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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Antonio Carlos Secchin

Ele é   biógrafo  e também ficcionista,  com romances transcorridos  no Rio de Janeiro do século XIX. Residiu algum tempo no exterior. Teve adaptação de  obra levada ao palco. Autor de numerosos artigos, com frequência críticos ao Governo. Melômano, escreveu a biografia de um importante nome  da área musical. Poliglota e  polígrafo, percorre à vontade vários gêneros, numa obra que contabiliza dezenas de títulos.

Como todos perceberam, estou-me referindo  ao Visconde de Taunay, fundador  da cadeira 13, cujo perfil foi exemplarmente traçado pelo seu novo ocupante,  o escritor Ruy Castro. Se comecei  invocando o fundador, aproveito para me reportar, em breves considerações, a outros nomes que ilustram a trajetória da cadeira, a fim de enfatizar aspectos talvez não muito  visíveis  a um  primeiro olhar.

Seria possível, recuando no  tempo, localizar algum denominador  que unisse Ruy a seus antecessores?

Numa improvável mesa de um impossível bar, eu desejaria  conversar  com os predecessores  de Ruy Castro, e  indagar se eles  teriam algo a dizer ao novo integrante da Casa. Mas, como aqui  se trata de sessão acadêmica, e não de sessão  mediúnica, tal diálogo póstumo não se efetuará    com os espíritos desses escritores, mas com seus corpos – corpos  textuais, seus livros.

Comecemos  pelo patrono,  Francisco Otaviano, que, antes de se tornar uma rua de Copacabana, foi jornalista e político de enorme prestígio. Otaviano, aliás, mereceu  dupla  homenagem  de Ruy: não só hoje, no discurso que acabamos de ouvir, mas também como personagem do  romance Os perigos do Imperador, lançado em 2022.

Para desespero dos bibliófilos, Otaviano, poeta incidental, publicou somente duas  raríssimas coletâneas de verso: uma, Cantos de Selma (1872), com a exígua tiragem de 7 exemplares; a segunda,   Traduções e poesias (1881), mais generosa, com tiragem de 50.  Porém  o que extraí de um prefácio de Otaviano seria antes uma sugestão  ´para  mim  do que para Ruy. Aconselha-me  o patrono:  “por mais estoico que seja o homem, por mais que/.../  despreze o conceito dos seus contemporâneos, sempre o elogio lhe será incentivo para cometer grandes trabalhos e prosseguir com firmeza e perfeição”.

O já citado fundador, o monarquista  Visconde de  Taunay,  neste 2023 será lembrado pelos  180 anos de nascimento . Com um sorriso amarelo, melhor,   verde e amarelo, pois permaneceu patriota até o fim,  Alfredo de Taunay talvez lamentasse a perda de seu  status na cadeira 13: o  de mais produtivo  autor, com cerca de 30  livros publicados.  A bibliografia de Ruy  ultrapassa o dobro desse montante.

Do visconde  passamos  ao doutor:  Francisco de Castro, poeta e médico, ou melhor,  bastante  médico e pouco  poeta. Na introdução da coletânea Harmonias errantes, de 1878, pinçamos  uma frase que parece estar falando de Ruy Castro: “Estudo, trabalho e talento são a tríplice arma  com que se conquista  o triunfo”. Estudo, trabalho,  talento, três marcas de Ruy.  A frase, porém, não é  de   Francisco, e sim de  seu  prefaciador, um certo Machado de Assis.    De lavra  franciscana é o juízo  que a seguir lerei, a propósito de Taunay, e  que também se ajustaria perfeitamente ao  novo acadêmico: “De tudo nos fala  o nosso escritor com aquela precisão de dizer e firmeza de tom, sagacidade inquiridora e concepção larga, forte penetração do assunto e tal vigor de  evocação, que logo infunde nas coisas que comemora, [mesmo] através da distância e dos anos, calor, atualidade, vida”.

Na  sequência,  Martins Júnior, brilhante advogado,  que tentou unir poesia e ciência, não alcançando, porém,   nem uma  nem outra. Após a frustrada  tentativa de uma  poesia científica,   retornou ao lirismo, em 1893, no livro Tela  policroma.  Como, segundo alguns,  os poetas podem ser considerados as    antenas da raça, no século XIX  Martins Júnior escreveu um poema   cujo título seria de grande agrado   de  uma governante brasileira  do século XXI: trata-se de “Mulier  sapiens” .

Se Ruy indagasse a Augusto Meyer: “Devo   acreditar  na imortalidade?”,  o  gaúcho lhe indicaria  o título de sua obra de estreia, em  1923:  A ilusão querida. Meyer, todavia,  contrabalançaria o ceticismo com o  seguinte comentário a  propósito do enterro de Machado de Assis: “Pouco importa esse cortejo que  aí vai /.../ rumo ao cemitério São João Batista. É dentro de nós mesmos que os homens morrem ou renascem”.

Francisco de Assis Barbosa, biógrafo,  organizador da monumental edição da obra completa de Lima Barreto, decerto se sentiria muito bem representado por outro biógrafo,  organizador da  monumental edição da obra de Nelson Rodrigues.

No  discurso de posse, Sergio Paulo Rouanet admite que não conseguiu divisar um traço comum   em  seus antecessores. E conclui: “De repente, descubro o que essa Cadeira tem de característico: /.../ por não ter uma vocação própria, ilustra a vocação da Academia, que é o pluralismo.”  Pluralidade que não exclui  uma constante: como Ruy bem observou, salienta-se a vocação jornalística de quase todos os titulares da cadeira, inclusive o atual. 

Francisco de Assis Barbosa assumiu a cadeira 13 num dia 13 de  maio.  Como não sou propenso  a sortilégios numéricos, não lhes  informarei  que a soma dos dígitos da data de hoje,  3 do  3 de 2. 0. 2. 3 resulta exatamente  em 13. Tampouco direi que o nome dos antigos ocupantes  Alfredo Taunay, Sousa Bandeira,  Martins Júnior e Sergio Rouanet compõem-se de 13 letras. Se  as 9 de Ruy Castro  escapam desse padrão, invoco a pessoa que melhor o representa, a mulher, a musa, a escritora, abrigada    nas 13  letras de   Heloisa Seixas. Evito chamá-la de sua “cara metade” não só porque ambos detestam lugares-comuns, mas porque, na vida  de Ruy, ela não é metade, ela é inteira.

O futebol, uma das paixões do escritor, se organiza, todavia,  em torno do   11.  Sem qualquer  dificuldade escalaríamos,  de ponta  a ponta, um time completo integrado pelos  múltiplos Ruys.  No gol, o biógrafo. Na zaga, o cronista, o cinéfilo, o musicólogo e o ficcionista. No meio de campo, o jornalista, o pesquisador e o flamenguista. No ataque, o historiador, o antologista  e o editor. Como se fosse pouco, ainda sobra espaço,  no banco de reservas, para o tradutor, o ensaísta, o entrevistador,  o  professor e o bibliófilo,  prontos para entrarem em campo,  e tão  talentosos  quanto os outros 11. Em todas essas modalidades, Ruy não  se cansa  de marcar  numerosos   gols de letras.

Sua produção   comporta  não menos do que 70  títulos, entre publicações autorais, antologias, organização de edições e traduções, sem falar nos seus  11  livros vertidos para 9 idiomas e editados em 10 países.

Ruy foi muito  precoce na revelação de seu talento, e de tal modo que algum desavisado poderia até supor que ele começou a publicar antes mesmo de haver nascido. Sim, porque, se nasceu em 1948, o fato é que já em  1925 o nome “Ruy Castro” circulava  em nossa literatura, como autor da comédia    “Somos o que elas querem...”. O Ruy de 1948 é incomparavelmente melhor do que seu homônimo anterior, com o qual, todavia, compartilha  duas  curiosas coincidências: o  Ruy Castro antigo nasceu em 1894, 1, 8, 9, 4,  com os mesmos quatro  dígitos, 1, 9, 4,  8, de nosso Ruy contemporâneo. E  ainda: o Ruy do século XIX também era atento ao futebol,  conforme atesta a     rubrica  inicial da peça: “de quando em quando, vozes se ouvem ao longe, de torcedores que passam nos bondes, rumo ao campo do Botafogo, em dia de jogo com o Fluminense”. Provavelmente  seja essa   a primeira referência  ao futebol  num  texto da dramaturgia brasileira,    reportando-se ao já bastante  longevo confronto Botafogo versus Fluminense. Tão longevo  que, hoje em dia,  é   denominado o  “clássico vovô” do Brasil, sendo  o terceiro mais antigo do futebol mundial. O embate de número 1  entre as duas equipes ocorreu  em outubro de 1905.  Portanto, em 1925 o jogo   teria idade para, no máximo, ser chamado  de “clássico papai”.

Do ângulo que aqui interessa – o da produção textual –,  Ruy nasceu aos 19 anos, em 1967, na condição de  repórter do Correio da Manhã. Depois, nos desdobramentos desse  percurso  jornalístico, trabalhou em outros 15 grandes órgãos da imprensa, até estabilizar-se, a partir de 2007, como colunista da Folha de S.Paulo. Mantendo a média de quatro colaborações por semana, ao longo de 16 anos terá atingido, para  nos restringirmos apenas   às colaborações no jornal paulista, a assombrosa cifra de 3 mil crônicas.

Retornemos,  porém,   a 1967, em busca desse Ruy originário. No desassombro de sua pós-adolescência, assinou  matérias que ganharam a capa do segundo caderno do  Correio da Manhã, recorrendo a  temas e formas que de certo modo prenunciavam o futuro escritor. Temas: a literatura, o cinema, a música.  Formas: o gosto e o gozo pelos jogos de palavra, pelo comentário inteligente e malicioso. Assim, no dia 18 de agosto, em matéria    intitulada “Tecnologia do namoro”, transforma o século em sexo, cunhando a   expressão “ad sexum seculorum”. Em 29 de agosto, publica o aliterativo artigo “Mito morte Marilyn”. Porém  nada mais  premonitório do que seu texto de estreia, em 4 de maio: “1937: o samba em funeral”, comemorativo dos 30 anos da  morte de Noel Rosa. Ora, Noel seria gravado por Carmen Miranda, personagem de  uma das três incontornáveis biografias de Ruy. E, exatamente ao lado dessa matéria, deparamos com as memórias de Nelson Rodrigues, futuramente o primeiro  de seus biografados.

Ruy retratou     todas as temporalidades do Rio de Janeiro. O século XIX e os primórdios do XX  surgem  pelo viés ficcional, com os saborosos Bilac vê estrelas (2000), ambientado no Rio Belle Époque;  Era no tempo do  Rei (2007), evocação da cidade  joanina  das primeiras décadas do século  retrasado;  e o recente Os perigos do imperador –  um romance do segundo reinado.

O que é verdade, o que é pura fabulação nesses três romances? Melhor não ser categórico, e admitir que eles contêm ao mesmo tempo, em doses diversas,  componentes reais e fictícios.

Memória, história e imaginação parecem constituir os três eixos em torno dos quais se organiza a literatura  de Ruy. Não  nos esqueçamos de sua rara incursão na narrativa curta, em “La petite mort”, integrante da coletânea Meu querido canalha (2004). O texto, pleno de  reviravoltas, conta   a vingança de um esposo traído, e  culmina na   prática de uma insólita refeição, levada, digamos, às últimas e canibalescas  consequências.

Se  a imaginação desponta como força  motriz nos  retratos cariocas do século XIX, a rigorosa  pesquisa histórica prevalece, soberana,  nos painéis que Rui constrói em torno  do Rio de Janeiro a partir da década de 1920.  Desvela  uma  pulsante imagem da cidade em Metrópole à beira-mar (2019), obra que redimensiona o Rio de Janeiro como o  efetivo cenário  de modernização da cultura brasileira, em todos os seus níveis – literário, musical,  arquitetônico, científico.

Cidade na qual, de   meados da década  de 1940  a meados da década  de 1960,  predominou um gênero:  o samba-canção,   mapeado, no livro A noite do meu bem (2015),  em suas ramificações culturais, sociais e políticas. O  deslocamento da vida musical noturna,  egressa  dos grandes e recém-proibidos  cassinos para as pequenas boates,   demandava  uma nova música e um novo  jeito de interpretá-la.  Atualmente somos atentos  ao que  se denomina o lugar da fala; no livro,  Ruy, com perspicácia,   tratou também de considerar  o lugar do canto. Em geral, o canto passou a soar num canto mais acanhado, próximo a um piano, e cercado de  emanações tabagistas e etílicas dos noctívagos.

O   Ruy jornalista nascido   em 1967  renasce escritor em 1990, com Chega de saudade – a história e as histórias da bossa nova. O subtítulo é fundamental, na promessa – cumprida – de não só mostrar o contexto geral – a História – , como de revelar seus bastidores, seu lado íntimo e pessoal – as histórias.  A noite do meu bem, aliás, e não por acaso,  ostentaria   subtítulo similar ao de Chega de saudade: a história e as histórias do samba-canção.

Em diálogo   parcial com o livro da bossa-nova, de  robustas   500 páginas, situam-se as não menos opulentas  556 páginas de Ela é carioca – uma enciclopédia de Ipanema (1999), com 237 verbetes. Se há personagens comuns às duas obras, o arco temporal da  enciclopédia precede a cronologia  de Chega de saudade,  distendendo-se a partir de 1910.

Podemos dizer que esse tríptico de reconstituição de períodos  históricos elabora uma espécie de macrobiografia da cidade, uma pólis-grafia, constituída  pela sábia articulação de centenas de minibiografias. Os três livros   flagram  pessoas num determinado recorte temporal  de suas vidas, no qual elas atuam como coadjuvantes do  efetivo protagonista: o Rio dos anos 1920, do samba-canção e  da bossa-nova.

Mas não apenas  o passado é perscrutado  pelo escritor. A vida  presente é o   grande manancial de sua volumosa  produção de cronista. Uma pequena parcela desse imenso contingente já se encontra preservada em 6 livros, fora outros 14, com peças de maior fôlego, que o autor não cataloga como “crônicas”, e sim como   “reportagem, perfil e memória”. Várias obras desses dois conjuntos apresentam seleção e organização de Heloisa Seixas, duas delas, inclusive,  em regime de coautoria. As coletâneas de textos  mais extensos do que as crônicas  comportam  entrevistas, artigos e  ensaios, reunidos, entre outros títulos, em  Um filme é para sempre (2006),  O leitor apaixonado  (2009) e  Trêfego e peralta (2017).   A contrapelo de  saberes  cada vez mais setorizados, Ruy demonstra uma fome omnívora de conhecimento.

Nesse  território textual híbrido, propenso a comportar  quase tudo, se  estampa  com mais constância uma das  marcas personalíssimas de Ruy Castro: o humor. Na coletânea Trêfego e peralta, temperados pelo humor e pela ironia, desfilam  a macaca Chita,   Cleópatra,  Mallarmé,  o Pato Donald,  Lillian Hellman e Drácula, sobre o qual  ele escreve: “Qual é o seu monstro favorito?/.../Como toda criança, comecei por Drácula. É o monstro mais famoso, acessível, /.../  tanto que às vezes quase podemos confundi-lo com um membro da família”. Em “Minha querida máquina de escrever”, constata, com certa saudade, que “numa época como a nossa,/.../ os parentes mais próximos da máquina de escrever passaram a ser a caneta-tinteiro, a pena de ganso e os pterodáctilos”.

O escritor nos fala  de um  Rio que ri. De um Rio que é Ruy. A paixão pela urbe   e a irreverência com que a flagra  se irmanam, e poderiam  fundir-se   numa só expressão,  que abarca   os dois sentidos: a-mor-da-ci-da-de.

Se o humor aflora, ostensivo,  nos 100 metros de tiro curto das crônicas,  ele também se infiltra nas maratonas das  grandes reconstituições históricas. Assim, em A noite de meu bem, referindo-se à carolice de Dona Santinha, esposa do Presidente  Dutra, Ruy fulmina: “Católica até enquanto dormia”. Adiante, evocando  ambientes populares e pouco higiênicos, cita inconvenientes fregueses de plantão:  “a feijoada só era servida nos restaurantes mais modestos, aqueles com toaletes inabordáveis e moscas que atendiam pelo nome”.

Os  livros de crônicas se subdividem por   temas. Dentre os mais reiterados, há  deliciosas  seções sobre a palavra, o bom ou o mau uso da língua portuguesa; sobre o amor incondicional aos gatos; sobre seres, situações e lugares do afeto, concentrados  em A arte de querer bem (2018). Uma das  crônicas se intitula “O sebo e o céu”. A propósito, Ruy e eu endossamos  uma  conjectura  de Jorge Luis Borges. O escritor argentino, como se sabe,   pensava que  o Paraíso deveria ser  uma espécie  de imensa  biblioteca. Tudo bem.  Minha única preocupação, no  caso, consiste em saber:  quem vai espanar os livros?

Um título  se destaca no  conjunto que o autor denomina “reportagem, perfil e memória”. Refiro-me ao primoroso  Carnaval no fogo – crônica de uma cidade excitante demais (2003). Ao longo de  cinco  capítulos, somos transportados numa viagem em ziguezagues cronológicos, que se inicia em 2003, recua para 1502, avança 500 anos, e retorna ao século XVI, acrescentando ao painel carioca a faixa temporal que Ruy até então não percorrera: o Rio de Janeiro colonial. Mas não se desenha  apenas o contraste entre o Rio que é e o Rio que foi: o escritor igualmente  sonha  o Rio que poderia ter sido, ou que ainda poderá vir a ser,  contra “o urbicídio que assolou outras metrópoles”. 

No capítulo 2, entramos  no    samba e no  carnaval. Ruy  observa que “jamais alguém se atreveu a cometer um golpe de Estado em fevereiro – não haveria quórum”. E prossegue, referindo-se ao período entre 1930 e 1960: “Sendo uma cidade razoavelmente católica, produziu, sob as barbas do Cristo Redentor, Carnavais mais pagãos que os do próprio paganismo egípcio ou das bacanais romanas – aqui, o boi Ápis viraria croquete de botequim”.

 No capítulo 3, profere  um justo e enfático elogio ao  Jardim Botânico.  Apresenta-nos ainda  a progressiva  luta pela emancipação da mulher carioca e a inquestionável   influência anglo-francesa nos costumes citadinos  do nosso  século XIX.

No 4, recorda   projetos arquitetônicos e urbanísticos,  felizmente malogrados, de Lúcio Costa e  Oscar Niemeyer. Lúcio pretendia que a Cidade Universitária fosse  edificada sobre a  Lagoa Rodrigo de Freitas. Niemeyer planejava  o estádio do Maracanã com o gramado a doze metros de profundidade, para que o torcedor não tivesse de galgar  uma  rampa de acesso. Como a região é propensa a alagamentos, creio que seria prudente, em dias de temporal, as equipes levarem para o estádio botes infláveis e coletes salva-vidas, para resgatarem do gramado os atletas que  porventura não soubessem nadar.

Ruy repudia   a Catedral Metropolitana, por ele comparada a  “um descomunal balde emborcado para baixo/.../ merecedor de implosão por ter reduzido os Arcos da Lapa /.../ a dimensões nanicas”.  No mesmo capítulo, relembra  que,  em 1886, um visitante francês, o Visconde de Courcy, para resolver o problema da falta de ventilação no Centro da cidade propôs simplesmente a derrubada do Pão de Açúcar.  Ao  combater a proposta  da construção de um viaduto, Ruy é lapidar: “A morte lenta e dolorosa é o destino de tudo que leva um viaduto por cima”.

Por fim, o  capítulo 5 privilegia  Copacabana, seu grande hotel e as lembranças  mais  ou menos despudoradas que povoam a história  do lugar.  Ruy Castro declara, incisivo:  “Copacabana foi o primeiro bairro do Brasil a nascer cosmopolita. Em seu passado, não existe memória de uma vida rural, suburbana, provinciana – enfim, da lenta sedimentação sobre a qual se fundam as cidades”.

Carnaval no fogo  contém muito mais, e se revela uma verdadeira ode ao espaço urbano e humano que nos constitui,  sem, todavia,  ocultar as mazelas que nos assolam.

As  considerações e as  experiências do escritor no campo da biografia estão reunidas em A vida por escrito (2023). Num tom  sedutor e coloquial, ele alinhava  teoria e prática adquiridas em três décadas de dedicação ao gênero,   e nos mais de três dezenas de  cursos que ministrou sobre a “ciência e arte da biografia”.

O professor Ruy  distingue categorias vizinhas, como o perfil, o ensaio biográfico, o memorialismo;  fornece dicas valiosas para os neobiógrafos;  aponta   armadilhas a serem evitadas;   e reitera um axioma: jamais biografar um vivo. Apenas  os mortos – e olhe lá, eu acrescento, porque mesmo esses podem nos ludibriar postumamente, mediante  a localização  de documentos que alteram, às vezes de  modo radical,  a imagem que deles formávamos. O biógrafo deve ser obsessivamente movido pela volúpia da minúcia, pela caça incessante ao  detalhe,  ainda quando         uma nova descoberta venha a desestabilizar  todo o seu prévio arsenal  de certezas.  

Ruy desconfia do teor de verdade  das autobiografias:  “Nenhuma/.../ é confiável”. Indagado  se não cogitava  em escrever sua própria história, respondeu, coerente: “Nunca. Não confio em mim”. Tampouco valoriza a “biografia autorizada”, ou seja, a biografia chapa branca, que tende a recalcar o lado tarja preta do biografado.

Como atributos desejáveis num biógrafo, Ruy Castro  enumera: concisão, clareza, verdade, e, se possível, charme e humor. O leitor, seduzido pela  fluência   de um  discurso, se esquece de que a fluidez raras vezes é uma dádiva,  sendo,  antes,   o resultado de uma laboriosa construção – a construção do espontâneo, se me permitem o aparente paradoxo.

Todas essas qualidades  se encontram nos três monumentos biográficos que Ruy, pacientemente, ergueu em nossas letras. Por ordem de publicação, O anjo pornográfico, a vida de Nelson Rodrigues (1992),  Estrela solitária, um brasileiro chamado Garrincha (1995)  e Carmen (2005). Obras que  lhe demandaram, respectivamente, dois, três e  cinco  anos de quase ininterrupto trabalho entre  apuração dos fatos e redação final dos textos. Para o livro sobre Nelson, foram mais de 150 os  entrevistados.  Para o sobre Garrincha, Ruy formulou a Elza Soares cerca de 500 perguntas. Para a biografia de Carmen Miranda,   colheu em torno de  mil depoimentos junto a aproximadamente   200 pessoas. Tanto a biografia de Garrincha quanto a de Carmen ganharam o Prêmio Jabuti de Livro do Ano.

Há pontos de contato entre os três biografados. Nenhum deles é carioca de origem, mas  todos conheceram o sucesso nesta cidade – como o próprio Ruy, um carioca de Caratinga. Cada um a seu modo, os biografados  se caracterizam por uma arte  – e pelo risco a ela  inerente  – de constante exposição pública. Nelson, através de seus personagens,  no palco teatral, embora, como frisa Ruy, seu palco pessoal fossem as redações dos jornais. Carmen, no palco musical. Garrincha, no palco  dos estádios futebolísticos. Três vidas com períodos de intensa fulguração e que,   em proporções e por motivos diferentes, vivenciaram tragédias íntimas  e se tornaram  alvos de pesadas críticas. O dramaturgo, por seu ostensivo posicionamento político  direitista  no período da ditadura militar. O craque de futebol, por haver sucumbido à autodestruição alcoólica, que lhe abreviou a carreira e o empurrou ao noticiário das páginas policiais. A cantora, por supostamente preferir os Estados Unidos ao  Brasil – disseram que voltou americanizada.

No caso de Nelson Rodrigues, o trabalho de Ruy Castro não se restringiu a documentar a conturbada  trajetória  do dramaturgo. O biógrafo revelou  uma inacreditável  sucessão de tragédias na vida de Nelson,  até maiores do que aquelas descritas  em suas peças. Mas,  paralelamente a isso,  Ruy promoveu uma verdadeira ressurreição bibliográfica do autor, recuperando  crônicas e romances esquecidos,  nunca reeditados ou inéditos em forma de livro. Como editor e organizador, foi o responsável, entre 1992 e 1997,  pela publicação de  12 volumes com textos de Nelson Rodrigues. Lamentavelmente, tais preciosidades viraram cinza, pois, em  função de conflitos  com herdeiros,  a Justiça determinou que os 120 mil exemplares da coleção fossem incinerados.

Garrincha perdeu o jogo mais  decisivo de sua existência, pois não conseguiu driblar a compulsão para o álcool. Em A vida por escrito, Ruy Castro corajosamente se expõe, ao revelar como chegou à escolha de seu segundo biografado: “Ocorreu-me fazer um livro sobre o alcoolismo. Eu próprio era alcoólatra, sem beber desde 1988, graças a um tratamento /.../ [numa]clínica para dependentes químicos. /.../ Queria [biografar] um vencedor/.../insuperável na sua atividade, admirado por homens e mulheres e que, apesar disso, fora destruído pela garrafa. Está bem, mas quem? Pois, assim que me veio a palavra alcoolismo, piscou também  o nome de Garrincha. /.../ Como explicar que, pós-futebol, sua vida fosse marcada por tanta miséria e degradação?”.    Ruy sustenta que não existe ex-alcoólatra, assim como inexiste ex-diabético: em ambos os casos pode haver controle do problema, não a sua extinção.     Donde concluo que a única (e tautológica) maneira de  parar de beber é: não beber mais – e há nisso uma grande dose de verdade.

A tarefa do biógrafo não consiste apenas em concatenar informações verdadeiras; consiste, também, na eliminação de  versões fantasiosas que se  cristalizaram   como (pseudo)verdade; por esse ângulo, o pesquisador  é levado a praticar uma desbiografia, subtraindo  fatos que, feliz ou infelizmente,  não aconteceram. Um deles: Garrincha, prestes a participar de um jogo na Copa de 1958, ouviu   do  técnico Vicente Feola  instruções de como desbaratar a defesa do time soviético. Indagou  então ao treinador : “Você combinou com os russos?”      Primeiro:  o atleta não acompanhava  as preleções pré-jogo; segundo:  o  autor  assumido do comentário  espirituoso foi o jornalista Ney Bianchi. Pouco importa. A versão se sobrepôs ao fato. Ruy Castro  foi taxativo: Garrincha nunca  proferiu essa  frase.   Certo. Mas, para destruir a  lenda, falta combinar com os brasileiros.

Correm várias informações falsas (ou,  em bom português, fake news) a respeito da protagonista da terceira biografia de Ruy. Seu  trabalho, pioneiro na  reconstituição da infância e da adolescência  de Carmen,  comprovou  que   a   futura cantora residia na  Lapa, bairro  em que,  à  época,  valores    tradicionais e   católicos   conviviam  com  um ambiente  boêmio  e refratário aos  bons  costumes. No entanto, no afã de maquilar  as  origens  da artista, os registros biográficos produzidos para americano ver  efetuaram,   com a leniência  de Carmen, adulterações radicais,  convenientes  para a valorização de sua imagem. Pouco ou nada se diz sobre esse período da Lapa.   Sua idade foi diminuída em 4 anos. O pai, na vida real  um barbeiro,  virou   “exportador de frutas”; a mãe, ex-lavadeira, procederia  de “família nobre europeia”. O espantoso, revela Ruy, é que tais desinformações  continuaram a circular até três décadas após a  morte de Carmen. Com seu talento, teria sido   desnecessário apelar a tais recursos. Às vezes,  a  palavra já  comporta  um destino;  lembremo-nos de que, etimologicamente, “Miranda” significa “a que deve ser admirada”. Cumpriu-se o vaticínio do nome.

Na tarja  que circunda  a capa da edição comemorativa dos 30 anos de O anjo pornográfico, lê-se:  “O   livro que fez o Brasil redescobrir Nelson Rodrigues”. A  frase  poderia ter sido  outra, igualmente verdadeira: “A obra  que salvou uma vida”. Ruy Castro, num texto comovente, relata a história de um empresário,  alvo de sequestro em São Paulo, no ano de1992. Nos infinitos 36 dias de   cativeiro, os sequestradores lhe forneceram, a pedido,  um livro, que o sequestrado leria  por seis vezes, comparando suas agruras aos infortúnios de Nelson Rodrigues, e concluindo que as desgraças do escritor suplantavam a sua  provisória  e terrível adversidade. Desse modo  conseguiu arrancar forças  para suportar  até o fim aquele tormento.  Libertado após pagamento de resgate, declarou,  numa  entrevista à tevê: “Um livro me salvou a vida. O anjo pornográfico, de Ruy Castro”.

Treze anos depois, uma  obra de Ruy, Carmen, salvaria outra vida: a dele próprio. Escreveu a maior parte da biografia  em meio a um severo  tratamento contra o  câncer,  que o levou a 34  sessões de radioterapia, 7 de quimioterapia, 29 consultas médicas, 5 biópsias, 61 sessões de fisioterapia e à perda de 12 quilos. Em tais e precárias  condições, redigiu em 9 meses as quase 500 páginas que lhe faltavam para a conclusão  do livro. Tudo indicava que não lhe seria possível terminá-lo. Mas, como ele não sabia que a tarefa  era impossível, conseguiu realizá-la. Não admitia  chegar a seu fim antes de chegar ao fim de seu livro. Por isso, diria  depois que Carmen o salvou da morte.

Essas informações constam da pequena e preciosa fotobiografia Álbum de retratos –Ruy Castro (2008), de Heloisa Seixas. Além desse volume, Heloisa publicaria,  em 2014, O oitavo selo, por ela denominado “quase romance”, mas que pode serentendido  também, ou sobretudo, como uma “quase biografia” de Ruy. Certa feita, o escritor afirmou     que um bom biógrafo é, com frequência, um bom biografável. O    livro de Heloisa  atesta a pertinência da observação. O título remete a um  filme de Ingmar  Bergman,  O sétimo selo. Nele, um cavaleiro joga xadrez com a Morte. Ruy abeirou-se sete vezes da fronteira entre vida e morte, e dela regressou – metaforicamente agraciado, então,   com o oitavo selo. Árdua caminhada, em que partes do corpo nomeiam  cada capítulo: sangue, nariz, fígado, língua, coração, sexo e cérebro. Acompanhamos Ruy frente a  confrontos  em que  os limites  do  desejo, da vida e  da morte tornam-se nebulosos e dúbios.  “Jogar-se à vida” é título de  uma seção de seu livro Morrer de prazer (2013). Mas, dependendo   da intensidade do arremesso, “jogar-se à vida” pode ser um lance  fatal.  Evoco três versos do poema “Elegia”, de Carlos Drummond de Andrade: “amor em que me amaram, me feriram/ sete vezes por dia em sete dias/ de sete vidas de ouro”.

O número 7 também remete à resistência   dos felinos, animais do  especial afeto  de Ruy e de Heloísa.  Hoje, na  residência do casal, coabitam Bing,  Dixie e Bizu, três   gatos literais,  em harmonia com cinco  Jabutis literários.

Narrados por Heloisa, quantos entrelaçamentos percebemos entre vida e obra de Ruy! Autoalfabetizou-se aos 4 anos, ouvindo pela voz materna as histórias que Nelson Rodrigues publicava diariamente no jornal  Última Hora. Sozinho, começou a  associar  os sons e as letras. Precocemente familiarizado com  Nelson, declarou: “Devo ter sido a criança brasileira que mais  entendeu de adultério”. Aos 6 anos ganhou o livro que inaugurou sua  biblioteca particular: Alice no país  das maravilhas, obra que viria a traduzir em 1993, pavimentando a ponte com a infância, numa obsessão  que o fez buscar nos sebos os mais de cem livros que tinha lido até os 9 anos. Seu  pai, dono de uma loja de produtos dentários, ganhou um grande prêmio na loteria, mas não deixou   de trabalhar: investiu no ramo imobiliário, para, entre outras despesas, poder suprir as numerosas e ininterruptas demandas do filho, ávido  por  filmes, livros e discos.

Após vencer tantas batalhas contra  a morte, Rui  tornou-se um  imortal, eleito em outubro de 2022  com o  voto de 32 acadêmicos.  Meses antes  já conquistara  o maior prêmio da Casa, o Machado de Assis, a ele concedido pelo conjunto da obra, numa dupla  demonstração de como sua presença é bem-vinda entre nós.

Ruy, astro desta noite de lua crescente, e cuja escrita lança luz sobre todos os  recantos da cidade, mesmo os mais esquecidos pelos cronistas  ou pelos poderosos.

Ruy do ano inteiro, mas, em especial, Ruy de fevereiro, por seu recente  septuagésimo quinto  aniversário, cinco dias depois do  Carnaval.

Cidadão benemérito da cidade. Cidadão republicano, mas súdito de um Rei – Momo –  , que certa vez o reconheceu  e o chamou pelo nome, em meio a  um grupo  de foliões. Ruy considera esse episódio uma das maiores glórias  de   sua vida.

Aos 3 dias do mês de  março de 2023, nesta centenária  Academia Brasileira de Letras,  a  muito  leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro homenageia  quem tanto a homenageou. Cidade que Ruy  conhece de cor e de coração, e que alguém comparou a   um “Jardim florido de amor e saudade/ Terra que a todos seduz”.

Hoje, é  como se a cidade em festa confluísse para o espaço desta Casa  e o Rei Momo aqui viesse lhe entregar a chave do Rio. 

“Berço do samba e das lindas canções”, a cidade é   de todos, e  é sua.  Ela e a música se juntam  agora  em seu louvor. Viva Ruy Castro!

 

 

Antonio Carlos Secchin

Academia Brasileira de Letras, 3 de março de 2023