DISCURSO DO PRESIDENTE AFRÂNIO PEIXOTO
O MAIS recente dos nossos confrades da outra academia, que foi o nosso modelo e ainda é e será o nosso padrão, a Academia Francesa, o Sr. Eduardo Estaunié, escreveu um livro, de título sugestivo: Les Choses voient. Vêem, ouvem, sentem, pensam e têm saudades... O mundo que é representação, que seria para nós, se lhe não déssemos nossas emoções e idéias, que o enfeitam e nos dão, tornados de novo à origem, os mais ternos e profundos pensamentos?
Como cristais que se defrontam, o fluxo e o refluxo dessas imagens cem vezes uma na outra repetidas e refletidas, dão a dois objetos próximos o afastamento prolongado e maravilhoso de uma galeria de espelhos... Felizes nós que nos vemos, e revemos nas coisas, nelas fixamos o tempo que se escoa inexorável, na sucessão efêmera dos instantes, e podemos pela imaginação e pela memória reviver na saudade o que passou e não voltará mais...
Não! que voltará, sempre que for lembrada! Só há uma morte inconsolável – é a do esquecimento. Lembrar é reviver. A saudade é uma presença e, às vezes, uma ressurreição...
Assim os dias que vivemos nesta Casa, que vamos deixar, reaparecem diante de nós.
Dias alegres e tristes! Aqui viemos ter, tendo enfim achado um pouso, e aqui veio ao nosso encontro a abastança. Começando pobres, não tínhamos lar, do escritório da Revista Brasileira, o n.o 31 à Travessa do Ouvidor, que também mudou e tem um nome estrangeiro, o daquele Sachet, irmanado na morte sob o céu de Paris, a esse Augusto Severo, que denomina a nossa rua... Passamos à da Quitanda n.o 47, hoje 57, onde, no seu escritório de advogado, nos acolheu o nosso Rodrigo Octavio... Como de Camões disse Diogo do Couto, éramos tão desprovidos de tudo, que até “comíamos de amigos”.
Veio o reconhecimento de utilidade pública, veio a instalação em casa do Estado, esta que até agora é a nossa casa de empréstimo, e onde, desde 31 de julho de 1905, há mais de 18 anos, vivemos...
Daqui saíram para o túmulo Machado de Assis, Aluísio Azevedo em trânsito da Argentina para o Maranhão, Euclides da Cunha, Porto-Alegre, Olavo Bilac... teria saído Rui Barbosa se, modestamente, não reconhecêssemos que a casa era pequena para tão grande morto...
Aqui nos surpreendeu o legado do benemérito livreiro Francisco Alves, que nos dá abastança e nos causa tanta injusta animosidade... Confesso-vos que tendo, no poder que me conferistes, experimentado muitas vezes o rancor e a cobiça que essa riqueza desperta, aquilo da Antígona, de Sófocles, me tem várias vezes tornado ao juízo: “nunca os homens inventaram instituição mais fatal que o dinheiro”. Há momentos em que temos o direito quase de pensar que o nosso Monthyon, o abnegado Francisco Alves, foi um malfeitor, e quis matar a Academia...
Aqui foram recebidos Sousa Bandeira, Euclides da Cunha, Artur de Jaceguai, Artur Orlando, Osvaldo Cruz, Paulo Barreto, D. Silvério Gomes Pimenta, que já não vemos entre os mortais, admitidos, só agora, à imortalidade.
Aqui, nem esse consolo tiveram... dois acadêmicos que o regimento não pode vedar a nossa memória de lembrar com efusão consoladora – Homem de Melo e Eduardo Ramos...
Aqui foram recebidos e eu os vejo com a alegria sempre renovada, Deus queira que se prolongue indefinidamente na outra casa, Augusto de Lima, Mário de Alencar, Afrânio Peixoto, Lauro Müller, Félix Pacheco, Alcides Maya, Goulart de Andrade, Duque-Estrada, Antônio Austregésilo, Ataulfo de Paiva, Aloísio de Castro, Luís Guimarães Filho, Hélio Lobo, – estes dois ausentes mas não esquecidos, – Amadeu Amaral, Alberto Faria, Humberto de Campos, Alfredo Pujol, Miguel Couto, Xavier Marques, Constâncio Alves, Gustavo Barroso, João Luís Alves... Aqui recebemos Guilherme Ferrero, Anatole France, Júlio Dantas, Ernest Martinenche, Georges Dumas, Monsenhor Baudrillart...
Aqui nos veio a França oferecer um palácio maravilhoso cheio de alfaias, tapeçarias, porcelanas, quadros, bronzes, de arte e preço, séculos e séculos, milhões e milhões, tantos, que desconfiados, na nossa humildade e modéstia, pensamos num “presente de gregos”, “Timeo Danaos et dona ferentes”... e recusamos, para só aceitar o continente, essa jóia arquitetônica que vai ser o escrínio da Academia.
Assim se mitiga a nossa saudade... mudamos de boa casa de empréstimo, para nova casa nossa... mudamos para bem perto, de onde nos podemos ver, sem fadiga... Se as coisas vêem e sentem, este solo, estas paredes, este teto saberão que não somos ingratos e lá adiante não os esqueceremos... Para a outra Academia, a eterna Academia, a desses dezoito anos começa, na memória, a ser imortal...