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Entre a poesia e a psicanálise

 

'Futuro esquecido' mistura clínica e vozes interiores


Marialzira Perestrello é uma das personalidades mais ricas da vida intelectual brasileira. Não surpreende, assim, que ela tenha recebido homenagens como a que lhe foi prestada recentemente pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, que a elegeu como uma das ''Dez mulheres de 2004''.


Sabia-se há muito que essa personalidade era múltipla. Como um poeta que ela ama particularmente, Goethe (aos 90 anos ela está aprendendo alemão somente para poder ler no original os clássicos dessa língua) não era nenhum segredo que ela tinha pelo menos duas almas, ou duas vocações: uma psicanalítica e outra poética.


Muitos a conheciam sobretudo como psicanalista. Nesse terreno, ela tem credenciais impressionantes. Viúva de Danilo Perestrello, psiquiatra que foi um dos pioneiros da psicanálise no Brasil, ela está entre os fundadores da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro. Foi a primeira mulher no Rio a ser qualificada como analista pela Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA). Participou de Congressos brasileiros e latino-americanos, bem como de encontros internacionais realizados, entre outras cidades, em Viena, Paris, Londres e Versalhes. É autora de inúmeros artigos, publicados no Brasil e no exterior, e de livros como História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (1987) Encontros: Psicanálise (1992), Cartas a um jovem psicanalista (1998) e A formação cultural de Freud. (1996). Redigiu verbetes para enciclopédias internacionais de psicanálise. Lecionou e fez dezenas de conferências, dentro e fora do Brasil. Co-editora da revista Psychoanalysis and History, seu interesse principal, nos últimos tempos, tem sido a história da psicanálise, inclusive no que diz respeito à introdução do pensamento de Freud no Brasil e às suas relações com o Modernismo. Sua contribuição à psicanálise tem tido amplo reconhecimento, dentro e fora de nossas fronteiras. A mais recente demonstração do seu prestígio ocorreu no ano passado, quando recebeu homenagem especial do Congresso Internacional de Psicanálise, no Rio de Janeiro.


Mas sabia-se também que Marialzira tinha uma segunda alma, uma genuína vocação poética. Destaco, entre muitos outros, títulos recentes como A música persiste, Tudo é presente, Caminho da vida, e o recém-publicado Pedaços de vida, lançado no final de 2005. Caracterizam essa poesia a musicalidade, o intenso lirismo, a ausência de artifício, uma sensualidade discreta e até mesmo uma certa gravidade religiosa, que por estranho que pareça se harmoniza bem com o agnosticismo da autora, porque é uma religião panteísta, como a de Spinoza (''Deus sive natura'') toda feita de reverência e deslumbramento diante do céu, do mar e da vida vegetal.


O que não se sabia, e que Marialzira nos revela agora, é que ela tem ainda uma terceira alma, a de romancista. Em Futuro esquecido, ela nos conta a história de um imigrante italiano que se casa no Brasil com uma moça de origem humilde e que graças à sua excepcional inteligência ascende socialmente e se transforma num engenheiro e cientista eminente. Nada mais singelo, à primeira vista. Mas, em sua estrutura, o romance nada tem de simples. De certo modo, ele representa a síntese das outras duas ''almas'' de Marialzira.


A psicanálise está no próprio título, pois só na perspectiva psicanalítica podemos encarar com naturalidade o que parece chocar o senso comum, o esquecimento do futuro. O psicanalista não vê nenhum paradoxo nisso. Tendo em vista que grande parte do trabalho analítico envolve a exumação de fantasias inconscientes e que toda fantasia aponta para o futuro - o futuro do desejo realizado - podemos dizer que toda análise consiste em trazer para o presente esse futuro aprisionado no passado, o futuro, fantasmático mas ainda virulento, guardado em velhas fantasias. No caso, foram as fantasias de ambição profissional, estimuladas na Itália por uma família amiga, durante a infância do protagonista, e reativadas, no Brasil, por um médico, que reconhece o grande potencial do personagem, sufocado pelo ofício subalterno que ele era obrigado a exercer. Mas a presença da psicanálise não termina aí. Tanto a personagem feminina, Gioconda, como a masculina, submetem-se à análise. O herói é um personagem fraturado, divisão que se espalha em seu nome: Filippo, quando está na Itália, Giovanni, quando é ''adotado'' pelo comandante de um navio, Mariano, quando no Brasil, e ''professor Costa'', quando se transforma num grande engenheiro. Só a psicanálise consegue integrar suas múltiplas facetas. Sua anamnese o faz lembrar-se não apenas do passado, mas do futuro cativo no passado. Sua cura só se completa quando o ''professor Costa'' revê a mãe agonizante, e com isso junta as duas pontas de sua vida, ligando Filippo e Mariano. O próprio ritmo temporal da narrativa é semelhante ao que se dá na análise, em que há um vaivém entre o presente e o passado, em que cenas e personagens vão sendo evocados fora de toda ordem cronológica, e em que se acontecimentos antigos são retrabalhados e ressignificados à luz de informações novas, nesse processo misteriosamente proustiano que os analistas chamam o Nachträgliche, ou o a posteriori.


Mas a segunda alma, a poética, também está presente, impedindo, felizmente, que o livro se transforme num ''romance de tese''. A psicanálise treinou Marialzira para a escuta clínica, mas a poesia a adestrou em outra escuta, a das vozes interiores. Daí o forte subjetivismo que impregna o livro: a presença apenas disfarçada daquele ''grande navegador'' que foi Danilo Perestrello; a ilha do Governador como metáfora do paraíso a dois que o casal viveu em outra ilha, Paquetá; e a alusão obsessiva à casa de Ipanema. No romance, ela é a residência do ''deputado'' para a qual trabalhava a mãe de Gioconda. Biograficamente foi a casa em que Marialzira passou sua infância, a residência do seu pai, o grande jurista Pontes de Miranda, casa que ela evoca num dos seus poemas mais recentes, intitulado, justamente, ''Ipanema'': areal mítico, janela que se abre para o mar, grande silêncio em que moram ''sonho e criação.''


Futuro esquecido é leitura obrigatória para qualquer pessoa que deseje conhecer em toda a sua complexidade a obra multifacetada de Marialzira Perestrello.


Futuro esquecido

Marialzira Perestrello

Galo Branco

188 páginas, R$ 30


 


Jornal do Brasil / Caderno Idéias (Rio de Janeiro) 28/1/2006