Ele é biógrafo e também ficcionista, com romances transcorridos no Rio de Janeiro do século XIX. Residiu algum tempo no exterior. Teve adaptação de obra levada ao palco. Autor de numerosos artigos, com frequência críticos ao Governo. Melômano, escreveu a biografia de um importante nome da área musical. Poliglota e polígrafo, percorre à vontade vários gêneros, numa obra que contabiliza dezenas de títulos.
Como todos perceberam, estou-me referindo ao Visconde de Taunay, fundador da cadeira 13, cujo perfil foi exemplarmente traçado pelo seu novo ocupante, o escritor Ruy Castro. Se comecei invocando o fundador, aproveito para me reportar, em breves considerações, a outros nomes que ilustram a trajetória da cadeira, a fim de enfatizar aspectos talvez não muito visíveis a um primeiro olhar.
Seria possível, recuando no tempo, localizar algum denominador que unisse Ruy a seus antecessores?
Numa improvável mesa de um impossível bar, eu desejaria conversar com os predecessores de Ruy Castro, e indagar se eles teriam algo a dizer ao novo integrante da Casa. Mas, como aqui se trata de sessão acadêmica, e não de sessão mediúnica, tal diálogo póstumo não se efetuará com os espíritos desses escritores, mas com seus corpos – corpos textuais, seus livros.
Comecemos pelo patrono, Francisco Otaviano, que, antes de se tornar uma rua de Copacabana, foi jornalista e político de enorme prestígio. Otaviano, aliás, mereceu dupla homenagem de Ruy: não só hoje, no discurso que acabamos de ouvir, mas também como personagem do romance Os perigos do Imperador, lançado em 2022.
Para desespero dos bibliófilos, Otaviano, poeta incidental, publicou somente duas raríssimas coletâneas de verso: uma, Cantos de Selma (1872), com a exígua tiragem de 7 exemplares; a segunda, Traduções e poesias (1881), mais generosa, com tiragem de 50. Porém o que extraí de um prefácio de Otaviano seria antes uma sugestão ´para mim do que para Ruy. Aconselha-me o patrono: “por mais estoico que seja o homem, por mais que/.../ despreze o conceito dos seus contemporâneos, sempre o elogio lhe será incentivo para cometer grandes trabalhos e prosseguir com firmeza e perfeição”.
O já citado fundador, o monarquista Visconde de Taunay, neste 2023 será lembrado pelos 180 anos de nascimento . Com um sorriso amarelo, melhor, verde e amarelo, pois permaneceu patriota até o fim, Alfredo de Taunay talvez lamentasse a perda de seu status na cadeira 13: o de mais produtivo autor, com cerca de 30 livros publicados. A bibliografia de Ruy ultrapassa o dobro desse montante.
Do visconde passamos ao doutor: Francisco de Castro, poeta e médico, ou melhor, bastante médico e pouco poeta. Na introdução da coletânea Harmonias errantes, de 1878, pinçamos uma frase que parece estar falando de Ruy Castro: “Estudo, trabalho e talento são a tríplice arma com que se conquista o triunfo”. Estudo, trabalho, talento, três marcas de Ruy. A frase, porém, não é de Francisco, e sim de seu prefaciador, um certo Machado de Assis. De lavra franciscana é o juízo que a seguir lerei, a propósito de Taunay, e que também se ajustaria perfeitamente ao novo acadêmico: “De tudo nos fala o nosso escritor com aquela precisão de dizer e firmeza de tom, sagacidade inquiridora e concepção larga, forte penetração do assunto e tal vigor de evocação, que logo infunde nas coisas que comemora, [mesmo] através da distância e dos anos, calor, atualidade, vida”.
Na sequência, Martins Júnior, brilhante advogado, que tentou unir poesia e ciência, não alcançando, porém, nem uma nem outra. Após a frustrada tentativa de uma poesia científica, retornou ao lirismo, em 1893, no livro Tela policroma. Como, segundo alguns, os poetas podem ser considerados as antenas da raça, no século XIX Martins Júnior escreveu um poema cujo título seria de grande agrado de uma governante brasileira do século XXI: trata-se de “Mulier sapiens” .
Se Ruy indagasse a Augusto Meyer: “Devo acreditar na imortalidade?”, o gaúcho lhe indicaria o título de sua obra de estreia, em 1923: A ilusão querida. Meyer, todavia, contrabalançaria o ceticismo com o seguinte comentário a propósito do enterro de Machado de Assis: “Pouco importa esse cortejo que aí vai /.../ rumo ao cemitério São João Batista. É dentro de nós mesmos que os homens morrem ou renascem”.
Francisco de Assis Barbosa, biógrafo, organizador da monumental edição da obra completa de Lima Barreto, decerto se sentiria muito bem representado por outro biógrafo, organizador da monumental edição da obra de Nelson Rodrigues.
No discurso de posse, Sergio Paulo Rouanet admite que não conseguiu divisar um traço comum em seus antecessores. E conclui: “De repente, descubro o que essa Cadeira tem de característico: /.../ por não ter uma vocação própria, ilustra a vocação da Academia, que é o pluralismo.” Pluralidade que não exclui uma constante: como Ruy bem observou, salienta-se a vocação jornalística de quase todos os titulares da cadeira, inclusive o atual.
Francisco de Assis Barbosa assumiu a cadeira 13 num dia 13 de maio. Como não sou propenso a sortilégios numéricos, não lhes informarei que a soma dos dígitos da data de hoje, 3 do 3 de 2. 0. 2. 3 resulta exatamente em 13. Tampouco direi que o nome dos antigos ocupantes Alfredo Taunay, Sousa Bandeira, Martins Júnior e Sergio Rouanet compõem-se de 13 letras. Se as 9 de Ruy Castro escapam desse padrão, invoco a pessoa que melhor o representa, a mulher, a musa, a escritora, abrigada nas 13 letras de Heloisa Seixas. Evito chamá-la de sua “cara metade” não só porque ambos detestam lugares-comuns, mas porque, na vida de Ruy, ela não é metade, ela é inteira.
O futebol, uma das paixões do escritor, se organiza, todavia, em torno do 11. Sem qualquer dificuldade escalaríamos, de ponta a ponta, um time completo integrado pelos múltiplos Ruys. No gol, o biógrafo. Na zaga, o cronista, o cinéfilo, o musicólogo e o ficcionista. No meio de campo, o jornalista, o pesquisador e o flamenguista. No ataque, o historiador, o antologista e o editor. Como se fosse pouco, ainda sobra espaço, no banco de reservas, para o tradutor, o ensaísta, o entrevistador, o professor e o bibliófilo, prontos para entrarem em campo, e tão talentosos quanto os outros 11. Em todas essas modalidades, Ruy não se cansa de marcar numerosos gols de letras.
Sua produção comporta não menos do que 70 títulos, entre publicações autorais, antologias, organização de edições e traduções, sem falar nos seus 11 livros vertidos para 9 idiomas e editados em 10 países.
Ruy foi muito precoce na revelação de seu talento, e de tal modo que algum desavisado poderia até supor que ele começou a publicar antes mesmo de haver nascido. Sim, porque, se nasceu em 1948, o fato é que já em 1925 o nome “Ruy Castro” circulava em nossa literatura, como autor da comédia “Somos o que elas querem...”. O Ruy de 1948 é incomparavelmente melhor do que seu homônimo anterior, com o qual, todavia, compartilha duas curiosas coincidências: o Ruy Castro antigo nasceu em 1894, 1, 8, 9, 4, com os mesmos quatro dígitos, 1, 9, 4, 8, de nosso Ruy contemporâneo. E ainda: o Ruy do século XIX também era atento ao futebol, conforme atesta a rubrica inicial da peça: “de quando em quando, vozes se ouvem ao longe, de torcedores que passam nos bondes, rumo ao campo do Botafogo, em dia de jogo com o Fluminense”. Provavelmente seja essa a primeira referência ao futebol num texto da dramaturgia brasileira, reportando-se ao já bastante longevo confronto Botafogo versus Fluminense. Tão longevo que, hoje em dia, é denominado o “clássico vovô” do Brasil, sendo o terceiro mais antigo do futebol mundial. O embate de número 1 entre as duas equipes ocorreu em outubro de 1905. Portanto, em 1925 o jogo teria idade para, no máximo, ser chamado de “clássico papai”.
Do ângulo que aqui interessa – o da produção textual –, Ruy nasceu aos 19 anos, em 1967, na condição de repórter do Correio da Manhã. Depois, nos desdobramentos desse percurso jornalístico, trabalhou em outros 15 grandes órgãos da imprensa, até estabilizar-se, a partir de 2007, como colunista da Folha de S.Paulo. Mantendo a média de quatro colaborações por semana, ao longo de 16 anos terá atingido, para nos restringirmos apenas às colaborações no jornal paulista, a assombrosa cifra de 3 mil crônicas.
Retornemos, porém, a 1967, em busca desse Ruy originário. No desassombro de sua pós-adolescência, assinou matérias que ganharam a capa do segundo caderno do Correio da Manhã, recorrendo a temas e formas que de certo modo prenunciavam o futuro escritor. Temas: a literatura, o cinema, a música. Formas: o gosto e o gozo pelos jogos de palavra, pelo comentário inteligente e malicioso. Assim, no dia 18 de agosto, em matéria intitulada “Tecnologia do namoro”, transforma o século em sexo, cunhando a expressão “ad sexum seculorum”. Em 29 de agosto, publica o aliterativo artigo “Mito morte Marilyn”. Porém nada mais premonitório do que seu texto de estreia, em 4 de maio: “1937: o samba em funeral”, comemorativo dos 30 anos da morte de Noel Rosa. Ora, Noel seria gravado por Carmen Miranda, personagem de uma das três incontornáveis biografias de Ruy. E, exatamente ao lado dessa matéria, deparamos com as memórias de Nelson Rodrigues, futuramente o primeiro de seus biografados.
Ruy retratou todas as temporalidades do Rio de Janeiro. O século XIX e os primórdios do XX surgem pelo viés ficcional, com os saborosos Bilac vê estrelas (2000), ambientado no Rio Belle Époque; Era no tempo do Rei (2007), evocação da cidade joanina das primeiras décadas do século retrasado; e o recente Os perigos do imperador – um romance do segundo reinado.
O que é verdade, o que é pura fabulação nesses três romances? Melhor não ser categórico, e admitir que eles contêm ao mesmo tempo, em doses diversas, componentes reais e fictícios.
Memória, história e imaginação parecem constituir os três eixos em torno dos quais se organiza a literatura de Ruy. Não nos esqueçamos de sua rara incursão na narrativa curta, em “La petite mort”, integrante da coletânea Meu querido canalha (2004). O texto, pleno de reviravoltas, conta a vingança de um esposo traído, e culmina na prática de uma insólita refeição, levada, digamos, às últimas e canibalescas consequências.
Se a imaginação desponta como força motriz nos retratos cariocas do século XIX, a rigorosa pesquisa histórica prevalece, soberana, nos painéis que Rui constrói em torno do Rio de Janeiro a partir da década de 1920. Desvela uma pulsante imagem da cidade em Metrópole à beira-mar (2019), obra que redimensiona o Rio de Janeiro como o efetivo cenário de modernização da cultura brasileira, em todos os seus níveis – literário, musical, arquitetônico, científico.
Cidade na qual, de meados da década de 1940 a meados da década de 1960, predominou um gênero: o samba-canção, mapeado, no livro A noite do meu bem (2015), em suas ramificações culturais, sociais e políticas. O deslocamento da vida musical noturna, egressa dos grandes e recém-proibidos cassinos para as pequenas boates, demandava uma nova música e um novo jeito de interpretá-la. Atualmente somos atentos ao que se denomina o lugar da fala; no livro, Ruy, com perspicácia, tratou também de considerar o lugar do canto. Em geral, o canto passou a soar num canto mais acanhado, próximo a um piano, e cercado de emanações tabagistas e etílicas dos noctívagos.
O Ruy jornalista nascido em 1967 renasce escritor em 1990, com Chega de saudade – a história e as histórias da bossa nova. O subtítulo é fundamental, na promessa – cumprida – de não só mostrar o contexto geral – a História – , como de revelar seus bastidores, seu lado íntimo e pessoal – as histórias. A noite do meu bem, aliás, e não por acaso, ostentaria subtítulo similar ao de Chega de saudade: a história e as histórias do samba-canção.
Em diálogo parcial com o livro da bossa-nova, de robustas 500 páginas, situam-se as não menos opulentas 556 páginas de Ela é carioca – uma enciclopédia de Ipanema (1999), com 237 verbetes. Se há personagens comuns às duas obras, o arco temporal da enciclopédia precede a cronologia de Chega de saudade, distendendo-se a partir de 1910.
Podemos dizer que esse tríptico de reconstituição de períodos históricos elabora uma espécie de macrobiografia da cidade, uma pólis-grafia, constituída pela sábia articulação de centenas de minibiografias. Os três livros flagram pessoas num determinado recorte temporal de suas vidas, no qual elas atuam como coadjuvantes do efetivo protagonista: o Rio dos anos 1920, do samba-canção e da bossa-nova.
Mas não apenas o passado é perscrutado pelo escritor. A vida presente é o grande manancial de sua volumosa produção de cronista. Uma pequena parcela desse imenso contingente já se encontra preservada em 6 livros, fora outros 14, com peças de maior fôlego, que o autor não cataloga como “crônicas”, e sim como “reportagem, perfil e memória”. Várias obras desses dois conjuntos apresentam seleção e organização de Heloisa Seixas, duas delas, inclusive, em regime de coautoria. As coletâneas de textos mais extensos do que as crônicas comportam entrevistas, artigos e ensaios, reunidos, entre outros títulos, em Um filme é para sempre (2006), O leitor apaixonado (2009) e Trêfego e peralta (2017). A contrapelo de saberes cada vez mais setorizados, Ruy demonstra uma fome omnívora de conhecimento.
Nesse território textual híbrido, propenso a comportar quase tudo, se estampa com mais constância uma das marcas personalíssimas de Ruy Castro: o humor. Na coletânea Trêfego e peralta, temperados pelo humor e pela ironia, desfilam a macaca Chita, Cleópatra, Mallarmé, o Pato Donald, Lillian Hellman e Drácula, sobre o qual ele escreve: “Qual é o seu monstro favorito?/.../Como toda criança, comecei por Drácula. É o monstro mais famoso, acessível, /.../ tanto que às vezes quase podemos confundi-lo com um membro da família”. Em “Minha querida máquina de escrever”, constata, com certa saudade, que “numa época como a nossa,/.../ os parentes mais próximos da máquina de escrever passaram a ser a caneta-tinteiro, a pena de ganso e os pterodáctilos”.
O escritor nos fala de um Rio que ri. De um Rio que é Ruy. A paixão pela urbe e a irreverência com que a flagra se irmanam, e poderiam fundir-se numa só expressão, que abarca os dois sentidos: a-mor-da-ci-da-de.
Se o humor aflora, ostensivo, nos 100 metros de tiro curto das crônicas, ele também se infiltra nas maratonas das grandes reconstituições históricas. Assim, em A noite de meu bem, referindo-se à carolice de Dona Santinha, esposa do Presidente Dutra, Ruy fulmina: “Católica até enquanto dormia”. Adiante, evocando ambientes populares e pouco higiênicos, cita inconvenientes fregueses de plantão: “a feijoada só era servida nos restaurantes mais modestos, aqueles com toaletes inabordáveis e moscas que atendiam pelo nome”.
Os livros de crônicas se subdividem por temas. Dentre os mais reiterados, há deliciosas seções sobre a palavra, o bom ou o mau uso da língua portuguesa; sobre o amor incondicional aos gatos; sobre seres, situações e lugares do afeto, concentrados em A arte de querer bem (2018). Uma das crônicas se intitula “O sebo e o céu”. A propósito, Ruy e eu endossamos uma conjectura de Jorge Luis Borges. O escritor argentino, como se sabe, pensava que o Paraíso deveria ser uma espécie de imensa biblioteca. Tudo bem. Minha única preocupação, no caso, consiste em saber: quem vai espanar os livros?
Um título se destaca no conjunto que o autor denomina “reportagem, perfil e memória”. Refiro-me ao primoroso Carnaval no fogo – crônica de uma cidade excitante demais (2003). Ao longo de cinco capítulos, somos transportados numa viagem em ziguezagues cronológicos, que se inicia em 2003, recua para 1502, avança 500 anos, e retorna ao século XVI, acrescentando ao painel carioca a faixa temporal que Ruy até então não percorrera: o Rio de Janeiro colonial. Mas não se desenha apenas o contraste entre o Rio que é e o Rio que foi: o escritor igualmente sonha o Rio que poderia ter sido, ou que ainda poderá vir a ser, contra “o urbicídio que assolou outras metrópoles”.
No capítulo 2, entramos no samba e no carnaval. Ruy observa que “jamais alguém se atreveu a cometer um golpe de Estado em fevereiro – não haveria quórum”. E prossegue, referindo-se ao período entre 1930 e 1960: “Sendo uma cidade razoavelmente católica, produziu, sob as barbas do Cristo Redentor, Carnavais mais pagãos que os do próprio paganismo egípcio ou das bacanais romanas – aqui, o boi Ápis viraria croquete de botequim”.
No capítulo 3, profere um justo e enfático elogio ao Jardim Botânico. Apresenta-nos ainda a progressiva luta pela emancipação da mulher carioca e a inquestionável influência anglo-francesa nos costumes citadinos do nosso século XIX.
No 4, recorda projetos arquitetônicos e urbanísticos, felizmente malogrados, de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Lúcio pretendia que a Cidade Universitária fosse edificada sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas. Niemeyer planejava o estádio do Maracanã com o gramado a doze metros de profundidade, para que o torcedor não tivesse de galgar uma rampa de acesso. Como a região é propensa a alagamentos, creio que seria prudente, em dias de temporal, as equipes levarem para o estádio botes infláveis e coletes salva-vidas, para resgatarem do gramado os atletas que porventura não soubessem nadar.
Ruy repudia a Catedral Metropolitana, por ele comparada a “um descomunal balde emborcado para baixo/.../ merecedor de implosão por ter reduzido os Arcos da Lapa /.../ a dimensões nanicas”. No mesmo capítulo, relembra que, em 1886, um visitante francês, o Visconde de Courcy, para resolver o problema da falta de ventilação no Centro da cidade propôs simplesmente a derrubada do Pão de Açúcar. Ao combater a proposta da construção de um viaduto, Ruy é lapidar: “A morte lenta e dolorosa é o destino de tudo que leva um viaduto por cima”.
Por fim, o capítulo 5 privilegia Copacabana, seu grande hotel e as lembranças mais ou menos despudoradas que povoam a história do lugar. Ruy Castro declara, incisivo: “Copacabana foi o primeiro bairro do Brasil a nascer cosmopolita. Em seu passado, não existe memória de uma vida rural, suburbana, provinciana – enfim, da lenta sedimentação sobre a qual se fundam as cidades”.
Carnaval no fogo contém muito mais, e se revela uma verdadeira ode ao espaço urbano e humano que nos constitui, sem, todavia, ocultar as mazelas que nos assolam.
As considerações e as experiências do escritor no campo da biografia estão reunidas em A vida por escrito (2023). Num tom sedutor e coloquial, ele alinhava teoria e prática adquiridas em três décadas de dedicação ao gênero, e nos mais de três dezenas de cursos que ministrou sobre a “ciência e arte da biografia”.
O professor Ruy distingue categorias vizinhas, como o perfil, o ensaio biográfico, o memorialismo; fornece dicas valiosas para os neobiógrafos; aponta armadilhas a serem evitadas; e reitera um axioma: jamais biografar um vivo. Apenas os mortos – e olhe lá, eu acrescento, porque mesmo esses podem nos ludibriar postumamente, mediante a localização de documentos que alteram, às vezes de modo radical, a imagem que deles formávamos. O biógrafo deve ser obsessivamente movido pela volúpia da minúcia, pela caça incessante ao detalhe, ainda quando uma nova descoberta venha a desestabilizar todo o seu prévio arsenal de certezas.
Ruy desconfia do teor de verdade das autobiografias: “Nenhuma/.../ é confiável”. Indagado se não cogitava em escrever sua própria história, respondeu, coerente: “Nunca. Não confio em mim”. Tampouco valoriza a “biografia autorizada”, ou seja, a biografia chapa branca, que tende a recalcar o lado tarja preta do biografado.
Como atributos desejáveis num biógrafo, Ruy Castro enumera: concisão, clareza, verdade, e, se possível, charme e humor. O leitor, seduzido pela fluência de um discurso, se esquece de que a fluidez raras vezes é uma dádiva, sendo, antes, o resultado de uma laboriosa construção – a construção do espontâneo, se me permitem o aparente paradoxo.
Todas essas qualidades se encontram nos três monumentos biográficos que Ruy, pacientemente, ergueu em nossas letras. Por ordem de publicação, O anjo pornográfico, a vida de Nelson Rodrigues (1992), Estrela solitária, um brasileiro chamado Garrincha (1995) e Carmen (2005). Obras que lhe demandaram, respectivamente, dois, três e cinco anos de quase ininterrupto trabalho entre apuração dos fatos e redação final dos textos. Para o livro sobre Nelson, foram mais de 150 os entrevistados. Para o sobre Garrincha, Ruy formulou a Elza Soares cerca de 500 perguntas. Para a biografia de Carmen Miranda, colheu em torno de mil depoimentos junto a aproximadamente 200 pessoas. Tanto a biografia de Garrincha quanto a de Carmen ganharam o Prêmio Jabuti de Livro do Ano.
Há pontos de contato entre os três biografados. Nenhum deles é carioca de origem, mas todos conheceram o sucesso nesta cidade – como o próprio Ruy, um carioca de Caratinga. Cada um a seu modo, os biografados se caracterizam por uma arte – e pelo risco a ela inerente – de constante exposição pública. Nelson, através de seus personagens, no palco teatral, embora, como frisa Ruy, seu palco pessoal fossem as redações dos jornais. Carmen, no palco musical. Garrincha, no palco dos estádios futebolísticos. Três vidas com períodos de intensa fulguração e que, em proporções e por motivos diferentes, vivenciaram tragédias íntimas e se tornaram alvos de pesadas críticas. O dramaturgo, por seu ostensivo posicionamento político direitista no período da ditadura militar. O craque de futebol, por haver sucumbido à autodestruição alcoólica, que lhe abreviou a carreira e o empurrou ao noticiário das páginas policiais. A cantora, por supostamente preferir os Estados Unidos ao Brasil – disseram que voltou americanizada.
No caso de Nelson Rodrigues, o trabalho de Ruy Castro não se restringiu a documentar a conturbada trajetória do dramaturgo. O biógrafo revelou uma inacreditável sucessão de tragédias na vida de Nelson, até maiores do que aquelas descritas em suas peças. Mas, paralelamente a isso, Ruy promoveu uma verdadeira ressurreição bibliográfica do autor, recuperando crônicas e romances esquecidos, nunca reeditados ou inéditos em forma de livro. Como editor e organizador, foi o responsável, entre 1992 e 1997, pela publicação de 12 volumes com textos de Nelson Rodrigues. Lamentavelmente, tais preciosidades viraram cinza, pois, em função de conflitos com herdeiros, a Justiça determinou que os 120 mil exemplares da coleção fossem incinerados.
Garrincha perdeu o jogo mais decisivo de sua existência, pois não conseguiu driblar a compulsão para o álcool. Em A vida por escrito, Ruy Castro corajosamente se expõe, ao revelar como chegou à escolha de seu segundo biografado: “Ocorreu-me fazer um livro sobre o alcoolismo. Eu próprio era alcoólatra, sem beber desde 1988, graças a um tratamento /.../ [numa]clínica para dependentes químicos. /.../ Queria [biografar] um vencedor/.../insuperável na sua atividade, admirado por homens e mulheres e que, apesar disso, fora destruído pela garrafa. Está bem, mas quem? Pois, assim que me veio a palavra alcoolismo, piscou também o nome de Garrincha. /.../ Como explicar que, pós-futebol, sua vida fosse marcada por tanta miséria e degradação?”. Ruy sustenta que não existe ex-alcoólatra, assim como inexiste ex-diabético: em ambos os casos pode haver controle do problema, não a sua extinção. Donde concluo que a única (e tautológica) maneira de parar de beber é: não beber mais – e há nisso uma grande dose de verdade.
A tarefa do biógrafo não consiste apenas em concatenar informações verdadeiras; consiste, também, na eliminação de versões fantasiosas que se cristalizaram como (pseudo)verdade; por esse ângulo, o pesquisador é levado a praticar uma desbiografia, subtraindo fatos que, feliz ou infelizmente, não aconteceram. Um deles: Garrincha, prestes a participar de um jogo na Copa de 1958, ouviu do técnico Vicente Feola instruções de como desbaratar a defesa do time soviético. Indagou então ao treinador : “Você combinou com os russos?” Primeiro: o atleta não acompanhava as preleções pré-jogo; segundo: o autor assumido do comentário espirituoso foi o jornalista Ney Bianchi. Pouco importa. A versão se sobrepôs ao fato. Ruy Castro foi taxativo: Garrincha nunca proferiu essa frase. Certo. Mas, para destruir a lenda, falta combinar com os brasileiros.
Correm várias informações falsas (ou, em bom português, fake news) a respeito da protagonista da terceira biografia de Ruy. Seu trabalho, pioneiro na reconstituição da infância e da adolescência de Carmen, comprovou que a futura cantora residia na Lapa, bairro em que, à época, valores tradicionais e católicos conviviam com um ambiente boêmio e refratário aos bons costumes. No entanto, no afã de maquilar as origens da artista, os registros biográficos produzidos para americano ver efetuaram, com a leniência de Carmen, adulterações radicais, convenientes para a valorização de sua imagem. Pouco ou nada se diz sobre esse período da Lapa. Sua idade foi diminuída em 4 anos. O pai, na vida real um barbeiro, virou “exportador de frutas”; a mãe, ex-lavadeira, procederia de “família nobre europeia”. O espantoso, revela Ruy, é que tais desinformações continuaram a circular até três décadas após a morte de Carmen. Com seu talento, teria sido desnecessário apelar a tais recursos. Às vezes, a palavra já comporta um destino; lembremo-nos de que, etimologicamente, “Miranda” significa “a que deve ser admirada”. Cumpriu-se o vaticínio do nome.
Na tarja que circunda a capa da edição comemorativa dos 30 anos de O anjo pornográfico, lê-se: “O livro que fez o Brasil redescobrir Nelson Rodrigues”. A frase poderia ter sido outra, igualmente verdadeira: “A obra que salvou uma vida”. Ruy Castro, num texto comovente, relata a história de um empresário, alvo de sequestro em São Paulo, no ano de1992. Nos infinitos 36 dias de cativeiro, os sequestradores lhe forneceram, a pedido, um livro, que o sequestrado leria por seis vezes, comparando suas agruras aos infortúnios de Nelson Rodrigues, e concluindo que as desgraças do escritor suplantavam a sua provisória e terrível adversidade. Desse modo conseguiu arrancar forças para suportar até o fim aquele tormento. Libertado após pagamento de resgate, declarou, numa entrevista à tevê: “Um livro me salvou a vida. O anjo pornográfico, de Ruy Castro”.
Treze anos depois, uma obra de Ruy, Carmen, salvaria outra vida: a dele próprio. Escreveu a maior parte da biografia em meio a um severo tratamento contra o câncer, que o levou a 34 sessões de radioterapia, 7 de quimioterapia, 29 consultas médicas, 5 biópsias, 61 sessões de fisioterapia e à perda de 12 quilos. Em tais e precárias condições, redigiu em 9 meses as quase 500 páginas que lhe faltavam para a conclusão do livro. Tudo indicava que não lhe seria possível terminá-lo. Mas, como ele não sabia que a tarefa era impossível, conseguiu realizá-la. Não admitia chegar a seu fim antes de chegar ao fim de seu livro. Por isso, diria depois que Carmen o salvou da morte.
Essas informações constam da pequena e preciosa fotobiografia Álbum de retratos –Ruy Castro (2008), de Heloisa Seixas. Além desse volume, Heloisa publicaria, em 2014, O oitavo selo, por ela denominado “quase romance”, mas que pode serentendido também, ou sobretudo, como uma “quase biografia” de Ruy. Certa feita, o escritor afirmou que um bom biógrafo é, com frequência, um bom biografável. O livro de Heloisa atesta a pertinência da observação. O título remete a um filme de Ingmar Bergman, O sétimo selo. Nele, um cavaleiro joga xadrez com a Morte. Ruy abeirou-se sete vezes da fronteira entre vida e morte, e dela regressou – metaforicamente agraciado, então, com o oitavo selo. Árdua caminhada, em que partes do corpo nomeiam cada capítulo: sangue, nariz, fígado, língua, coração, sexo e cérebro. Acompanhamos Ruy frente a confrontos em que os limites do desejo, da vida e da morte tornam-se nebulosos e dúbios. “Jogar-se à vida” é título de uma seção de seu livro Morrer de prazer (2013). Mas, dependendo da intensidade do arremesso, “jogar-se à vida” pode ser um lance fatal. Evoco três versos do poema “Elegia”, de Carlos Drummond de Andrade: “amor em que me amaram, me feriram/ sete vezes por dia em sete dias/ de sete vidas de ouro”.
O número 7 também remete à resistência dos felinos, animais do especial afeto de Ruy e de Heloísa. Hoje, na residência do casal, coabitam Bing, Dixie e Bizu, três gatos literais, em harmonia com cinco Jabutis literários.
Narrados por Heloisa, quantos entrelaçamentos percebemos entre vida e obra de Ruy! Autoalfabetizou-se aos 4 anos, ouvindo pela voz materna as histórias que Nelson Rodrigues publicava diariamente no jornal Última Hora. Sozinho, começou a associar os sons e as letras. Precocemente familiarizado com Nelson, declarou: “Devo ter sido a criança brasileira que mais entendeu de adultério”. Aos 6 anos ganhou o livro que inaugurou sua biblioteca particular: Alice no país das maravilhas, obra que viria a traduzir em 1993, pavimentando a ponte com a infância, numa obsessão que o fez buscar nos sebos os mais de cem livros que tinha lido até os 9 anos. Seu pai, dono de uma loja de produtos dentários, ganhou um grande prêmio na loteria, mas não deixou de trabalhar: investiu no ramo imobiliário, para, entre outras despesas, poder suprir as numerosas e ininterruptas demandas do filho, ávido por filmes, livros e discos.
Após vencer tantas batalhas contra a morte, Rui tornou-se um imortal, eleito em outubro de 2022 com o voto de 32 acadêmicos. Meses antes já conquistara o maior prêmio da Casa, o Machado de Assis, a ele concedido pelo conjunto da obra, numa dupla demonstração de como sua presença é bem-vinda entre nós.
Ruy, astro desta noite de lua crescente, e cuja escrita lança luz sobre todos os recantos da cidade, mesmo os mais esquecidos pelos cronistas ou pelos poderosos.
Ruy do ano inteiro, mas, em especial, Ruy de fevereiro, por seu recente septuagésimo quinto aniversário, cinco dias depois do Carnaval.
Cidadão benemérito da cidade. Cidadão republicano, mas súdito de um Rei – Momo – , que certa vez o reconheceu e o chamou pelo nome, em meio a um grupo de foliões. Ruy considera esse episódio uma das maiores glórias de sua vida.
Aos 3 dias do mês de março de 2023, nesta centenária Academia Brasileira de Letras, a muito leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro homenageia quem tanto a homenageou. Cidade que Ruy conhece de cor e de coração, e que alguém comparou a um “Jardim florido de amor e saudade/ Terra que a todos seduz”.
Hoje, é como se a cidade em festa confluísse para o espaço desta Casa e o Rei Momo aqui viesse lhe entregar a chave do Rio.
“Berço do samba e das lindas canções”, a cidade é de todos, e é sua. Ela e a música se juntam agora em seu louvor. Viva Ruy Castro!
Antonio Carlos Secchin
Academia Brasileira de Letras, 3 de março de 2023