Senhor José Murilo de Carvalho, quando me fizestes o honroso convite para receber-vos, não ocultastes que um dos motivos que o levavam a outorgar-me tal distinção era a comum mineiridade. De fato, somos ambos da região serrana, do coração montanhês, para lá da Mantiqueira. Porém, as lembranças mais caras me vêm menos da minha Belo Horizonte, onde pouco vivi, que das felizes férias infantis passadas na fazenda de Virgílio de Melo Franco, em Barbacena, com suas noites frias e estreladas, no meio de morros cobertos pelas capoeiras e capões de mato, entremeados por frescos vales, em cujos campos abundavam, para meu encanto de colecionador ornitológico, canários da terra, pintassilgos, curiós, azulões, gaturamos, coleiros do brejo, sabiás e galos da campina. Um dia, Virgílio levou-me a caçar às margens do rio Grande. Por ali tínheis vindo ao mundo, noutra fazenda, em Piedade do Rio Grande.
“Minhas raízes estão plantadas na fazenda de Santa Cruz, onde nasci e cresci” – recordais. “Lá, [...] levantava cedo, andava descalço, campeava gado no pasto, ajudava a tirar leite, caía de cavalo, levava coice de vaca, ouvia histórias à beira do fogo. A Piedade ia por ocasião das festas religiosas, sapato apertando o pé, fascinado com as procissões e o foguetório. Mas guardo de Piedade algo mais importante que as lembranças de infância: a simplicidade de seu povo, sua dedicação ao trabalho honesto, seu senso de humor. Esses valores ficaram comigo e entrarão comigo na Academia, representando lá dentro o espírito de Piedade.”
Antes, havíeis acentuado: “Diferentemente do que se passou nos engenhos, nas grandes plantações de café e nas cidades, a escravidão não degradou o trabalho manual nessa região de fazendas produtoras de queijos e cereais. A mão calejada não era o que distinguia proprietários e não-proprietários. Mas este puritanismo mineiro não se aliava ao espírito do capitalismo, para mencionar a clássica dobradinha de Weber. O trabalho duro, de sol a sol, não se destinava à acumulação de riqueza como prova da salvação. Era um puritanismo católico, para o qual o prêmio do trabalho honesto era apenas a sobrevivência e a paz de espírito.”
Ao explicar vossa origem em Pontos e Bordados – coletânea de ensaios e artigos, cujo título se inspirou nos desenhos trabalhados em duas toalhas por João Cândido, o marinheiro rebelde da revolta da chibata –, fazei-o de forma a que me associo plenamente: “O mineiro na diáspora torna-se mais sensível à questão da sua identidade, mesmo porque ela lhe é freqüentemente lembrada como elogio ou como acusação. Pessoalmente, sempre me incomodou a auto-imagem do mineiro como um ser único, vivida seja como narcisismo, seja como culpa. Daí a satisfação ao assistir recentemente à defesa de uma tese de doutorado [...], na qual a mineiridade é vista como integrando os dilemas da modernidade, isto é, como parte de um diálogo de alcance universal.”
A proveniência regional vem, convosco, redourar os brasões da representação acadêmica de nossa província natal, unindo o vosso nome de historiador consagrado aos de Antônio Olinto, Ivo Pitanguy, Oscar Dias Corrêa e Sábato Magaldi, que ora ilustram, entre nós, as melhores tradições da literatura, da ciência, da política, do direito e do teatro em Minas Gerais. O governo do nosso Estado já o havia reconhecido, agraciando-vos com as medalhas de Santos Dumont e da Inconfidência, bem como o Itamarati, com a Ordem de Rio Branco.
Aquelas tradições mineiras, embora, enriquecidas por vossa presença, sigam brilhando no plenário desta Academia, pecam, hoje, pela ausência no cenário federal. A ponto de não ser despropositado recordarmos, aqui, as imagens famosas com que Francisco Otaviano deplorou, um dia, a mesma carência: “Estrela brilhante do sul, formosa província de Minas, por que desmaias no azul da nossa pátria, quando ela precisa que cintiles com toda tua pureza antiga? [...] Tu que tiveste por largo tempo a primazia no paço dos césares e nos comícios do povo, por que te aniquilas na indiferença e no desânimo? [...] Onde estão teus filhos? [...] Formosa província de Minas, surge, surge; não te é lícito tão longo repouso.” E José Sarney ao receber-me nesta casa, tão insuspeito quanto Otaviano, pois nenhum dos dois por lá nasceu: “Quando Minas se enfraquece, o Brasil definha. Minas é a união, é a liga inquebrantável que une as fissuras dos Brasis: o do norte, sertão agreste, e o do sul. Minas não tem mar porque o mar é salgado. Minas é doce. Suas águas são as águas da unidade nacional.”
Antes de perpassarmos algumas obras por vós publicadas, cumpre lembrar sempre que nós, acadêmicos, como titulares oficiais da cultura, não podemos esquecer as angústias, os dramas e sofrimentos da gente brasileira, refletidos não só na literatura, mas em nossa História, senhor José Murilo de Carvalho. Vós não a resumis à descrição dos feitos heróicos de uns poucos escolhidos. Sem olvidardes os píncaros, ides além, buscais o fundo dos grotões, a fim de descobrir e valorizar, para redimi-la, a vida dos milhões de humilhados e ofendidos. Dedicai-vos menos aos freqüentadores das cumeadas da glória que aos desaparecidos na obscuridade e na miséria. Atentais aos trabalhos do povo, antes que aos interesses das elites. Analisais o Brasil real, de preferência ao Brasil legal, utilizando, com grande rigor e acuidade, fontes primárias de informação.
Os vossos títulos historiográficos desafiam exposição minuciosa, tal a quantidade e importância com que se apresentam. Vamos resumi-los mais adiante. Pois, sendo esta uma Academia de Letras, será lógico, sem mencionar artigos e ensaios, que se aproximam da centena, começar pelos livros principais: A Escola de Minas de Ouro Preto: o Peso da Glória; A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial; Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República Que não Foi, premiado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais como o melhor livro em Ciências Sociais de 1987; Teatro de Sombras: a Política Imperial; A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil, agraciado com o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio Banorte de Cultura Brasileira; A Monarquia Brasileira; Pontos e Bordados: Escritos de História e Política; e A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho, a que foi atribuído o Prêmio Casa de las Américas. Caberia acrescentar, ainda, As Forças Armadas na Primeira República: o Poder Desestabilizador, parte integrante da História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Bóris Fausto.
N’A Escola de Minas de Ouro Preto: o Peso da Glória, evocastes a origem e a influência de uma instituição demarcadora do pensamento científico entre nós, e de larga repercussão na vida econômica e política do país.
A tese de doutorado por vós apresentada, em dezembro de 1974, na Universidade de Stanford, o mais conceituado centro de excelência dos estudos de ciência política nos Estados Unidos, seria editada, posteriormente, em dois livros, A Construção da Ordem e Teatro de Sombras. Neste trabalho de vasta pesquisa e erudição, revelais o proscênio e os bastidores da vida pública no primeiro e no segundo reinados, estudando a atuação decisiva da elite sobre a manutenção da integridade territorial do Império. A representação política traria consigo elementos comparáveis à representação teatral, onde a primeira ficção seria a própria idéia de representação. Pois a elite imperial nunca refletiu, de fato, a população brasileira.
Mas, aqui, tampouco vos privastes de observar que o nosso caminho para a civilização não seguia, necessariamente, as direções apontadas pela Economia Política. Nem o Estado republicano, mais liberal que o do Império, viria a ser mais democrático, pois, nele, a dominação social se espelhou ainda mais abertamente na ação partidária. A eliminação, pela República, do Poder Moderador imperial resultou na extinção dos partidos nacionais atuantes nas províncias, substituídos por partidos únicos nos estados que as sucederam. As novas feições da política se ajustaram melhor, em conseqüência, à fisionomia real do país.
A união da elite imperial não significava unidade. Tal divergência se pode exemplificar na diferença de pontos de vista entre liberais, para quem, conforme Thiers, o imperador reinava, mas não devia governar, e conservadores, adeptos da fórmula de Guizot, segundo a qual ele podia reinar, governar e administrar. Mas aquela solidariedade foi importante para evitar que a antiga América portuguesa se estilhaçasse em vários estados, como a espanhola. Por outro lado, a centralização, sustentada pela monarquia, era um meio de preservar a ordem escravocrata em todas as províncias.
Não hesitastes em recordar o poder desestabilizador d’As Forças Armadas na Primeira República em 1974, quando elas se encontravam em plena faina de desestabilizar a quinta República – se as enumerarmos pela quantidade de constituições republicanas que tivemos, inclusive a de 1937, a Carta ditatorial do Estado Novo. A primeira já fora delimitada por duas intervenções armadas, a de 1889, derrubando o Império, e a de 1930, que a encerrou.
Na proclamação da República, os oficiais oriundos das escolas militares, positivistas e pacifistas, contribuíram com idéias, porém nada de prático teriam obtido sem o apoio de última hora dos veteranos, que mobilizaram a corporação. Benjamin Constant e Deodoro da Fonseca foram os paradigmas dessas duas correntes tão dissímiles, que se uniram para acabar com a monarquia.
O recrutamento evoluiu então, na República, no tocante aos oficiais, de aristocrático para endógeno de classe média. Mas, imposto pela força às classes mais baixas, resultou na má qualidade das praças. O poeta e acadêmico Olavo Bilac contribuiu para aproximar o Exército do povo e multiplicar-lhe o poder político, com a campanha que fez pelo sorteio, visando o alistamento universal.
O Exército preponderava no Rio Grande do Sul e na capital federal, o Rio de Janeiro, com maioria de gaúchos, acarretando ausência quase total de paulistas e mineiros na liderança militar republicana. E a grande predominância numérica dos tenentes, bem como a lentidão nas promoções, favoreceram as rebeliões do tenentismo – vitoriosas, afinal, em 1930, mas logo emasculadas pelo caudilhismo civil.
Enumerastes em três linhas doutrinárias distintas as tendências que dividiam, na primeira República, o Exército brasileiro: a do soldado-cidadão, batalhador incansável pela intervenção reformista; a do soldado profissional, propugnador da não-intervenção; e a do soldado-corporação, partidário da intervenção moderadora. A conseqüência deste poder moderador das forças armadas seria o conservadorismo social das suas intervenções. Passou-se da política na organização para a política da organização. O que acarretou, entre 1964 e 1985, uma ditadura corporativa, sem ditadores individuais. Um ditador, por definição, permanece indefinidamente no poder. Nenhum dos nossos generais-presidentes logrou este feito.
Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República Que não Foi alude à frase famosa com que Aristides Lobo qualificou a forma pela qual a população da capital assistiu ao golpe militar que derrubou o Império. Ali assinalais, com precisão, o pecado capital do movimento: a indiferença popular. Diríeis, mais tarde, que a República fracassou porque a nação não esteve presente. Tampouco diversa fora a distância com que o povo testemunhou a independência. Esta e a República partiram de dois gritos, o de um jovem príncipe e o de um velho marechal. Não se ouviu, porém, em nenhuma das duas circunstâncias, de um povo heróico o brado retumbante. Já a campanha abolicionista permitira que a opinião pública se manifestasse, pela primeira vez entre nós, refletindo a vontade nacional. Mas, com o movimento antiescravagista, ficou exposto, por outro lado, o núcleo da oposição entre os pólos do poder da Coroa: o burocrático, encabeçado pelo próprio imperador, e o econômico, representado pelos grandes proprietários rurais.
Optastes, ao mesmo tempo, pela transição da monarquia para a República como a melhor ocasião de estudar as relações entre o cidadão e o Estado. Ao centrar a vossa análise na capital de então, o Rio de Janeiro, mostrais como a República remodelou cidades, mas não permitiu que se formassem cidadãos.
N’Os Bestializados exemplificais como, entre nós, o formal não era levado a sério, nem a lei se adotava para valer. O regime republicano consolidou-se excluindo o povo de participação no governo. Vigorava o conluio da ordem com a desordem, da norma com a transgressão. A capital, a República e a cidadania permaneciam dissociadas. E o que escrevestes sobre aquela época de transição permanece até hoje, quando o jogo do bicho foi alcançado pelo narcotráfico. Há dez anos, dizíeis que “o bicho, agigantado pela incorporação do crime, do tráfico e do contrabando, penetrou no coração da política e da sociedade, invadiu o mundo da criatividade popular, o samba e o futebol, comprou autoridades do Executivo, do Legislativo, do Judiciário [...]. A cidade, no sentido cívico da palavra, está bichada”. A alma encantadora das ruas, que inspirava João do Rio, tornou-se uma lembrança distante, irreal.
A primeira Constituição republicana, de 1891, negou o voto aos analfabetos e desobrigou o Estado da instrução primária, regredindo, nestes pontos, com referência à Constituição imperial de 1824. Suas inovações em benefício da cidadania reduziram-se a baixar a idade mínima dos eleitores e eliminar o limite de renda. O mecanismo eleitoral afastava da participação política grande parte da população do Rio de Janeiro, e muitos dentre os demais não se interessavam em exercê-la. Mas os cidadãos inativos chegaram a defender ferozmente o que consideravam seus direitos, conforme ocorreu, há exatamente um século, com a revolta da vacina. Então, como Getúlio Vargas cinqüenta anos mais tarde, o Presidente Rodrigues Alves recusou-se a abandonar o palácio do Catete, afirmando ser aquele o seu posto – de combate, se necessário. Contudo, ao contrário de Vargas, preparou a resistência, e venceu.
Os princípios de preservação da liberdade individual e do respeito à privacidade do lar atuaram como pretextos morais da rebelião. O levante militar com que esta culminou foi derrotado, mas, em verdade, caiu drasticamente o número das pessoas vacinadas. Enfim – resumis –, a revolta da vacina poderia ser interpretada como uma manifestação cidadã em negativo.
N’A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil, o trato constante do simbólico não nos conduz a um mundo de falsas aparências, pois simbólico não quer dizer obscuro. No caso de que vos ocupais, os símbolos são a metáfora da História. Interpretais imagens, alegorias e mitos da época buscando avaliar como as visões republicanas atingiam as populações em geral.
Definis a natureza da República brasileira quando foi proclamada, mostrando a disputa por três correntes pela legitimação do novo regime: o jacobinismo idealizava a democracia direta, o governo através da participação da cidadania, inspirado na revolução francesa; o liberalismo, de inspiração norte-americana, visando uma sociedade de indivíduos autônomos, com interesses orientados pela “mão invisível” do mercado, a que aludia Adam Smith; e o positivismo a imaginar a futura idade de ouro, através de uma ditadura republicana, plebiscitária e benévola, e da humanidade mitificada.
Às correntes liberais, positivistas e jacobinas entre as quais se dividiam os propugnadores do novo regime, somaram-se anarquistas e socialistas, alimentando o caos financeiro com que o encilhamento encarnava a vitória do espírito capitalista, desacompanhado da ética protestante.
A República foi proclamada no momento de maior popularidade da monarquia, do imperador e da princesa Isabel, consecutivo à abolição da escravatura. A grande população negra era simpática à Coroa. Mas o grosso do Exército e da Marinha, estacionado no Rio de Janeiro, facilitava as pressões e intervenções militares.
A postura liberal pressupõe a liberdade de ir e vir, de propriedade, de opinião, de religião, de participar coletivamente do governo. Isto se dá pela representação. Porém o liberalismo conduziu de fato, em sua prática brasileira, à consagração da desigualdade, como imposição do interesse do mais forte, numa espécie de darwinismo social. Acoplado ao presidencialismo, teve em mãos os instrumentos ideológicos e políticos para estabelecer um regime autoritário, em que a sociedade caracterizou-se por desigualdades profundas e pela concentração do poder. O que levou Alberto Torres a exclamar: “Este Estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos.”
Entre os republicanos históricos, que eram liberais, os positivistas e os jacobinos militaristas, o debate sobre a origem da República ficou inconcluso, como inconclusa, até hoje, permanece a nossa res publica. Euclides da Cunha trouxe ao proscênio da opinião e da literatura nacionais o drama do sertanejo, Graça Aranha o do imigrante, Monteiro Lobato o do caipira, Gilberto Freyre o do negro, mas a República brasileira ainda não os tornou cidadãos ativos. Contra os que lutam por democratizá-la, insistem outros em mantê-la privatizada. Noutro contexto, iríeis referir-vos ao divórcio estabelecido, no pensamento republicano, entre democracia e reforma social.
Para evitar a divisão originária entre os partidários de Deodoro, Floriano e Benjamin Constant, o herói militar republicano veio a ser um soldado do Império, Caxias, e o mártir da República um alferes da Colônia, o Tiradentes. Quanto ao imaginário feminino, a Virgem negra de Aparecida simbolizaria muito melhor a nação brasileira, na República, que qualquer figura jacobina, com ou sem barrete frígio, ou positivista, à imagem e semelhança de Clotilde de Vaux, a musa de Augusto Comte, cujos seguidores, entretanto, conseguiram incluir o lema “ordem e progresso” em nossa bandeira.
A República, para se popularizar, apelou assim à independência, obra do Império, e à religião, através da analogia do martírio do Tiradentes com o de Cristo; aos símbolos monárquicos, mantendo o formato e as cores da bandeira imperial; e à tradição cívica, ao resgatar a música do hino nacional. Daí para a metáfora que criastes foi um passo: a pietà cívico-religiosa da República, tão pouco republicana, simbolizada pelo mártir Tiradentes nos braços da Virgem Aparecida. Desta forma, ficava sintetizado, na sua expressão mais pura, o imaginário nacional.
Vosso estudo sobre o longo caminho d’A Cidadania no Brasil traz-nos logo à lembrança a retórica da Carta Magna que ora nos rege, a “Constituição cidadã”. Ele se focaliza nos problemas que retardam a vivência plena da cidadania pelos brasileiros, pois os direitos civis, políticos e sociais do cidadão garantem, respectivamente, a vida, a liberdade, a propriedade, a igualdade, a influência da sociedade no governo, através do voto, e sua participação na riqueza coletiva. Aponta, também, para a falsificação das vontades no processo eleitoral, que vem do bico de pena até, em nossos dias, à influência determinante do poder econômico. Entre nós – protestais –, “povo e Estado [...] juntaram-se apenas nas núpcias adulterinas do clientelismo e do populismo. [...] Clientelismo e populismo não são democracia nem produzem democracia. Neles, nem é o povo soberano, nem é o Estado democrático. Do lado do Estado permanecem o arbítrio e o paternalismo, do lado do povo a fisiologia e a lealdade personalizada.”
O conceito de cidadania, que começais por resumir em quem pode votar e ser votado, é mais do que uma presença constante na totalidade da vossa obra, a recordar-nos que as instituições têm sempre o homem como sua primeira razão de ser, seu fim último. Constitui o fulcro de como encarais a missão do historiador. Sintetizais a idéia de pátria na família, na integração, na comunidade, ao passo que cidadania implica cálculo, pacto, construção, defesa de interesses. Mas essas noções não se excluem, antes se complementam, para configurar o Estado. “A constituição da cidadania – afirmais – não dispensa o Estado, e, portanto, não prega sua dissolução em nome das forças da globalização. Mas ela exige um novo Estado, que terá por tarefa básica garantir os direitos, que será um instrumento da realização humana, e não um fim em si [...]. O fortalecimento das redes de relações sociais, de identidades coletivas intermediárias, [...] é o que garantirá a construção do novo Estado, é o que garantirá sua legitimação.” Em conseqüência, concluís que “as bases do orgulho nacionalista terão que se deslocar da mera posse e controle de recursos materiais, frutos da tradicional valorização da natureza combinada com a competição internacional, [...] para a qualidade de vida dos cidadãos que compartilham o espaço nacional. A garantia das liberdades civis, o acesso à educação, a proteção à saúde, a garantia de emprego, a capacitação tecnológica, serão mais importantes para a sustentação da solidariedade nacional [...].”
Em mais de três séculos de colonização, Portugal legou-nos um país enorme, dotado de unidade territorial, lingüística, cultural e religiosa. Mas também uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. Não existira sentimento nacional durante a Colônia. Os inconfidentes de 1789 referiam-se a si próprios como americanos, ou imaginavam uma pátria mineira. Como, para os revoltosos de 1817, a pátria era Pernambuco. O principal fator de produção da identidade brasileira viria a ser, já mais para o fim do segundo reinado, a guerra do Paraguai.
A única alteração relevante nos direitos da cidadania, durante o Império e a primeira República, consistiu na abolição da escravatura. O Brasil foi o último país de tradição cristã e ocidental a libertar os escravos. Porém, para concluí-la e lhe dar sentido prático, faltaram a reforma agrária e a educação dos libertos, problemas até hoje não resolvidos. “A escravidão desapareceu, foi abolida” – reconheceis –, “mas as características hierárquicas e autoritárias permaneceram. A batalha da abolição, hoje, é a batalha pela eliminação dessas características, responsáveis, entre outras coisas, pela preservação da marginalização do negro.” Pois temos, conforme asseverais, o dever de “completar a tarefa inconclusa da abolição, pela absorção da população negra dentro da comunhão plena da cidadania brasileira”.
Desde o Império, o coronelismo vigente no interior negava os direitos civis e anulava os políticos. O governo se firmava pelo reconhecimento de limites estritos ao poder do Estado. Ao manter privado seu conteúdo, restringia a extensão da cidadania.
Os principais obstáculos à cidadania civil centraram-se na escravidão e na grande propriedade rural. O movimento abolicionista significou um começo de cidadania ativa. Outro foi o tenentismo, iniciado em 1922, ao atacar oligarquias políticas estaduais. Pois nem o centralismo trouxera a educação cívica, nem o federalismo a garantia da liberdade. O centralismo tendeu ao despotismo do governo, o federalismo ao do poder privado dos “coronéis”.
A revolução de 1930 representou um divisor de águas, acelerando transformações sociais e políticas. O povo dela não esteve ausente, como em 1889, quando da proclamação da República. Já agora era ator, posto que coadjuvante, de um movimento nacional, reagindo contra mais uma eleição fraudulenta. Até então, como bem lembrais, “havia fraude na inscrição dos eleitores, fraude na votação, fraude na contagem dos votos, fraude no reconhecimento dos eleitos”. Ficava abolido, doravante, o sistema de capitanias hereditárias virtuais, implantado pela política dos governadores, que Campos Sales instituiu.
Após a revolução constitucionalista de São Paulo, em 1932, as mulheres teriam reconhecido o direito de voto. Mas o governo autocrático de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945, com o curto de intervalo constitucional de 1934 a 1937, legou-nos uma cidadania sem democracia, limitada por restrições políticas, passiva e receptora, antes que ativa e reivindicante. Era a ditadura republicana, inspirada pelo positivismo gaúcho.
Lembrais, com justiça, que os positivistas haviam sido os primeiros a considerar benéfica a contribuição da raça negra para a formação da sociedade brasileira, além de defenderem a política de proteção dos índios, encarnada no General Rondon. Mostrou-se também meritória sua influência sobre a legislação social, ao preconizarem a incorporação das camadas oprimidas à sociedade nacional. Mas eles foram, por outro lado, responsáveis pela separação dos ideais de reforma social e democracia representativa, ao defenderem um regime autoritário, e se oporem à representação parlamentar.
No Estado Novo, o povo não falava por si mesmo. Sua identidade era-lhe outorgada pelo regime, que o silenciara, abolindo os partidos políticos, fechando o Congresso, cancelando eleições, proibindo greves e implantando o sindicalismo corporativista, dependente do governo.
Restabelecida a democracia em 1945, readquirimos a cidadania, embora sem maior evolução social. A resistência libertária responsável pela fundação da União Democrática Nacional fora a principal responsável pela derrubada da ditadura civil do Estado Novo. Observais, contudo, que “o liberalismo da década de 50, através da UDN, [...], recuperou muito o Rui Barbosa de antes da descoberta da questão social. [...] Ele acabou dando ênfase muito grande ao problema da ética e da moral. Trata-se, sem dúvida, de questão importante, que está sendo retomada hoje, mas [...], de alguma maneira, ele a esterilizou, desvinculando-a da questão social.” Aqui, no entanto, cumpre insistir na importância de uma administração íntegra, que impeça o desvio fraudulento de recursos destinados ao bem-estar da coletividade.
Aos nossos direitos políticos, não correspondera o desenvolvimento prévio dos direitos civis. Lembrais que, para a grande maioria dos brasileiros, existe o Código Penal, mas não o Código Civil. De 1964 a 1985, os direitos civis e políticos dos brasileiros foram restringidos pela violência da ditadura militar, através do Ato Institucional n.º 1, de 1964, do n.º 2, de 1965, e, mais duramente ainda, do n.º 5, de 1968. Já os direitos sociais, como sói acontecer durante os regimes autoritários, dada a menor resistência encontrada pela sua aplicação, se alargaram, com a unificação e universalização da previdência, através da inclusão, nela, dos trabalhadores autônomos, rurais, e das empregadas domésticas.
A Constituição vigente, de 1988, tornou facultativo o voto dos analfabetos, reduziu a idade para o seu exercício, continuou estendendo os direitos sociais. Os direitos civis vigentes antes do estabelecimento do regime militar, que os cerceara, foram restabelecidos e ampliados, com as inovações do habeas data e do mandado de injunção. Contudo, a sociedade brasileira segue estigmatizada, em termos de justiça social, por uma das piores repartições de renda vigentes no mundo. Permanecemos, por definição, um país injusto. Em relatórios e estudos recentes sobre a desigualdade social no planeta, o Brasil aparece, no tocante à distribuição de renda, à frente, apenas, de quatro estados africanos. Mas estes, tomados em conjunto, totalizam cerca de quinze milhões de habitantes. O que permite considerar-nos, com os nossos cento e oitenta milhões, a grande nação mais desigual da Terra.
Senhor José Murilo de Carvalho, desde a fundação da Academia Brasileira, o seu secretário geral perpétuo, Joaquim Nabuco, deixou claro, conforme o exemplo da Academia Francesa, que lhe servira de modelo, não devermos cingir-nos à literatura pura e simples, mas nos enriquecer incorporando ao convívio acadêmico individualidades notáveis pelo aporte trazido à nossa cultura em seus diversos campos de atuação.
Entre essas, fazia-se premente dar continuidade à permanência, aqui, de sábios cultores da História. Apenas para exemplificar, lembremos nomes ilustres, como os do patrono Francisco Adolfo de Varnhagen, dos acadêmicos Oliveira Lima, Rocha Pombo, Rodolfo Garcia, Afonso de Escragnolle Taunay, Pedro Calmon, Afonso Arinos de Melo Franco, José Honório Rodrigues, Américo Jacobina Lacombe, Raymundo Faoro. A eles, permiti-me acrescentar dois outros, dos maiores, que não foram membros desta Casa, mas aos quais me ligavam laços familiares de profundo afeto, ora transfigurados em lembrança e saudade constantes: Otávio Tarqüínio de Sousa e Sérgio Buarque de Holanda.
Mas, após o desaparecimento daqueles, carecíamos de um historiador em tempo integral. E, para estudar e divulgar a nossa História, os vossos títulos, internos e internacionais, são abundantes. Desde o bacharelado em Sociologia e Política na Universidade Federal de Minas Gerais (onde vos beneficiastes da sabedoria e privastes da amizade do ilustre Francisco Iglésias), passando pelo mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciência Política e História na Universidade de Stanford, pela especialização em Metodologia de Pesquisa na Universidade de Michigan, por outro pós-doutorado na Universidade de Londres, vos dedicastes a atividades de docência e direção na Universidade Federal de Minas Gerais, na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, da qual sois professor titular.
Como pesquisador e docente, vossa peregrinação estendeu-se à Fundação Casa de Rui Barbosa, à Fundação Getulio Vargas, às universidades de Princeton, de Londres, de Oxford, de Leiden (na Holanda, onde, como embaixador do Brasil, tive o prazer de receber-vos), da Califórnia, de Notre Dame. Pesquisastes e lecionastes, ainda, na Maison des Sciences de l’Homme, no Centre d’Étude des Mouvements Sociaux e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris.
Membro titular do PEN Clube do Brasil, sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sócio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, membro da Academia Brasileira de Ciências, adentrais agora, com merecimento total e para honra nossa, os umbrais da Academia Brasileira de Letras. Historiador José Murilo de Carvalho, intérprete fecundo do Brasil, esta Casa de grandes historiadores é naturalmente, de direito e de fato, a vossa Casa.