Barro Branco
Os dias passavam no Barro Branco numa sucessão rápida e descuidada, ao passo que se operava a conformação necessária do tempo e que as distrações incessantes do campo tomavam a atenção de Paulo. E percebendo que lhe voltava a serenidade e a paz, mais se absorvia nas diversões simples da vida da roça, que o tinham valido. Ele, que sempre fora um desatento à natureza, nessa inconsciência espantada das crianças inteligentes que vêem e ouvem, mas sentem apenas exteriormente a representação da própria curiosidade e imaginação, era agora quase um epicurista sutil, a retirar de cada aspecto da natureza - pedra, águas, árvore, ninhos, casa rústica, ou paisagem - uma multidão de observações felizes, logo da primeira impressão transformadas em imagens tumultuosas... Constante nesse vezo irreprimível de trocar a percepção das coisas sentidas em representação adequada ou fantasiosa, comparava-se, e aos artistas, a moedeiros obcecados que onde encontrem uma cintilação de ouro, no minério, na escória, na pepita, são levados a cunhar a medalha nítida e perfeita que lhe dará o circular e viver para o gozo humano. Muitas vezes, saindo para o campo, armado de espingarda e de petrechos de caça, e volvendo sem ter dado um tiro, nem se lembrando, mesmo ao acaso, de acordar um eco na floresta, ele se dizia pago dessas horas de excursão, enlameado embora, ou arranhado de espinhos, pois caçara imagens, vendo, contemplando, divagando...
Nesses meses procurara reviver todas as alegrias e tristezas da vida do campo; recapitulara numa inteligência afetiva e numa compassividade tranqüila todos os mistérios que encantaram ou assustaram seu coração de menino. Em volta da fazenda não ficaram córregos e valados, cachoeiras ou boqueirões, rechãs ou espigões de serra, sem a sua visita amável e melancólica, agora que, se não tinha mais o espanto dos olhos da infância, sentia a saudade das emoções que outrora lhe causaram. Em casa não perdera nenhuma dessa visões singelas e quase rituais da vida sertaneja. A diligência afanada das manhãs, pelas vacas e cabras a ordenhar, o banho frio nos riachos de vale embrumado, o café ou primeiro almoço farto de guloseimas da roça, a partida para a lavoura, a malhada, a caça, ou a feira, as sestas lânguidas e bocejantes dos meios-dias encalmados, a volta fatigada e contente nas tardes suaves e tristes, a ouvir a melancolia do aboio e acompanhar o esmorecimento lento do crepúsculo: tudo ele soubera reviver com volúpia demorada de lembrança e um gozo constante na presença.
Depois da dispersão curiosa e ativa em busca da natureza, a concentração íntima no convívio dos homens. Coisas e gentes do sertão, como lhe aparecíeis, na mesma simplicidade forte, na mesma ingênua poesia! A noite era sempre docemente ocupada no Barro Branco. Lia na varanda para o Ângelo, o Sérgio e algum adventício, a história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, comovendo-se com eles por bravuras e façanhas, desacreditadas hoje, mas eternamente interessantes, enquanto os homens forem rústicos e simples ou se lembrarem que a humanidade teve uma infância e eles foram meninos. Em torno da mesa familiar e à luz de uma lâmpada de petróleo, enquanto os homens fumavam e Luisinha cosia, repetira longos romances de Dumas pai, com as suas peripécias, façanhas, ardis, sacrifícios, desprendimentos, sempre animado e feliz, porque ter curiosidade e satisfazê-la foi sempre desejo e contento humano.
Outras vezes, ficava a ouvir as proezas de caça e de vaquejadas, transes arriscados e artimanhas sutis contra feras e bois bravos, misturados por caçadores e vaqueiros aos entretenimentos práticos da vida, quando a chama da fogueira os reunia no prazer de uma fumaça e no maior de despertar a curiosidade, e dar um interesse. Já lhes aprendera a gíria difícil e expressiva e não encontrava mistério quando ouvia ao Sérgio contar que dera na malhada grande com uma novilha bargada, ponta baixa, com uma estrela na testa, bico de renda e buraco de bala na orelha direita, forquilha e entalhada por cima na outra orelha... ou riscar com a ponta de um garrancho, no chão frouxo, o ferro da pá esquerda, uma flor com um monograma incluso: era a marca do Zé Lopes, do Encravado. E as histórias de Trancoso, façanhas, guerrilhas, tretas, esconjuros, assombramentos, notícias de casos rústicos e comuns pareciam-lhe mais divertidos e sadios que as literaturas perversas, indecorosas, as vaidades imbecis e os jornais interesseiros, que alimentam a curiosidade intelectual dos civilizados...
Protegido pela sombra na janela aberta, enquanto o luar escorria sobre a parede do oitão como uma gaze doirada que lhe velasse poeticamente a construção grosseira, passara serões ouvindo a velha ti’Ana contar histórias aos meninos... histórias que ele aprendera com terror ou curiosidade, que o fizeram rir e às vezes chorar, e muitas vezes recolher-se no sono para sonhar e sofrer com elas, nas indiscrições dos que não se contêm, mesmo dormindo. Eram fadas amáveis, príncipes perfeitos, animais falantes. Nossa Senhora disfarçada, mendigos que eram Nosso Senhor, pequenos heróis humildes, donzelas desvalidas e de destino magnífico, maldades castigadas, prêmio de esforço e da sagacidade... todas começadas pelo constante Era uma vez ou Foi um dia... e terminadas sempre por um vasto bródio ou grande comezaina, onde houvera doces e guloseimas, a que assistira sempre a contadora do caso e de que trouxera uma amostra, mas que no caminho se desviara e perdera ou fora comida por Sancho ou Martinho, que por isso ficaram barrigudos ou calvos... A pequenada ria do cômico dessa malvadez, quando a última frase aparecia: entrou por uma porta, saiu por outra, rei meu senhor que me conte outra... As vozes débeis e a curiosidade incansada queriam mais, e pediam... Conte outra... aquela do gato do botas... Não, a da moura torta...
E assistia de novo, ou os evocava a todos os brincos infantis, as piculas, as bocas de forno, a senhora Dona Sancha, o esquenta-sol, a cabra-cega, o anel-anda-na-roda... e cânticos... e descantes de cantadores... e sambas... e batizados e casamentos rústicos... e até os seus primeiros enleios de primavera... o seu violão... a sombra confidente da velha cajazeira... seu sacrifício e sua renúncia... meninice encantada que passara e que revivia na contemplação de outras felizes e que iam passar também, mas cuja saudade doce e carinhosa lhe espraiava uma umidade quente nos olhos e lhe descompassava um apressado bater de coração...
Esquecera o Amparo e o Rio... finalmente. Os jornais que Pedro lhe enviava ficavam atados aos maços, até que Luísa os consumia para moldes de vestidos ou para aproveitar o folhetim... No Rio talvez o esquecessem ou não queriam lembrar-se dele. Teve, pois, uma surpresa, entre mágoa e contentamento, no dia em que recebeu, tanto tempo depois, uma carta sumária do velho Lisboa, pedindo-lhe notícias. Quando voltaria aos seus trabalhos? Estava o Prometeu à espera da liberdade, que lhe cumpria dar. Fosse pensando em volver. E terminava com uma palavra afetuosa de saudade...
A princípio pensou com tristeza e quase protesto: ir-se já, tão cedo? Mas, desde esse dia, sem o querer, começou a cuidar em tornar ao Rio... Era tempo de recomeçar e de refazer a sua vida... Trepar pela montanha abrupta da existência, aprumado, tenaz e vitorioso, como as árvores das vertentes montanhosas... Fazer a sua sorte como o Zé Lopes... E uma grande esperança, toda de desejos novos, entrou a viver nele...
Um dia, calculada a época dos vapores do Amparo, avisou em casa que partiria. Foi uma grande pena silenciosa em sua família rústica... Olhavam-no com tristeza, sem ânimo de se opor, mesmo num pedido, mas numa quase exprobração de os deixar assim, tão cedo, depois que lhes comunicara o gosto de o amarem na sua simplicidade afetuosa e na sua bondade deligente... Várias vezes pegara Luisinha olhando-o de longe, com olhos compridos, cheios dele e de tristeza. Ela os desviava, quando apanhada, afastando-se e encobrindo o seu enleio num sorriso descorado. Ele mesmo andava tristonho e fechado, depois de tomada sua resolução; custava-lhe despegar-se das coisas e dos lugares, das gentes e das lembranças que tanto lhe valeram em sua aflição... possuído de um grande reconhecimento por essa bondade simples, por essa ternura esparsa em que sarara os males passados e cobrara energias sãs para tornar a viver.
(A esfinge, 3a parte, capítulo VIII, 1911.)
Sorriso da Sociedade
Não tenho motivos para modificar minha definição de Literatura... A Literatura, ou as belas-artes, comparei-as ao sorriso da sociedade porque só nas épocas felizes a gente sorri. Nas de apreensão e tortura não há sorriso. O erro dos que, sem atentarem bem para ela, combateram e combatem minha definição, está em que eles supõem que eu tenha dito "sorriso do homem", quando o que eu escrevi foi "sorriso da sociedade". Está claro que não poderia nunca dizer que a Literatura é o sorriso do homem: primeiro porque este, para mim, não existe, não passa de simples elo de uma cadeia infinita; e, segundo, porque não ignoro que toda grande obra é feita, com a gestação, na dor. Mas só um ambiente social tranqüilo e feliz permite o aparecimento de um livro notável. No tempo de Balzac, como havia abastança social, o autor de Père Goriot pôde dedicar-se a criar vida para gozo da sociedade. E só uma sociedade feliz aplaudiria Balzac. Das torturas de sua doença e de suas prisões na Sibéria, no cárcere e no hospital, Dostoiévski, através de seus livros, saía de si para a sociedade que o admirava.
Insisto que o equívoco está em imaginarem que eu tenha escrito que a Literatura é o sorriso do homem. Só um louco diria isso, pois, de acordo com semelhante conceito, apenas os soberanos, os ricos, os poderosos fariam letras. E é sabido que estes, em geral, nada produzem que se aproveite. Uma raiz atormentada, no fundo da terra, desabrocha nas flores de um vergel. A arte é o sorriso da sociedade. Pouco importa que o artista, pessoalmente, sofra. "De minhas penas fiz canções aladas", disse Henrique Heine, e a sociedade feliz, que o admirava, o aplaudiu. Agora, nem os ricos, os poderosos, os felizes conseguem realizar obra de arte, porque a sociedade sofredora não sorri... A Literatura não pode vir da indiferença ou da preocupação. A poesia já morreu, ao menos provisoriamente. Os romances são reportagens ou confissões. Quando muito, vidas romanceadas. Ensaios e mais ensaios... Em Bizâncio era gramática e teologia. Agora, no Brasil, política e ortografia. A volta da Literatura será prenúncio de bom tempo. Que venha!
(Apud Homero Senna, República das letras, pp. 101-102.)