irregular e boêmio do candidato não condizia com a necessária respeitabilidade acadêmica, coisa que o próprio Lima Barreto reconhecia quando explicou a sua candidatura.
A Academia se transforma lentamente, avessa às revoluções, repelindo as modas agressivas, apenas evoluindo naturalmente atenta às justas consagrações. Hoje, senhor Francisco de Assis Barbosa, compreendido e imortal, o repelido criador de Isaías Caminha, Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá entra gloriosamente na Casa de Machado de Assis, conduzido por vossa mão, cuja bondade e lucidez não difere da de João Ribeiro, e dela nunca mais sairá, como um dos seus mais altos patrimônios.
E que o vosso convívio seja duradouro é o nosso mais vivo desejo. Sabemos todos dos vossos dotes amicais e ansiamos por deles compartilhar. Roquette-Pinto, um dos nossos que se foram, já escrevera com mão idônea: “Francisco de Assis Barbosa, que bom ser seu amigo!”
13/5/1971