Conversando, há dias, com um amigo, disse-me ele que distinguia, no seu relacionamento com seu pai, três fases distintas: a primeira, a da admiração sem limites; a segunda, a de contestação, quase sempre injusta, e a terceira, a de uma compreensão que reviveu a afeição inicial. Provavelmente, os psicólogos de hoje, tão bem afeitos à interpretação dos sentimentos humanos, saberão explicar os motivos de cada uma destas fases e, até mesmo, dos mecanismos que fizeram com que estas fases e, até mesmo, dos mecanismos que fizeram com que estas fases se sucedessem.
Revivendo minha vida, não encontro nenhuma descontinuidade e tempo de fricção no meu relacionamento com meu pai. Foi ele sempre linear, pleno de amizade, carinho e admiração. Esta só poderia crescer e o fez ainda mais, à medida que fui evoluindo como universitário e cientista. Creio que esta afeição íntima foi o resultado, também, da ação de minha mãe, que nos educou, a mim e a Evandro, meu irmão, na constância de uma admiração incomparável por nosso pai.
Não posso encontrar, na emoção em que eu o evoco, cada dia, senão o personagem simples, atento, fino nos gestos e elegante no trajar, que a todos encantava, exatamente porque nele não se encontravam a arrogância e a auto-suficiência que caracteriza, em geral, infelizmente, tantos daqueles que na sua vida realizam feito de importância. Ao contrário, meu pai tratava a todos por igual e nunca o vi, nem nos momentos em que o sentimento seria justificado, praticar com alguém que não fosse em termos se não polidos, pelo menos, corteses. Direi que, muitas vezes, terá tido razão para proceder assim.
Ao iniciar esta oração, ainda que breve, quero dizer da primeira lembrança que tenho de meu pai. Vejo-o, numa vaga imagem - como a que aparece nos écrans dos televisores quando misteriosos conchavos estão sendo tramados e, por isso, as imagens mostram-se enfumaçadas - chegar-se a mim, para me beijar, ainda no berço, muito cedo. Era ele madrugador, já que tinha que apanhar a lancha para Manguinhos às 7 horas da manhã, impreteríveis, no Cais Pharoux. Até hoje, esta imagem retorna cada vez que entro num ambiente fortemente impregnado pelo cheiro do tabaco. Meu pai foi sempre um fumador inveterado e é provável terem sido estas visitas matutinas a razão da minha hiper-sensibilidade olfativa.
Mais tarde, eu o encontro, grande trabalhador, na luta contra a pandemia de gripe espanhola que invadira a cidade do Rio de Janeiro. Venceslau Brás mandara Elmano Cardim, seu Chefe de Gabinete, convidar Chagas para dirigir o combate contra a atroz invasora da cidade. Chagas relutou em aceitar o convite por temer magoar o então Diretor do Departamento de Saúde Pública, que julgava ser um homem competente. A pressão de Cardim e de seu cunhado Hélio Lobo foi de tal ordem que não pôde resistir à mesma e durante mais de 40 dias, ainda que atingido pela febre, conteve a cidade, de canto a canto, mobilizou a classe médica que só tinha para combater o mal a quinina, o repouso dos pacientes e a canja de galinha, esta de difícil encontro. Ao lado da classe médica, Chagas mobilizou um grande parte de seus amigos e dos amigos de seus amigos e, em apenas uma semana, abriu 52 postos de emergência, sejam hospitais improvisados, com os quais aliviou a atmosfera de catástrofe que Pedro Nava tão bem descreve em um de seus livros. Mas com que esforço! Em casa, meu irmão, gravemente doente; eu do mesmo modo; mas, mais grave do que nós dois minha mãe, cujo estado de saúde se agravou de tal modo que, certa vez, buscaram-me na minha cama para vê-la antes que desaparecesse. Como me recordo desta cena. Ao lado de meu pai, Miguel Couto que, a seu pedido, ia nos ver duas vezes por dia. Este quadro gravou-se no mais profundo da minha memória, nunca tendo vindo à superfície até que um dia, em visita à Catedral de San Michelle, em Lucca, deparei-me com a estátua de Ilaria del Carretto, admirável mármore de Giacobo della Quarcia, e tudo o que vira no grande quarto de dormir da Rua Paissandu voltou de súbito e para sempre à minha memória.
Não sei como meu pai pôde sobreviver a estes momentos em que deu de si muito mais do que poderia dar. Soube fazê-lo como se nada de grave estivesse a exigi-lo.
Em outra época, vejo-o, ao mesmo tempo, glorioso e atristado. Chegava de Buenos Aires, onde fora participar do Congresso Sul-americano de Medicina, instado sobretudo por Aluísio de Castro, seu grande amigo, que sabia que o cientista tedesco Krause iria contestar a grande descoberta da Doença de Chagas. Houve o debate e, com a força de suas realizações, Chagas anulou, totalmente, a falsa argumentação de Krause. Sua natural capacidade de abstração, estimulada pelo sucesso alcançado, fez com que Chagas, ao sair na noite friorenta, na capital platina, vestisse o sobretudo de Krause, certamente um gigante, em comparação a meu pai, que mal chegava a 1,70 m. O atristamento a que me referi diz respeito à sua sensibilidade, na qual a lealdade e a fidelidade o acompanharam toda a sua vida. Meu pai não podia se conformar com o fato de ter encontrado caixas de lâmina de seu laboratório sub-repticiamente presentes na mesa de trabalho do referido Krause. Foi, certamente, nesse momento, que Chagas pressentiu que algumas tormentas iriam ao seu encontro no caminho de sua vida. Para elas estava preparado porque, dentro da simplicidade do personagem, havia o varão indomável que sabia, como poucos poderiam fazê-lo, responder com valentia e educação às provocações as mais diversas. Estas viriam de duas fontes: uma delas sairia de dentro desta nossa querida Academia de Medicina. Em 1922, detona-se aqui uma campanha que, visando à obra científica de Chagas, nada mais fez do que desprestigiar a medicina brasileira, criando, sobre o que é a sua maior realização, um véu de dúvidas que só soube atrasar a pesquisa desta importante endemia. Vitorioso, não exerceu nenhuma perseguição àqueles que o quiseram destruir. É justo assinalar, neste momento, dentro os que, enfrentando as iras de parte do estabelecimento médico, vieram defendê-lo, seja diretamente, nesta tribuna, como Nascimento Silva e Clementino Fraga, seja indiretamente, com cartas, depoimentos e artigos, como Olímpio da Fonseca, Magarinos Torres e Bento Osvaldo Cruz. Fora da Academia, a luta foi mais intensa, particularmente pelo nível de certas acusações em artigos publicados na imprensa carioca de cunho antibernardista, nos quais até mesmo a vida privada de meu pai foi atacada. E, ainda, naqueles que apareceram no Diário de Medicina, jornal criado especialmente para atacar o reformador da saúde pública, o inovador de métodos sanitários, o partícipe dos trabalhos do Comitê de Higiene da Liga das Nações, o mais ilustre dos cientistas brasileiros e, sobretudo, um homem da confiança do Presidente Artur Bernardes.
Estamos nos anos 20 - e desejo apontar algo que marca a vida de meu pai depois destes anos. É que a sua personalidade como que fenece um pouco. Sua vibração, tão forte nas discussões científicas e políticas, perde um pouco de sua força. Lembro-me de que, no período em que iniciou a reforma da saúde pública, aos domingos reuniam-se em nossa casa, para o almoço, vários dos seus colaboradores. Alguns deles perdiam a voz, de tão alto que a alçavam. Outros utilizavam termos muito ousados e que não eram habituais nas tertúlias da Rua Paissandu. Meu pai também alçava a voz, mas não podia superar, por exemplo, a de Belisário Pena, já que a sua tonalidade mais se aproximava de Alberto Cunha. Nunca utilizou, nesses debates, termos que eu não pudesse ouvir em casa, ainda que os escutasse, com freqüência, no colégio, e nunca perdia a linha lúcida do seu raciocínio lógico. Não havia nestes ágapes exageros alimentares e nem nas bebidas, mesmo porque, na ocasião, era desconhecida nas mesas de maior nível a aguardente, hoje tão usada sob a forma de "caipirinha". E os vinhos, sempre franceses - bons tempos aqueles! - eram bebidos com moderação. A discussão, esta não tinha fim e prolongava-se até a tarde. Eu já era relativamente grande e meu pai não precisava mais me levar aos estádios de futebol. Foi, aliás, na sua companhia, que assisti ao famoso gol de Friedenreich, com o qual o Brasil sagrou-se o primeiro campeão sul-americano de futebol.
Nestas discussões, parecia-me que meu pai teria perdido um pouco da vivacidade de sua argumentação. Deste momento em diante vejo, na sua personalidade, o desaparecimento do resto de juventude, ainda que a verdadeira velhice, caracterizada, a meu ver, pela perda da capacidade de admirar, nunca lhe tenha chegado, nem mesmo o desaparecimento de certos traços infantis que todos nós guardamos e, com cuidado, escondemos dos outros.
Qual terá sido o motivo desta mudança? O desapontamento de ter sido combatido por colegas que, na verdade, muito mais do que movidos pela inveja, eram empurrados pela ignorância? Vale dizer, foi o fato do combate da existência da moléstia de Chagas que o levou a menor entusiasmo? Terá sido, talvez, a atitude arrogante dos jovens sanitaristas, cuja profissão fora por ele codificada e aos quais deu toda a ajuda que pôde? Não creio que estas tenham sido as razões das diferenças que encontro na sua maneira de ser. Penso, antes, que foi o fato de se sentir doente. Pequenos edemas nas pernas, dispnéia de esforço, provavelmente dores precordiais, prenunciaram-lhe que, talvez, estivesse próximo do fim. Tanto assim é que nos últimos anos de vida, ao chegar a Manguinhos, mandava-me chamar no laboratório de Carneiro Felipe, onde eu trabalhava. Durante uma ou duas horas, começava a me contar a sua vida e a referir os vários passos pelos quais caminhara: o Colégio de Itu, o Colégio de São João del Rei, Ouro Preto, a Escola de Medicina da Praia de Santa Luzia, a Santa Casa e outras etapas mais. Na sua conversa, com freqüência, surgiram as figuras de sua mãe, de Íris, de Miguel Couto e de Osvaldo Cruz. Depois vinham as etapas da descoberta da Doença de Chagas. Parecia que queria me deixar como testemunha de sua vida, de suas alegrias e decepções. Nestas longas conversas, entretanto, nunca se referiu à luta na Academia de Medicina e nem mesmo ao Diário de Medicina.
Não tinha rancores e nem queixas, mesmo porque as dificuldades havidas em Manguinhos se haviam dissipado e, mais ainda, conseguira o que mais havia desejado ser durante a vida: professor na Faculdade de Medicina, onde se formara. A cátedra de Medicina Tropical foi, para ele, uma grande benesse. Ali, pelas manhãs, reunia um grupo dos mais seletos discípulos que um professor brasileiro jamais teve. Gostava de ensinar. Embora as suas aulas parecessem inteiramente improvisadas, pelo menos uma grande parte das mesmas era cuidadosamente preparada. Assim, encontra-se, entre os seus papéis, uma folha onde estão escritas, com a sua letra, difícil talvez, mas bem traçada, sucessivas definições da infecção malárica, das quais escolheria uma no momento da prelação. Eram aulas magistrais, mas não no sentido irônico que, muitas vezes, se dá ao adjetivo, mas eram magistrais no sentido semântico da palavra. Em cada aula, conceitos vários, bem enunciados e muitas vezes repetidos, para que fossem bem gravados. Além do mais, a sua prosódia mineira, que nunca lhe faltou, dava às mesmas o encanto das terras onde nascera. Seu curso tinha a característica fundamental de associar a pesquisa ao ensino e, por isso mesmo, pelo novo sabor que continha, já que muitas vezes a pesquisa era original ou recente, o auditório, onde os alunos se misturavam a mestres consagrados, este sempre superlotado. Mantinha, nas aulas, a elegância refinada que nunca quis abandonar. Hoje, os alunos talvez não a compreendessem, mas fazia, a mesma, parte de estrutura complexa que dava ao homem simples a aparência sem dandismo do homem finalmente educado,
Disse mais de sua vida do que de sua personalidade. Já falei na sua lealdade e fidelidade, cujo melhor exemplo foi a sua devoção a Miguel Couto e a Osvaldo Cruz, mas quero ressaltá-la.
Sua maneira de viver era simples. De manhã, quando já não tinha mais a obrigação matinal do Cais Pharoux, gostava de brincar com crianças. Primeiro Evandro, depois eu. Depois, os filhos de Astrogildo Machado, seu cunhado, entre os quais talvez tenha sido de sua preferência o Marcelo. Algumas vezes, Tatiana, a única neta que conheceu. Antes de sair, apareciam em casa, na Rua Paissandu, as crianças que moravam na rua ao lado, entre eles a filha de uma simpática portuguesa, costureira de mão cheia. Não se esquecia, ao voltar à casa, à noite, antes ou depois de passar pela tabacaria do Largo da Carioca, de comprar balas e bombons, ou pequenos brinquedos, para dar às crianças na manhã seguinte.
Sua afeição se estendia, de maneira intensa, aos que com ele trabalhavam e, bom ouvinte, sei dizê-lo com precisão, ao fim da vida passava horas escutando as queixas de companheiros e discípulos de trabalho, numa espécie de consultório sentimental, para o qual tinha decidida vocação, tal era a sua capacidade de compreender os sentimentos e as emoções dos outros. Malgrado a extensão da sua obra científica, que persiste hoje como monumento da ciência médica, e da sua ação de administrador e de criador de escola, sempre teve tempo para procurar servir aos outros, sem distinção de classe ou de raça. Não é esta a característica que define um homem autêntico? Assim era meu pai.
(Revista da Academia Brasileira de Letras, vol. 157, 1989.)
ARTE E TECNOLOGIA
"A Física do Universo é a base da criação humana."
LE CORBUSIER - Nos Moyens
O estudo da influência da ciência sobre a arte no século XX revela, de início, a dificuldade que teve o homem moderno para integrar a ciência ao domínio cultural e considerá-la - bem como suas aplicações - qual nova expressão do pensamento, seja como instrumento de cultura, capaz não somente de aumentar o alcance da ação humana e a sensibilidade do homem, mas também de servir como intermediário útil entre o artista e a natureza que serve de fonte à criação, compreendendo-se nesta a própria abstração, que no fundo é o resultado da assimilação de experiências múltiplas.
Todavia, para estudar a influência referida deve-se considerar não só a do pensamento científico como a da técnica. Para fazê-lo, será necessário começar pela que foi exercida indiretamente, a qual precedeu a contribuição direta trazida pela técnica à criação artística.
Assim fazendo, percebe-se que desde as primeiras grandes realizações técnicas do século XIX, tais como a locomotiva e o navio a vapor, alguns artistas já se haviam inspirado nesses novos elementos renovadores da evolução social para a realização de suas obras de poesia, pintura e música, mas é necessário chegar-se à segunda década, ou quase, do século XX, para que a transformação do pensamento criador seja definitivamente estabelecida, e que a ele venham incorporar-se os elementos fornecidos pelas ciências, que haviam evoluído paralelamente, a princípio com lentidão e depois quase que explosivamente.
Evolvendo paralelamente, arte e ciência não se poderiam encontrar. Assim, não poderia ser reconhecido antes o elemento estético da "máquina". Representava então a técnica uma atividade utilitária, de caráter ancilar, não podendo pretender por si mesma reivindicações estéticas. Basta apontar, em apoio desta afirmação, que os construtores das invenções que produziram a revolução industrial tiveram necessidade de sobrecarregá-las com ornamentos, os quais correspondendo à arte figurativa do século XIX, parecem-nos hoje infantis e, ao mais das vezes, ridículos. Foram eles apostos para tornar as máquinas mais aceitáveis aos olhos do seus usuários, segundo os critérios convencionais da sociedade da época, cuja estrutura iria, aliás, sofrer modificação radical, provocada por essas mesmas invenções.
A separação entre arte e técnica é, porém, a expressão da existência de duas maneiras de pensar, e reproduz, na verdade, o desprezo mantido pela grande maioria das classes sociais, em relação à segunda. Impediu ele que esta se apresentasse sob as formas que lhe vêm de sua própria estética, e que viriam depois influenciar vigorosamente a arte de nossos dias.
Pode-se admitir que foi a arte moderna - cuja característica principal é o despojo e a supressão de todo excesso, seja pela redução do objeto às formas imanentes à sua natureza, seja pela representação de idéias por massas - que veio na sua fase inicial buscar inspiração na ciência. A nova arte reflete, sem dúvida, a unidade que as concepções da ciência moderna - sobretudo da física dos quanta, da relatividade da geometria não-euclidiana - deram à interpretação da natureza.
Mas ainda, o artista moderno, na sua interpretação do homem, passou a procurar nele as formas comuns à natureza, provavelmente porque sentiu que as leis da mesma, consideradas até o fim do século XIX como aplicáveis somente ao mundo dos objetos, se mostraram válidas para a interpretação dos fenômenos vitais.
É neste contexto que deve ser considerada como fundamental a eclosão do cubismo. Nele, a impressão estética é procurada, não mais pela associação da forma geométrica à cor, podendo ambas ser submetidas às leis pelas quais o homem descreve o mundo exterior.
Duchamp vai mais além; a sua pintura traz, como elemento criador de impressão estética, a interação de formas vivas e de máquinas, antecipando assim alguns aspectos da pintura surrealista, e provando não somente que a ciência tornara-se um fio condutor do pensamento artístico, mas também, e sobretudo, que os dados de documentação científica, os instrumentos que o cientista usa, bem como os produtos da aplicação da ciência, compreendem elemento estético espontâneo, neles mesmos integrados.
Esta integração encontra provavelmente a sua mais dramática a expressão na escultura de Brancuse, no período entre as duas guerras. Como o assinala Louis Munford, o inspetor aduaneiro norte-americano que quis cobrar imposto alfandegário de suas obras, como se fossem máquinas, realizava, sem o saber, uma interpretação justa do poder criador do artista. Deveria ela ser considerada, na verdade, como um elogio.
A reação a esta nova era de criação artística foi violenta. Foi ela representativa de uma classe social que se sentia ameaçada, e estendeu-se por toda parte. A vigorosa repulsa do público, durante a primeira representação de Pelléas et Mélisande, reflete um sentimento generalizado que teve ainda maior expressão no domínio da pintura, como o indicam as dificuldades que encontrou a Galeria Sezession, de Viena, primeiro museu da pintura chamada moderna, e as manifestações hostis a Picasso, Braque, Léger e Miró.
Bem mais tarde é que se encontra o exemplo mais ilustrativo da integração da ciência à arte. São os "mobiles" de Calder. Cria-se neles, intuitiva ou explicitamente, a expressão estética de uma arte originária das leis elementares da mecânica física, eliminando por conseguinte todo o supérfluo. A obra de Calder é por isto muito superior a certos ensaios posteriormente feitos.
Pode-se, pois, dizer que o espírito científico de nossa época se integra definitivamente no movimento de criação artística.
É desnecessário assinalar que a criação artística não sofre somente a influência dos métodos científicos. Muito mais do que isto, a integração da ciência à arte deve-se ao fato (acentuado por muitos críticos) de que não podemos mais compreender ou interpretar o meio em que vivemos, e dele tirar os elementos de criação - mesmo aqueles que refletem uma contradição rude à ordem, à harmonia e à beleza convencional - sem que a eles associemos as modificações introduzidas pelas concepções libertadoras que a ciência trouxe à cultura.
Às deformações introduzidas conscientemente na pintura ou na escultura, sublinhando por exemplo o desequilíbrio de massas, são conseqüência do fato de que, ao conquistar a natureza, o homem não se sente mais obrigado a descrevê-la como seu escravo. Da mesma maneira, a beleza dos "mobiles" advém do fato de que neles se sente a profunda ligação de seu movimento a regras, intuitivas para alguns, é bem verdade, mas suscetíveis para outros de uma representação física, e até mesmo de uma formulação matemática.
Representam, em suma, a beleza que admitimos existir no movimento dos átomos.
A integração de elementos científicos à cultura atinge intensidade cada vez maior. Em conseqüência, certas expressões utilizadas no domínio científico são incorporadas ao das artes, perdendo naturalmente sua significação primeira para adquirir uma outra.
Talvez seja importante ressaltar este fato, quando procuramos mostrar a influência da ciência e da técnica sobre a arte. É o caso, por exemplo, das chamadas "experiências" artísticas que, na realidade, não possuem a significação das experiências científicas. No caso destas, partindo-se de uma hipótese fundamentada em geral em teorias, ou na observação de um fato, chega-se à sua confirmação, modificação, ou à sua negação, ou então à formulação de nova hipótese, que pode dar origem a nova teoria. A experiência chamada artística, ao contrário, é, na maioria dos casos, uma tentativa de obtenção de nova forma de expressão que a justifique, ou de uma reação psico-sensorial diversa.
Pode-se, pois, afirmar que a integração do pensamento científico à cultura moderna modificou as perspectivas da criação artística. Sua contribuição, que até o século XX se limitava a fornecer aos artistas os instrumentos necessários para a realização do respectivo trabalho, tornou possível novo desdobramento do espírito criador, e desempenha papel essencial na eclosão de novas formas de expressão.
[...]
É o caso da música, onde à possibilidade de utilização de instrumentos eletrônicos se junta a da criação eletrônica propriamente dita, que já superou o simples quadro da experiência de avant-garde. Aqui também, depois de uma fase onde a técnica serviu somente de instrumento auxiliar, torna-se ela o trampolim necessário para um salto decisivo.
Esta verificação mostra as perspectivas do futuro. Nele desabrochará uma nova forma de arte, plena de manifestações multidisciplinares, nas quais o som e a forma, o movimento e a cor, se combinam para criar um novo "ato estético".
Sem bem que iniciativas tais como as do poema eletrônico de Le Corbusier, que se enquadra nestas atividades multidisciplinares, sejam ainda raras, outras mais discretas começam a aparecer pouco a pouco, as mais das vezes com grande êxito.
Não será necessário acentuar que estas iniciativas têm encontrado uma reação vigorosa, que não se limita unicamente ao público não esclarecido. Na verdade, assim tem sido para vários dos progressos técnicos incorporados à criação artística, até mesmo em círculos onde não seria de esperar que isto se produzisse. É espantoso, por exemplo, ver que o maior gênio do cinema - na verdade um dos maiores artistas de todos os tempos, Charles Chaplin - hesitou durante anos a fio para finalmente incluir o som nas suas fitas cinematográficas. Entretanto Tempos modernos é, sem contestação, uma das maiores realizações de arte de nossos tempos.
Mas a tendência da arte moderna em produzir efeitos combinados exige um poder de criação muito mais forte do que a arte monodisciplinar. Daí o seu atraso.
Os elementos que a técnica pode fornecer para tanto acabarão certamente por convencer os que vigorosamente contestam o seu valor.
De qualquer forma, cabe à técnica responsabilidade ímpar. Posta ao serviço do artista, deve ela facilitar-lhe simultaneamente o aperfeiçoamento de seus instrumentos e a criação de um mundo novo, o que permitirá manter, segundo a expressão de Le Corbusier, a chama dos valores eternos.
É para este duplo objetivo que se volta a formação do artista moderno: dominador das técnicas, e não seu escravo, terá ele de utilizar, para uma nova estética, cuja significação independe das condições quase inumanas em que se desenvolve a era tecnológica, os instrumentos que esta lhe pode fornecer.
Documento de trabalho para o Colóquio "Arte e Tecnologia". Tiflis, abril de 1968.
(O minuto que vem, 1972.)