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Discurso de posse

É com o maior desvanecimento que venho ocupar a Cadeira 9, para a qual fui eleito por vossa generosidade.

Domingos José Gonçalves de Magalhães, o Visconde de Araguaia, é o patrono da Cadeira, Carlos Magalhães de Azeredo o seu fundador, e Marques Rebelo seu segundo ocupante.

Nasceram todos três no Rio de Janeiro. Assim também eu. Só o destino poderá dizer e espero que o faça o mais pausadamente – se é, esta, uma “Cadeira cativa” de nossa cidade.

Pouco devo dizer sobre seu patrono e de seu fundador. No admirável discurso aqui pronunciado em 28 de maio de 1965, por ocasião de sua posse, Marques Rebelo fez-lhes o elogio da maneira mais esplendente. Diria apenas do visconde de Araguaia que, sem abrigar grande admiração por sua poesia, talvez em consequência de minhas próprias deficiências, não posso deixar de louvar o seu desejo de trazer à nossa Poética novos temas, afastando os motivos de inspiração clássica, que, para ele, nada mais eram do que “antigos e safados ornamentos de que todos se servem e a ninguém honram”. Aprecio, ainda, a Confederação dos Tamoios, rude reminiscência de meu tempo de secundarista, mas importante por ter dado valorização ao Indianismo e à temática nacional.

A posição de Araguaia parece-me indiscutível como introdutor do Romantismo no Brasil e renovador de nossa Literatura.

É que os criadores da ação intelectual não são necessariamente seus melhores artesãos. Distinguem-se por seu carisma, por sua força de persuasão e por sua capacidade de liderança e, sobretudo, pela coragem com que enfrentam a inércia do pensamento e combatem o conservantismo, o qual, ciosamente entrincheirado em irremovíveis estabelecimentos, opõe-se às aventuras do espírito, propiciadoras, muitas vezes, do progresso humano.

Penso, assim, que a obra de Domingos José Gonçalves de Magalhães responde ao prognóstico feito por Francisco de Sales Torres Homem, ao ensejo da publicação, em 1836, do livro Suspiros Poéticos e Saudades, e expresso na Revista Brasiliense: “Esta produção de um novo gênero é destinada a abrir uma era na Poesia brasileira.”

É com ternura que evoco Magalhães de Azeredo, velho amigo da família de minha mulher. Poeta bem maior, imagino-o em Roma, onde viveu quase toda a sua vida. Não quero recordá-lo no momento em que o conheci, já alquebrado pelos anos e pela dor de sua apaixonada viuvez, mas revê-lo em outros tempos, quando moço, belo e combativo, se lança na arena literária da Itália, estuda Leopardi, publica seu melhor volume de poemas, Odes e Elegias, e tenta repetir a iniciativa de Carducci nos seus versos bárbaros, procurando adaptar à métrica latina a prosódia brasileira.

Nada importa que a iniciativa não tenha frutificado. O contexto da época não permitia a liberdade da métrica e da rima e, ademais, obedecíamos aos rigores da versificação parnasiana, que não pôde superar.

Vejo-o também brilhando nas tertúlias literárias do Café Greco, junto à Piazza di Spagna, ombreando com D’Annunzio, a quem tutelava, atônito frente à Santa Teresa de Bernini, na Igreja de Nossa Sra. da Vitória, em San Pietro in Vincoli, ou então na Basílica de San Clemente e em tantos outros sítios que constituem a minha constante peregrinação quando vou a Roma. Do mesmo modo, à noite, como manda Eugênio de Castro, vagando pelos logradouros despovoados da cidade e procurando destrinçar-lhe a alma! Na Piazza de Santo Inácio, cujo décor goldoniano tem a graça leve de uma paisagem veneziana, na Piazza dei Populi, no mesmo local onde séculos atrás quinhentos cavalheiros multicolores esperavam Lucrécia Bórgia, a futura duquesa de Ferrara, ou então em Santa Maria del Monte, deixando que se perca no horizonte o seu fino olhar de esteta.

Magalhães de Azeredo, o amigo de Machado de Assis. Surpreendente amizade entre dois varões parados pela idade, pelas origens sociais e pela distância, unidos apenas pelo ideal literário. Amizade que nos deixou correspondência que permite aprofundar a análise psicológica de dois escritores.

Marques Rebelo se situa na linha de Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto, e ainda, dos que, como Otávio de Faria, fazem do Rio o cenário de sua dramatologia. Na visão vertical de nossa cidade, Marques Rebelo vai mais fundo e supera os seus antecessores.

Seus personagens, provenientes de estratos sociais diversos, quase sempre de um submundo social e, por isso mesmo, não submetidos a restrições de caráter convencional ou ético, na grande maioria são seres conformados, até mesmo satisfeitos com seus medíocres destinos. São cariocas, no que de mais típico poderiam sê-lo então: funcionários públicos, militares reformados, artesãos, comerciários, operários, mata-mosquitos, domésticas, atarefadas donas de casa, a viver todo o drama mensal de orçamentos deficitários, do pagamento aos prestamistas, das contas espetadas na quitanda da esquina ou no padeiro impaciente.

“É preciso pagar o Seu Salomão. Ele já veio hoje, que era o dia marcado. Eu pedi desculpas” – diz D. Veva em “Na Rua D. Emerenciana”, cujo fecho é um dos que mais fundamente mostram a sensibilidade de nosso grande escritor. Não me furto a citá-lo: “Seu Azevedo continuou: ‘Não a deixou sozinha. Pense bem. E os filhinhos?’ D. Vera espantou os olhos para Seu Azevedo, emudeceu. E quando pensou nos seus cinco filhos, aí é que ela viu mesmo que estava sozinha, e de mãos para os céus começou a gritar.”

É ainda o caso de Oscarina, que Jorge, o futuro sargento Gilabert, para seu tormento, conheceu num “mafuá de Botafogo, defronte da barraquinha das argolas”, o de Jonas Madureira da Silva – “Madu na intimidade matrimonial” –, o coronel que, achando uma espiga a comissão que a revolução vitoriosa à qual aderira convictamente ia lhe dar, “voltou para a rede, tirou a pestana até a hora do lanche, quando papava mingaus de maisena, araruta, milho verde ou canjiquinha”.

Os personagens de Marques Rebelo existiram e ainda estão vivos. Reproduzo o diálogo que recentemente travei com um “carioca da gema”, trabalhador de boa qualidade, eventual companheiro de condução na volta do Fundão:

– “E sua filha?”, perguntei.
– “Nunca me deu trabalho. Nada de amiguinhas, só vai ao cinema aos sábados, com o namorado e a mãe.”
– “E o filho?”
– “Está fazendo tempo pra sentar praça. Quer ser cabo. Um cabo ganha muito, Seu Doutor!, um menino muito bom, só um pouco perturbado pelas novelas.”

Mas não só os pequenos burgueses compõem o mundo de Marques Rebelo. Também os marginalizados, como Teixeirinha, que “vive de expediente” e se torna o proxeneta da Risoleta de Marafa, a qual “se perdera com um soldado e não achou jeito de voltar novamente para ama-seca, dormiu com um e outro e caiu na vida”.

Há ainda outro aspecto em que Rebelo é inigualável. O da descrição de quarteirões menos chiques e barracos, e da alma generosa da gente modesta no Rio e de suas vicissitudes. Cito, de A Estrela Sobe, o seguinte trecho:

Seu Martim, que era bem mais velho que a mulher, caiu de cama, entrevado. Assim viveu dois anos sem trabalho, mal protegido pelos patrões ou por algum amigo mais dedicado. Depois de sua morte, D. Manuela não ficou ao desamparo. Mudou-se para a casa de uma comadre viúva e sem filhos, que alugava cômodos. A casa ficava numa ladeira na Saúde. Estreita, iluminada a gás, um lampião aqui, outro lá em cima, a ladeira calçada à antiga, com grandes pedras desiguais que um capim raquítico parecia separar. Quando chovia, transformava-se numa cascata que impossibilitava o acesso. Comprimiram-se as três no quarto da comadre... D. Manuela para se aguentar pensou pois em meter a menina no asilo e voltar para a sua vida de solteira. Mas a comadre dissuadiu-a. Casa tinha, precisava era para fazer a comida e o resto...

Maravilhosas as suas descrições do carnaval.

Massa compacta povoada sob densa nuvem de pó que os pulmões não sentem absorver, os carnavalescos cumprem o seu dever molhados, gotejantes no calor descomunal, impulsionados pela orquestra infatigável, com a cadência ora acelerada ora dolente dos seus requebros, com o fragor sincopado dos pés no assoalho.

É um baile do Clube dos Laranjas. Do High-Life, atração de tempos idos, reminiscência secreta de muitos hoje encanecidos, diz Rabelo – e com que veracidade – : “Há tipos que só encontramos no High-Life, porfiando as mais das vezes a mesma fantasia que mais os singulariza; durante o ano todo desaparecem de nossa vida, como se morassem em outra cidade, ou vivessem enfurnados e somente no carnaval se soltassem.”

Também do carnaval de rua:

A avenida é um mar de foliões. Serpentinas cortam o ar carregado de éter. Rolam das sacadas, pendem dos fios, unem com os seus matizes os automóveis do corso. Sai da frente! Sai da frente!... O grupo de cartolas empurra para passar, com a corneta que arrebenta os ouvidos. O chão é um espesso tapete de confetes. Há uma loucura de pandeiros, de carros, de chocalhos.

Como me recordo desse tempo, hoje tragado pelo nosso violento processo social. Vejo com tristeza a nossa festa popular pouco a pouco substituída por atração cada vez mais distante de suas origens autênticas e ameaçada por isso mesmo de soçobrar na maré do comercialismo televisionado. Ah! Como me lembro das madrugadas de cinzas, nas quais grupos de jovens – as faces desfeitas pelo cansaço acumulado, últimos foliões no tríduo – entoavam o Quebra-Quebra Gabiroba, e o término do baile do Palace Hotel era prolongado pela canção que Chiquinha Gonzaga deixou! Ó Abre Alas, enquanto que a luz não se apagava sem que se cantasse, última rodada, esta obra-prima da canção popular brasileira, espécie de hino da boêmia nacional que Noel Rosa e João de Barros compuseram, As Pastorinhas.

Eis que, sem o desejar, deslizei da apreciação de Rebelo para a reminiscência própria. Por ter pisado os mesmos caminhos, amado as mesmas gentes, árvores, flores, pássaros, mar – mar, pássaros, flores, árvores e gente de nosso Rio –, foi com a mais funda emoção que li ou reli a obra de Rebelo e procurei perscrutar as veredas de sua personalidade.

A obra e a vida de Marques Rebelo são uma só realidade. Raramente terá conseguido um escritor de gênio tão bem transferir para a sua prodigiosa narrativa a própria experiência, sua “intuição acumulada”, seja a memória subconsciente, ligada ao meio psicológico e físico onde se passaram as fases críticas da formação de qualquer agente criador e sempre presente no ato da criação.

Assim, porque nasceu no Rio e aqui curtiu a vida, nossa cidade permeia a produção de Rebelo a tal ponto, que Luciana Stegagno Picchio, professora de Literatura Portuguesa em Roma, refere-se a ela desse modo: “O verdadeiro personagem de Marques Rebelo é a cidade, o Rio que vive física e simbolicamente nos seus contos e novelas tanto quanto no seu primeiro romance.”

A expressão só é verdadeira porque Marques Rebelo, na sua cuidadosa técnica literária, é um romancisca egocêntrico. O Rio não é uma simples moldura para seus personagens, torna-se parte integrante de seu discurso literário. Participa deste e estabelece com aqueles uma ligação que corresponde a uma total integração.

Marques Rebelo pressentiu a transformação por que passaria o romance no mundo ocidental, caracterizada pela perda da impulsão nas suas formas clássicas; realizada lentamente, a renovação procurou tirar do romance as suas características antropomórficas. Iniciada com a fase naturalista, atinge plena eclosão com Kafka, James Joyce, Sartre e Camus. Alcança sua melhor expressão atual com Robe-Grillet, Nathalie Saraut, Michel Butor, James Baldwin e Angus Wilson.

Observa-se esta evolução no próprio romance policial. Neles, aspectos de evidência passaram a desempenhar papel tão importante quanto o dos decifradores dos crimes com que se envolvem. Do detetive que se baseia na indução – é o caso de Sherlock Holmes –, passou-se à dedução obtida a partir de provas materiais – como Hercule Poirot –, ou então, só se concluiu a investigação criminal quando houver sido encaixilhado o suspeito às condições reais de sua existência – como o faz Maigret.

É mais provável que a mudança tenha sido causada pela transformação da sociedade humana, através do aparecimento da civilização de consumo (a civilização das coisas) – na qual a tendência é dar preferência aos objetos em relação ao homem e onde o homem coletivo, vale dizer, o homem médio representativo da massa, esmaga o homem indivíduo. O romancista atual procura opor ao executive tecnocrata anti-humano o anti-herói mais do que humano.

Na verdade, o desejo de desmitificar o personagem é uma expressão do espírito de nosso tempo, no qual o pensamento humano perde a sua tendência antropocêntrica, e assume atitude antropofágica, da qual o existencialismo que leva ao egocentrismo é uma constante.

A desmitificação de que falo é uma tônica de Marques Rebelo. Seus personagens são anti-heróis.

Longe de mim querer enquadrar Marques Rebelo em qualquer categoria de escritor. Quando Pedro Dantas analisa Marafa, o primeiro romance de Rebelo, em seu prestigioso rodapé literário, sente-se este lisonjeado, mas surpreende-se com a afirmação de que o romance – da maior dramaticidade e profundamente humano – “constitui-se de dois contos se entrecortando”. Anota então em seu diário:

Poderíamos responder que não existe uma forma para o Romance; se tomarmos um grande romance do século XVIII e um grande romance deste século, quase nada têm de comum, como se fossem coisas de gênero diverso. É que mesmo um romancista pode achar para seus romances os mais diferentes caminhos e processos.

* * * * *

Na verdade, o uso da língua é impecável em Marques Rebelo. Mágico da técnica literária, sabe multiplicar as abordagens que dá à sua narrativa. A afirmativa de Mário de Andrade de que “na dialogação Marques Rebelo é absolutamente incomparável”, pode induzir a erro. É o que acontece ainda com Luciana Stegagno Picchio, quando diz: “Seus personagens não são descritos; apresentam-se por si mesmos dialogando.”

Tomemos a figura de Clarete, do conto “Felicidade”, de irônico happy ending:

Houve tempo em que Clarete se chamava simplesmente Clara. Tinha então os cabelos compridos, pestanas sem rímel, sobrancelhas cerradas, uma magreza de menina que ajuda a mãe na vida difícil e um desejo indisfarçável de acabar com as sardas que lhe pintalgavam as faces e punham no narizinho arrebitado uma graça brejeira. 

Clarete desmente a afirmação da ilustre mestre italiana.

É verdade que o diálogo é sempre perfeito na sua naturalidade e na sua comunicabilidade:

– Pagou o Seu Francisco, Filoca?
– Paguei Seu Pedro, o recibo botei na sua mesa, não viu?
– Não, mas vou ver. Seu Aragão mandou o salitre?
– Está no porão.
– Bem, e os pequenos, como se portaram hoje?
– Doró fez uma bruta manha e o Edgar azucrinou meus ouvidos batendo latas no terreno todo o dia.

Mas também a descrição:

A casa era no Trapicheiro, velha casa de feitio colonial, no centro do terreno plantado de árvores frutíferas, mangueiras, sapotizeiros, laranjeiras, mamoeiros, uma caramboleira, sobretudo, de ramaria tão basta que nela os pássaros faziam ninhos sem que se distinguisse nenhum.

Cinco sacadas de ferro trabalhado para a frente com azulejos portugueses, um varandim ao lado, porão alto e escuro, reservado aos brinquedos nos dias de mau tempo, dela se ouvia o murmúrio seco do rio, fio d’água que descia do morro, esbarrando nas pedras cinzentas.

O que nos legou Marques Rebelo é uma peça integral. Um bloco de quartzo que como este aguça nosso desejo de procedermos à sua análise estrutural. Como o cristal de rocha, resistirá à ação do tempo.

*  *  *  *
Foi em Vila Isabel, num sobrado parecido com o do Trapicheiro, pois seus pais eram representantes da burguesia imperial em vias de desaparecimento, que nasceu, no dia de Reis de 1907, Eddy Dias da Cruz, conhecido de todos nós, amigos, admiradores e leitores como Marques Rebelo, pseudônimo literário com que deu vida a Oscarina.

É violenta a reação de Eduardo, seu narrador autobiográfico de O Espelho Partido, ao esdrúxulo prenome: “Que é um nome? Que pandemônio de contradições não polarizam as sílabas que nos marcaram, sílabas que não pertencem à matéria original, fonemas de discutível euforia que nos foram impostos como ferrete?”

É o que se encontra no diário de Rebelo, no dia 13 de janeiro de 1936.

Garoto da vila, o espírito gavroche que ainda conheci no Bulevar vai impregná-lo durante toda a vida. Na infância, terá como nós todos, meninos do Rio, conhecido seus locais de maior encanto: o Alto da Tijuca, a Boca do Mato, Paquetá, onde seus pais tinham propriedade, o Parque do Barão de Drummond, a Quinta, o Jardim Botânico, o Leblon com seus cajueiros e pequenas dunas, local onde a colônia britânica instalara seu clube campestre, o Rio de Janeiro Country Club e tantos outros... Partíamos em verdadeiras expedições familiares, madrugadoras, das quais só chegávamos à tarde ou à noitinha, exaustos, pais, tios, irmãos e primos, aqueles jurando nunca mais repetir o feito. “Paquetá não me pega mais!” disse um de meus tios. Ou então, mais brejeiramente, furtivamente, gazeteando as aulas, o que era perigoso por causa das partes e por isto mais apetecedor.

Começou então a conhecer o Rio, pelo qual se ensarilhou, e que tão vivo encontramos nos seus contos e romances, no período de entre as duas guerras de que fala Eliot, caminhando inexoravelmente para a sua sina de megalópole anti-humana.

Uma parte de sua infância, Rebelo a passou em Barbacena. A meiga cidade mineira é outro traço comum em nossas vidas, pois nela passei momentos inesquecíveis: uma convalescença difícil e meses de convivência com Georges Bernanos, de quem diria Rebelo, com a sua ponta de ironia: “Bernanos andou por Pirapora, não sei se apanhou malária, mas agora vive em Barbacena e um dos seus costumes é escrever nas mesas de café. O Bar Apoio é o ponto preferido para escrever sobre a França, sobre Cristo e sobre os católicos...”

Foi em Barbacena que Marques Rebelo aprendeu a escrever, pois a ler já o fizera, sozinho, aos cinco anos, decifrando o Tico-Tico ante o pasmo de suas tias.

Foi também ali, posso quase jurar, que pela primeira vez seu coração bateu mais forte ao ver um rosto de mulher. É o caso de uma jovem alemãzinha, que ponteará depois na figura de uma menina estrangeira, em vários dos seus contos. Lá também viveu o drama do jogador não realizado e do frustrado torcedor de futebol, o qual foi – ah! como o compreendo... – um dos interesses maiores de sua vida, iniciado quando o pai o levou pela primeira vez ao campo do América, camisa rubra, cujos feitos e desventuras ocupam lugar de destaque em sua vida. Foi em Barbacena que lhe deram a ler uma Bíblia, leitura constante de um agnóstico impertérrito. Em suas notas, a dimensão do choque que lhe foi a revelação do Livro Santo é marcada pelo laconismo da entrada em seu diário: “1919, 1.º de abril. A Bíblia!”

Rebelo nunca se esquecerá de Barbacena. Ao rever a cidade, cerca de vinte anos depois, sofre a nostalgia de um grande apaixonado: “A Barbacena verdadeira, de terra batida, terra que o vento levantava em turbilhões, a Barbacena que amei, esta ficou no passado, perdida, mas cantará ainda no fundo do meu coração.”

Voltando ao Rio, inicia seus preparatórios, estudos feitos em grande parte em livros franceses. O Comberousse para as matemáticas, o Ganot-Maneuvrier na Física, entre outros.

Preparatórios! Recordo-me com exatidão fotográfica da primeira vez que me dirigi à Rua Larga para prestar exames no Externato de Pedro II e iniciar o caminho da universidade. Um santinho no bolso, uma caneta-tinteiro, pareciam-me as únicas armas que levava para um combate desigual, pois do outro lado da arena encontravam-se os monstros sagrados do ensino nacional.

Prova escrita pela manhã, lanche apressado e mal digerido no café em frente, depois prova oral à tarde e, por fim a longa e angustiosa espera do resultado. Que emoções terá passado Marques Rebelo na ocasião? Lembro-me bem das minhas...

Rebelo não terá tido dificuldades em ser aprovado. Todo bom estudante é também um bom leitor e ele o foi infatigável desde cedo: “Meu pai tinha uns duzentos volumes na estante de ferro que ficava no corredor.” Leu-os todos quando era menino.

Data do fim do período secundário de estudos o seu desejo de se tornar escritor.

Terminados os seus preparatórios, Marques Rebelo matricula-se na Faculdade de Medicina, talvez para agradar ao farmacêutico Dias da Cruz, seu pai. Da sua passagem nessa instituição, não há grandes vestígios, mas certamente ela o marcou. Possivelmente, nela adquiriu o jargão preciso de suas metáforas científicas: “Tide, Otílio, Sebas... bactérias das camadas anaeróbias da cidade, deles era a noite, a Lapa, o Mangue, a fermentação do meretrício, da malandragem e da batota.”

Não terminará o curso médico e começa a trabalhar no comércio. A prática de vendedor de eletrodomésticos terá sido fator importante para a formação de sua experiência. Desconheço as razões de sua decisão. Talvez desejasse instintivamente multiplicar a sua faixa de conhecimentos com as gentes, para melhor poder escrever, pois seria como escritor que viria a se realizar.

Como um fogo-fátuo, aparece e desaparece na vida literária do Rio de 1926, com a publicação de um poema na Para Todos, revista dirigida por Álvaro Moreyra, das poucas que aceitam a contribuição de jovens autores ainda desconhecidos. O poema tem sua importância, porque já o assina com o pseudônimo que o imortalizará. Mas não se sente capaz de escrever como deseja. Lendo, rascunhando, rasgando todo trabalho que faz, põe-se em compasso de espera, e, espera.

É este também o momento em que, atraído pelo Movimento Modernista, inicia correspondência com o grupo “Verde” de Cataguazes. Deste evento nasce uma das mais belas constantes da vida de Rebelo: sua amizade com Francisco Inácio Peixoto. A ele se liga “como jamais fizera a outro amigo”.

A convocação para o serviço militar o atinge. Incorporado à tropa do Forte de Copacabana, vive experiência marcante, que força a sua comunhão com os mais variados tipos humanos. No momento da baixa, incidente dramático se produz, que irá modificar o curso de sua vida. É forçado a atravessar um fosso, sobre o trilho da estrada de ferro: “Trilho enferrujado, pouso casual de muita ave marinha, de rachado grito, que nele deixava também a mancha branco-esverdeada de seu guano” – é o que nos conta.

O sargento comissionado grita: “Outro!” O seguinte da fila era Rebelo. Passo-lhe a narração do episódio: “Não atingira a metade do espaço a percorrer, quando um pé falseou. Por um instante, tentei firmar-me no outro, porém resvalei, vi-me solto no ar, precipitando-me contra uma coisa verde e trêmula, e o grito dos companheiros conseguiu ferir meus ouvidos.”

Em consequência, Rebelo passou quase um ano convalescente, os primeiros seis meses, de cama. Neste período de forçado repouso brotou-lhe no espírito o conto “Oscarina”, verdadeiro início de sua carreira literária. Restabelecido, emprega-se em grande empresa comercial, onde prospera com evidente remorso interior. Simultaneamente, resolve bacharelar-se em Ciências Jurídicas, e o fez com atraso aumentado de um ano, pois não pudera, connaisseur, ceder ao desejo de comprar uma linda cômoda antiga, nela aplicando o dinheiro necessário ao pagamento das taxas escolares da última série.

Sua atividade coloca-o em contato com a classe médica. Daí a perfeição com que descreve a vida dos propagandistas de produtos farmacêuticos e a do Dr. Oliveira em A Estrela Sobe. Reside algum tempo em São Paulo. Muda-se para Belo Horizonte, com a esperança de superar situação penosa. Ali passa quase dois anos.

Volta para o Rio e sua vida alcança nova dimensão, que lhe trará melhor estabilidade sentimental:

– Sem olhar para trás, Luiza?
– Você sabe que sim, meu amor, para a vida ou para a morte, sem olhar para trás!
E fez-se um silêncio tão tenso na velha praça, que poder-se-ia ouvir os corações pulsarem.

Decide-se finalmente, opção que o libertará da rotina comercial e, assim, despede-se do emprego de perspectivas econômicas promissoras. Guarda apenas a sua ligação com a pequena indústria farmacêutica que herdara do pai, morto em 1938, e, vai ser principalmente escritor. A vida será difícil, terá de se empenhar em traduções, trabalhar nos jornais, aceitar a função de inspetor de ensino, mas que importa? Terá mais tempo para se dedicar ao que é o seu destino. Feita a escolha, nada mais o tolhe.

Benemérita opção “pela vida que deliberadamente e corajosamente escolhi” (anotação de 3 de julho de 1943) e que vai permitir o desenvolvimento da segunda parte da obra literária de Marques Rebelo.

Por que segunda parte? É que na verdade a sua obra se compõe de duas vertentes: na primeira, os contos, novelas, romances e contos infantis; é menos tensa, mais extrovertida, mais aberta, menos cruel e, sob o ponto de vista da técnica literária, de composição linear. A segunda, O Espelho Partido. Entre as duas, os livros de viagens, Cenas da Vida Brasileira (que pertence à primeira fase), Correio EuropeuCortina de Ferro, livros que pelo seu estilo se filiam à segunda do mesmo modo que as crônicas, muitas vezes irreverentes para não dizer causticantes, publicadas principalmente na Última Hora.

MarafaOscarina e os Três CaminhosA Estrela Sobe,  Stela me Abriu a PortaRua Alegre12 e O Simples Coronel Madureira constituem a obra mais conhecida de Rebelo. Neles não me deterei. Correspondem aos anos de vinte e trinta. Só “O Coronel Madureira” foi escrito após 1964.
 
É a fase na qual Rebelo canta o Rio, não na fanfarra da adjetivação que a sanha do desenvolvimento torna cada vez menos plausível, nem mesmo no corte arquitetônico que lhe dá a sua natureza, que não é destruída pela avalanche falaciosa do progresso – para o qual Rebelo tem uma palavra mordaz: “O progresso quase sempre se resume nisso: onde havia uma linda mangueira, há uma casa de apartamentos.”

Canta, sim, a “Cidade Maravilhosa” na complexidade de sua arquitetura menor, onde vive nosso povo pequeno variegado na cor, curtindo no sofrimento, despreocupado na sua desesperança, solidário na desgraça, irônico, poético, cidade de incomparável calor humano, que, em muitos passos, guarda ainda a doçura do Trapicheiro.

*  *  *

Certamente conhecia Marques Rebelo o valor de sua obra, realizada com o esforço do artesão consciencioso.

A Estrela está composta; “[...] é mister sofrer em cima de cada linha, enxertar, enxugar os transbordamentos, polir e repolir, tarefa severa e atenta, que tanto pode durar um mês quanto um ano” (anotação de 2 de outubro de 1939), ou então “transformar o arquitetado em matéria escrita é para mim extremamente difícil, penoso e duro como carregar pedras” (anotação de 21 de março de 1936).

Rebelo, feito como toda gente, sofre decepção ao ver o sucesso menor de seus livros em comparação com os de outros autores muito menos cuidadosos em sua ourivesaria idiomática. Raciocina com uma ponta de frustração: “O público brasileiro ainda não acredita no conto, quando é o conto o que a nossa Literatura tem por enquanto de mais alto!” (anotação de 13 de março de 1937).

No seu caso, como diferenciar o conto da novela? Terá sentido fazê-lo? Em Rebelo, aliás, parece-me distinguir-se o conto da novela, sobretudo pela extensão do texto. É o que ele mesmo deveria pensar, quando diz no introito a Três Caminhos:

“Vejo a Lua no Céu”, “Circo de Coelhinhos” e “Namorada” representam capítulos imperfeitos de três romances tentados, onde cada pequenino herói estava no seu caminho. Se não os prossegui, não foi por negligência ou incapacidade. Falou mais forte a piedade de não lhes dar destino.

São contos.

Mas, pergunto eu, o que acontece ao término de A Estrela Sobe – romance – senão a mesma piedade para com Leniza?

Sem estabelecer paralelo entre ambos, de tal modo agigantar-se-ia Rebelo, parece que o autor mais presente na primeira vertente da sua obra é Manuel Antônio de Almeida. Não como uma sombra, nem mesmo como influência significativa. Apenas, creio, como uma inspiração que Rebelo reconhece em demasia “com a ternura de quem paga uma dívida”.

Os tipos criados por Manuel Antônio de Almeida são “gente que vive sem indagar das coisas, sem complicações, movendo-se no plano de uma existência instintiva” – é o que diz na biografia do autor das Memórias de um Sargento de Milícias. São do mesmo material os seus.

Já na feitura de O Espelho Partido, encontra-se a influência nítida de um dos seus autores preferidos: Jules Renard. Entretanto, moderniza o modelo, com sua capacidade de apagar a marca do tempo pela técnica de cortes e do retrocesso temporal. Mete de permeio uma sensação de ansiedade episódica, ao mesmo tempo que introduz estórias que poderiam ser autônomas como a de Catarina – no texto principal. O título, todavia, provém de Stendhal, para quem “o romance é um espelho conduzido ao longo de um caminho”. O Espelho Partido é um livro áspero, trilogia na qual encontramos, contudo, momentos da mais pura poesia, de ternura e de constância admirável. A poesia é simples, soa como um trecho de música barroca e nos chega de sobejos, onde estão o mar, o amor, as flores, as crianças, as gentes humildes. “Luiza” – gritei – “e o meu grito foi se misturar no quebrar das ondas, contra as rocas, como se o meu nome quisesse se transformar em espuma.” Volteia também numa frase: “Não mais do que um verso, verso do outro mundo, que veio de repente.”

A ternura, muitas vezes disfarçada em irreverência, se encontra nos trechos de ansiedade, amor e compreensão; a constância, no convívio e na afeição por Luiza, Francisco Amaro, Garcia, Gasparina, Nicácio, Pedro Dantas, Santa Rosa e Alberto de Oliveira. Compreensão, amor e dedicação equilibram assim as páginas de consternação, ansiedade e contestação.

O Espelho Partido. Romance? Autobiografia? Romance autobiográfico? Fujamos às classificações; de nada nos adiantariam. Em verdade, é uma interpretação pessoal de muito do que se passou entre 1936 e 1944 na política nacional, em nosso meio intelectual e no cenário internacional. Nele se retratam também as origens, os episódios e as personagens que povoam os seus romances e contos.

Espelho paralelo então? Se o fosse, reflexo aumentado e destorcido? Partido? Porque o fio condutor da vida modificou-se? Não creio. Partido porque cada porção só pode refletir uma parte do caminho percorrido? Ou porque a sua rachadura impediu a formação de uma imagem plena?

São questões a que não sei responder, ainda que pareça mais plausível a última resposta.

Sei que não foi o temor que deixou anônimos muitos dos participantes de O Espelho Partido. Também acho injusta a imputação de que faltou sinceridade ao autor, nele não incluindo passos de sua vida mais íntima. Se não o fez, razões sentimentais tê-lo-ão impedido. Mas por que deveria tê-lo feito? Certamente haverá muitas coisas escondidas no baú de suas secretas anotações, que não temos o direito de remexer. Não nos esqueçamos de que o drama filial de Kafka só se tornou conhecido devido à indiscrição de Max Brod, que nos parece generosa apenas por havermos dela tirado proveito.

Ao analisar O Espelho Partido, lembremos que é erro estabelecer relação unívoca entre os personagens de um livro e os da vida real, o que é válido mesmo para a biografia romanceada ou interpretativa. Foi esta, aliás, a falta cometida por Painter, na opinião de muitos “proustianos” menos afoitos.

Os personagens de um livro são sempre o resultado da deformação que lhes dá o escritor, conscientemente ou não, por mais que procure reproduzir o real, do mesmo modo que existe um fator subjetivo inevitável na concepção que fazemos de qualquer um de nossos interlocutores, até aqueles que nos são mais chegados. Assim, os tipos de O Epelho Partido são invenções a partir do real, alcançados pela prodigiosa percepção de Marques Rebelo, oriundos de sua própria experiência. Com certeza, juntou mais de um dos seus conhecidos em vários dos caracteres que encontramos no livro.

Foi das mais fortes a impressão que me trouxe a leitura dessa obra. Renovaram-se as emoções, angústias e apreensões, revoltas e esperanças que, como todos, experimentei face ao transbordamento das hordas nazistas, à queda da França, à lenta e odiosa destruição de nossa frota mercante, à nossa passividade oficial ante o fato, ao herpismo inglês, à resistência soviética e à preparação bélica norte-americana que viria modificar a balança dos acontecimentos.

A aritmética macabra da guerra de 1939 encontra-se bem expressa nas páginas de A Mudança e de A Guerra Está em Nós; o trágico cômputo pelo qual é calculada é impressionante.

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Através das páginas de O Espelho Partido, revivi também o horror que nutri pelo nazismo hoje extirpado e pelo cerceamento da liberdade, e minha repulsa à ascensão do Integralismo e do estadonovismo. O liberal que continuo a ser repensou assim largo e sofrido período de sua vida.

Mas encontram-se ainda naquelas páginas elementos importantes para a história literária do País. Não posso citá-los todos, pois estender-me-ia demasiadamente. Quero apenas assinalar episódio comovente: a admiração de Rebelo por Jacobo de Giorgio, em quem encontra, pela primeira vez, o intelectual de escola europeia, profissionalizado tipo que – só agora, quarenta anos após a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo – torna-se moeda corrente entre nós. Por sua causa, sente nossas deficiências de amadores, que todos éramos então.

Contundentes são os comentários de Rebelo sobre alguns de nossos escritores, nos quais não encontra a precisão e a técnica vernácula que julga indispensáveis a qualquer obra literária de valor. Homem de palavras inteiras, terão elas provocado a chistosa reação de Bandeira:

Nisto aparece em cabelo
o novelista Rebelo
que é Dias da Cruz também!
Mais uma voz para o coro,
e foi um tremendo choro.
E vêm os do Norte! E vêm!

Sob certos aspectos, algumas das reflexões de Eduardo levam-nos, porém, a considerar O Espelho Partido – mudado o que o tempo muda – como um romance picaresco, dentro do conceito moderno de “picarismo”.

“Eduardo”, “ser em situação”, não é um pícaro como Lazarillo de Tormes, ou Pablo de Segóvia, de Las Aventuras del Buscòn. É o pícaro contemporâneo e retrata o homem no desespero de sua ansiedade face à decadência social e à sua desagregação emocional. Procura analisar o destino da sociedade e, nela, o seu próprio. Movido principalmente por um desejo de autopunição, reflexo freudiano ou sentimento da culpa de participação, Eduardo reage contra a falta de autenticidade, o farisaísmo, o nepotismo, a corrupção, o desbrio, a instabilidade sentimental, para denunciar assim os males e a decadência moral do mundo burguês.

Talvez mais por isto, do que por ser também um documentário indispensável à história social de um período da vida brasileira, é que considero O Espelho Partido um livro maior.

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Ao reler e meditar a obra de Rebelo – na qual transparecem apenas alguns traços de sua vida, ainda que com a limpidez da água que cai de uma cascata – e ao indagar de seus íntimos sobre os aspectos mais característicos de sua personalidade, fui a ele me apegando. Assim, aliei a admiração pelo escritor à ternura pelo ser humano, tanto nas suas realizações, como nos seus desalentos. Pouco a pouco, vi-me dialogando com o amigo desaparecido.

Não sei quando o conheci. Talvez o tenha encontrado pela primeira vez nas minhas incursões de jovem estudante à Vila Isabel. Noites de seresta carioca, estreladas pela presença de Chico Viola, Noel e Mário Reis, nas quais se iniciava Sílvio Caldas, outro cantor que ainda hoje enternece a alma do Rio... Talvez nas “batalhas” das Ruas D. Zulmira e D. Luiza ou do Bulevar, recordação de todos que conheceram o carnaval de então.

Mais tarde, não sei dizer quantas vezes estivemos juntos no Café Lamas, centenário estabelecimento hoje deliquescente. Era o ponto terminal de nossas noites e, para mim, de vez em quando, ponto de partida para as tarefas hospitalares.

Conhecidos desde então, foram seguindo paralelos os nossos caminhos. Entre as duas linhas, apenas o chão da cidade que amamos com idêntico carinho, e da qual assistimos à descaracterização com igual sofrimento, além do elo criado pela admiração, a cada tempo, que nutri pelo que Rebelo escreveu.

A intimidade que com ele não tive, vim a experimentá-la agora. Sua figura me aparece a cada instante, com a marcha, os gestos e o olhar inquieto – inquietação que as lentes de aumento tornaram mais evidente ainda. Seu pensamento se fez meu companheiro. Não diria que penso conhecê-lo agora intimamente, porém, mais de perto. Amável e risonho, altivo, independente, mordaz e irreverente, de comunicação fácil, capaz contudo de, a cada instante, se tornar tempestuoso. Meticuloso em tudo: nos seus escritos, nos seus guardados e até nas contas, tantas vezes difíceis de serem saldadas. Meticuloso até mesmo em suas amizades.

Tudo isso quiçá possa ser pressentido no seu O Espelho Partido, mas este não revela certamente a generosidade que marcou a vida do autor. Quantos não foram os que se socorreram de seu conselho, de seu auxílio e de sua hospitalidade? Sua casa esteve sempre aberta para conhecidos e desconhecidos; muitos dos nossos melhores escritores começaram sua vida carioca ali residindo por largo tempo.

Obstinado na defesa de seus princípios, podia se desfazer em ternura e solicitude perante aqueles que lhas pedissem, abandonando posições se necessário fosse. Entusiasta da Arte verdadeira, é com apaixonada decisão que procura tornar conhecidos os quadros, esculturas e gravuras de artistas novos que julga merecedores de atenção.

Felicidade, ilusão? Para mim, mercê de Deus, é ela um substantivo concreto. Terá sido Rebelo feliz? Não o sei. Ignoro se a procurou, pois aquilo que perseguiu foi somente o seu destino, sabendo, porém, como poucos, espargir afeição e comunhão com os seus íntimos.

Foi alguém de ânimo voltado para o amanhã, de espírito imbuído da necessidade de justiça social, a alma saturada dos valores que melhor qualificam a condição humana, matéria-prima de um homem verdadeiro.

Serenos terão sido os dias que antecederam a tempestade que o fez tombar, e, que nunca temeu. Não escrevera: “[...] nenhuma inquietação ante o mistério da morte, nenhuma...?”

Guardo para mim, como um dos episódios mais enaltecedores do gênero humano, o da dedicação permanente que cercou Rebelo durante as longas e terríveis semanas de sua lenta agonia, terminada aos 26 de agosto de 1973. A solidariedade que presenciei no seu apartamento, mais do que tudo, consagra a vida de um homem.

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Senhor Presidente,

Quero agradecer-vos terdes indicado para me receber o Acadêmico Sr. Francisco de Assis Barbosa. Sua inteligência e seu jovem espírito – que o prateado dos cabelos tenta em vão contradizer – marcam uma vida da qual a liberdade de pensamento, a correção das ações e a fidelidade a princípios são os parâmetros fundamentais.

A Francisco de Assis Barbosa ligam-me os laços de uma velha amizade, iniciada na devoção comum a Virgílio de Melo Franco e que se torna a cada dia mais profunda na afeição – que é recíproca – e na admiração que voto ao seu talento de escritor e às suas qualidades humanas.

Senhores acadêmicos,

Sentir-me-ei bem convosco, porque nesta Casa encontro amigos de velha data e de mais recente amizade. Sei de vossa cordialidade e conto com a vossa boa vontade para com as incertezas e falhas do neófito. Espero não desmerecer a vossa ilustre Companhia, a mais ilustre do Brasil.

Lembrar-me-ei, em vosso convívio, dos professores no Colégio Rezende que aqui estiveram: Silva Ramos, que me ensinou a redigir, e João Ribeiro, que tanto estimulou o meu pensamento. Presentes, do mesmo modo, os mestres dos quais mais me aproximei na Escola de Medicina: Miguel Couto, Aloísio de Castro, Fraga, Austregésilo e Magalhães, companheiros de meu pai. Terei ainda a guiar-me a lembrança de Joaquim Nabuco e Oswaldo Cruz, meus heróis.

Conduzir-me-á também a saudade de Hélio Lobo, que cuidou do meu aperfeiçoamento cultural, enviando-me dos seus postos diplomáticos os livros nos quais sublinhava trechos mais importantes. A saudade de Manuel Bandeira, que cantou no encanto de sua poesia a graça – para mim insuperável – de minhas filhas. A saudade de Miguel Osório, com quem tive longas horas de convivência inesquecível, e, a de Roquette-Pinto, que me ensinou que nunca é tempo de viver sem admirar.

Senhores acadêmicos, mais uma vez, muito obrigado pela generosa acolhida que me dais.

23/4/1974